A suposta agressividade de Tina e as dinâmicas do policiamento de tom — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

A suposta agressividade de Tina e as dinâmicas do policiamento de tom

Não é incomum que mulheres negras relatem situações em que se sentiram silenciadas por medo de serem lidas como raivosas

08 de Fevereiro de 2023

Em 2017, escrevi uma reflexão sobre o mito da agressividade negra e suas repercussões na vida dessas mulheres. Era um relato muito pessoal e íntimo que foi compartilhado por outras mulheres que, como eu, se viam na mesma situação. Infelizmente, seis anos depois, esse texto ainda é atual e compartilhado. As mulheres negras se veem no meu relato porque a dinâmica está mais aparente e porque, graças à maior visibilidade de nossas pautas, estamos mais conscientes das muitas formas que o racismo aparece em nossas vidas: não é sem necessariamente precisar recorrer a uma violência física para o nosso silenciamento.

Além do meu texto de 2017 ter voltado a circular agora entre profissionais negras que falam sobre o mercado de trabalho, retomo o estereótipo da mulher negra agressiva por causa do “Big Brother Brasil”. Quebro uma promessa feita a mim mesma de assistir ao programa sem produzir conteúdo nenhum sobre ele porque estou profundamente incomodada com o fato de que qualquer ação de discordância, descontentamento ou não submissão por parte das mulheres negras do elenco é considerada “grosseria”, “falta de educação” ou “agressividade”. Isso ocorre neste momento do jogo, especialmente quando a protagonista é a Tina. Ela é alvo de duas dinâmicas racistas que prescindem de xingamentos raciais diretos: o policiamento de tom e as imagens de controle.

Tina, do BBB, é alvo de duas dinâmicas racistas que prescindem de xingamentos raciais diretos: o policiamento de tom e as imagens de controle

O policiamento de tom é uma dinâmica muito presente na vida de mulheres negras. Talvez você não esteja familiarizado com o conceito, o que exige uma explicação: é uma tática de silenciamento usada quando uma pessoa, propositalmente, se afasta do conteúdo de determinada mensagem e se concentra apenas na forma com que ela foi entregue. É um tipo de regulação, feito por pessoas brancas, da forma como as negras falam, reagem ou atuam frente a uma situação de injustiça ou desconforto. Aquela conversinha mole que você certamente já ouviu de que o problema é a “maneira violenta” que a pessoa está falando sobre algo que lhe afeta. É como se não fosse justo que a pessoa expressasse os seus desconfortos, como se a pessoa não tivesse o direito de ser o que ela é. Ela precisa se adequar ou será considerada grosseira, intratável e, consequentemente, responsável pelas violências que lhe são ofertadas.

O policiamento de tom e as imagens de controle são duas ferramentas que o racismo produziu para atuar na supressão do direito de pessoas negras de ser. De ser sujeito e de ser lido como ser humano que tem emoções, desejos, formas de se expressar no mundo. É também a partir deles que se estabelece uma forma de suporte para pessoas negras e indígenas que são atreladas a uma condicionante: você se comporta direitinho, como os brancos esperam que você se comporte, e aí a gente te apoia. Caso contrário, lide aí com seus problemas sozinho.

Eu passei por isso em muitos momentos da minha vida, cheguei a ter possibilidades de trabalho rompidas porque eu falava sobre racismo “de forma muito emocional”, segundo meus possíveis contratantes. É muito constrangedor porque elas evidenciam o tamanho do problema que enfrentamos: as pessoas brancas no geral não conseguem sequer dimensionar que, quando elas esperam que fale da violência racial de forma não violenta, elas estão mais preocupadas com a forma com que os brancos vão ouvir o que eu tenho a dizer do que com o conteúdo propriamente dito.

Tina foi marcada como uma pessoa ‘difícil’ enquanto mulheres brancas rudes são celebradas como icônicas, empoderadas, divas assertivas

Contudo, não é só quando falamos de racismo que esses comportamentos aparecem, como estamos vendo com Tina. No BBB, em nenhum momento falou-se diretamente sobre racismo, sendo a nossa mera presença e a forma de nos portar suficientes para sermos interpeladas como grosseiras apenas por nos posicionarmos sobre algo que não concordamos. Tina não é obrigada a reproduzir o comportamento que esperam dela, a emprestar seus acervos pessoais (como ela mesma diz), a abraçar ninguém depois de ser indicada ao paredão. Ela tem direito a reagir da forma que melhor lhe aprouver. Tina foi marcada como uma pessoa de convivência difícil enquanto mulheres brancas rudes da mesma edição são celebradas como icônicas, empoderadas, divas assertivas que não levam desaforo de ninguém.

Não é incomum que mulheres negras relatem situações em que se sentiram silenciadas por medo de serem lidas como raivosas. Esse medo é precioso para a branquitude porque reprime as vozes dessas mulheres, faz com que essas mulheres fiquem quietinhas, na delas, sem que eles precisem mobilizar nada a não ser esse estereótipo. Quando uma mulher como Tina, que se posiciona e não aceita que sua conduta seja controlada, é constantemente acusada de agressividade em rede nacional, soa um alerta no nosso cérebro: não queremos passar por essa situação, então talvez seja melhor observar tudo quietas, como objetos da paisagem ou, como dizem no programa, como “plantas”. Espera-se que não apresentemos nossas emoções em todos os espaços em que estivermos, e é justamente por isso que o policiamento de tom frequentemente está associado ao mito da mulher negra agressiva, afinal, para não sermos lidas como agressivas, é esperado que a gente não se defenda.

Quando uma mulher como Tina se defende, ela talvez passe uma mensagem perigosa para a branquitude: a de que temos o direito a nos defender, de que temos o direito a ser quem somos, de que podemos e devemos manifestar nossos descontentamentos. Tina faz isso de forma muito assertiva e elegante. Se não estivermos em condição de fazer isso com tanta educação e polidez, no entanto, quero deixar bastante explícito para minhas leitoras que suas raivas, assim como o meu texto de 2017, ainda são bastante atuais e justificadas.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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