Vanessa Rozan
O mito do auge da mulher
As expectativas de como as mulheres devem performar em determinadas fases da vida e o poder do patriarcado
Tem rodado um vídeo aí na internet de um corte do que parece ser um videocast com diversos convidados. Nessa pequena parte do vídeo aparece um senhor vestido com um blazer vermelho, brinco na orelha, camisa branca meio aberta, pulseiras no braço. Me recuso a citar o nome pois não darei palco, mas vamos usar o seu discurso para uma análise importante.
Respira fundo, a gente vai precisar chegar até o fim desta reflexão. Ele explica seu pensamento começando com a máxima de que existe “um componente de fertilidade e de beleza que conta para o homem”. Essa frase vem seguida de um tipo de comparação entre mulheres, muito comum no patriarcado, de que “uma mulher de quarenta anos não é igual a uma mulher de trinta”. Em seguida, ele complementa que temos – as mulheres cis uma “janela de fertilidade” que tem que ser aproveitada para “voar”, daí ele compara essa performance da mulher com um jogador de futebol. Calma que só fica pior.
Nessa comparação, segundo ele, não chamam homens de quarenta anos para jogar porque os moleques novos” é que estão bons para performar. Performar. Toda uma existência dedicada à performance, como uma carreira de sucesso, e pior, tudo isso na sociedade da imagem e das redes sociais. Esses dias uma prima minha, que está rumo ao doutorado, disse que não fez nada na vida. Relatou que não casou, não constituiu família, não tem filhos, e que completa 36 anos se sentindo incompleta. Eu me pego pensando qual é a régua do nosso sucesso e por que ela é tão marcada pela agenda do que a sociedade espera de nós e do nosso corpo. Eu ouvia o senhor do videocast falando e parecia que ele discutia compartilhava ótimas dicas de investimento em éguas. Vamos aproveitar a janela de fertilidade dela, comprar jovem, vender quando chegar nos quarenta porque aí ela já não tem função alguma. Se é que dá para vender. Ele chega a citar que as mulheres de quarenta anos que ele conhece dizem que ninguém as quer.
Qual é a régua do nosso sucesso e por que ela é tão marcada pelo que a sociedade espera de nós e do nosso corpo
Além de toda a pira da fertilidade e da juventude, tem para mim um conhecimento empírico que adquiri ao longo da vida: quanto mais jovem a mulher, menor a chance de que ela se oponha, discuta, não tolere, não aceite e até mesmo entenda a estrutura patriarcal que está inserida. A assimetria de idade, em geral, garante que uma das partes possa dominar mais facilmente a outra. Também é preciso contabilizar que uma mulher de vinte anos ainda tem bastante capital (do que a sociedade acha que é valioso) para ter que se rebelar contra o sistema. Você pode me dizer que avançamos muito e esse é um caso isolado, um homem e sua homice. Mas eu sinto em alertá-la, toda a sociedade ocidental foi construída em cima disso. Vamos à wikipédia. Digito “Aristóteles”. Recebo a informação de que ele “foi um dos pensadores mais influentes da história da civilização ocidental”. Trago este lindo recorte que Donna Wilshire fez do rapaz influenciador de nossa cultura, é longo mas vale a pena ler:
Aristo?teles escreveu que o Conhecimento Racional e? a mais alta conquista humana e, portanto, os homens (que, segundo ele, sa?o mais “ativos” e capazes de obter e?xito nessa a?rea estritamente mental) sa?o “superiores” (Poli?tica 1, 2:1254b) e “mais divinos” (De Generatione Animalium [G. A.] II, 1:732a) do que as mulheres, que ele descreve como “monstros”… desviados do tipo “gene?rico humano” (G. A. II, 3:737a), “emocionais”, prisioneiras “passivas” de suas “func?o?es corporais” e, em conseque?ncia, uma espe?cie inferior, mais pro?xima dos animais que os homens. Para ele, a mulher na?o e? progenitora da crianc?a; os corpos femininos sa?o meros recipientes para o esperma do homem (o verdadeiro progenitor). Nada ve? de positivo no u?tero da mulher que da? vida, nada de valioso no que se refere a?s func?o?es de alimentar e educar nossos corpos.
Você pode achar que o que Aristóteles escreveu lá em meados de 340 a.C. ficou perdido na história e que hoje avançamos muito, mas não, colega. A gente tá paradinha no século quatro antes de Cristo. Os casos de feminicídio reforçam essa verdade. Recipientes, objetos, emocionais, passivas. Para “voar” como os jogadores de futebol, atingindo o auge de nossas carreiras, temos que fazer valer essa janela, ou perderemos nosso timing de brilhar nessa encarnação. Só faltou ele botar um “deadline” nessa entrevista, eu estava esperando por essa palavra. Segundo minhas contas, se a expectativa de vida da mulher no Brasil hoje é de 80 anos, a gente vai passar uns bons sessenta deles no limbo, de acordo com o que o senhor de vermelho apontou.
O Natal está aí e tem sempre a sessão perguntas sobre o namoradinho, quando vai casar, porque não casou ainda, cadê o primeiro filho e se já tem um, melhor fazer dois. Até pouco tempo as mulheres que não cumpriam esse roteiro ficavam para titia, lembra? Graças à Deusa que mulheres de quarenta são diferentes das de trinta e diferentes das de cinquenta. Aleluia irmãs que se entendem como sujeitos de suas vidas e que em diferentes medidas quebram o protocolo do que se espera delas. Só desejo que a gente possa fechar a janela de fertilidade que o rapaz apontou como nossa meta de vida, pra abrir a porta de uma existência plena, ao longo de toda a vida.
Feliz 2023.
*Se quiser passar raiva e perder colágeno, o vídeo foi compartilhado no perfil do Instagram da conta @cool50s.
Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.
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