Coluna do Fernando Luna: Bolsonaro é um Homero — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Bolsonaro é um Homero

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre o épico silêncio presidencial, a realidade paralela num cruzeiro com 4 mil pessoas, a volta da alegria e aquela corrente pra frente (ampla!)

21 de Novembro de 2022

Eu não tenho nada a dizer e estou dizendo e isso é poesia

John Cage, 1949

Jair Bolsonaro calado é um poeta. Mas calado, sem live às quintas, sem a asneirada matinal pro cercadinho e sem tuítes diários, é um Homero.

Infelizmente o que é bom dura pouco.

A qualquer momento ele abre novamente a boca ou o aplicativo, será que já abriu?, voltando a ser apenas o pior presidente da história da República – o que já é mais do que se esperaria da sua, de resto, medíocre figura.

(Figura que fui obrigado a imaginar perambulando de cueca pelo Alvorada, depois do Mourão dizer que seu chefe sumiu por estar impossibilitado de vestir as calças, graças a uma erisipela nas pernas. O STF precisa adicionar essa declaração a um eventual rol de acusações ao vice, por incitação a pensamentos intrusivos.)

De todo modo, além de poupar os cidadãos de seus disparates por três semanas inteirinhas, podemos comemorar o efeito colateral didático do silêncio presidencial: ficou evidente que Bolsonaro não governa nem jamais governou.

Ele simplemente passou os últimos quatro anos produzindo um fluxo ininterrupto de declarações estaparfúdias, muito barulho por nada, enquando o país seguia os caprichos de ministros ou do Arthur Lira.

Sua presença no noticiário e nos trending topics era alimentada mais por suas pataquadas do que por suas ações – como ele parou de falar e continua sem fazer nada, desapareceu sem deixar vestígio.

Essa vocação pra vagabundagem salvou o Brasil.

Imagina se ele tivesse disposição pra colocar em prática suas ideias bizarras? Se não trabalhasse apenas 4,8 horas por dia, em média, desde que assumiu a presidência? Se não trabalhasse apenas 24 minutos por dia, em média, desde que perdeu a presidência?

Nem vem com “quiet quitting”: pra fazer corpo mole, seria preciso ter labutado pra valer em algum momento.

John Cage foi um dos grandes músicos do século 20, mas Augusto de Campos o descreveu como o maior poeta vivo depois da morte de Ezra Pound. O americano teorizou em sua “Conferência sobre Nada” o que acabamos de constatar na prática por aqui: um silêncio pode valer mais que muitos sons.

Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar

Sophia de Mello Breyner Andresen, 1962

Estou vivendo numa realidade paralela.

Ah, você já se apressa em retrucar mentalmente, o Brasil inteiro tá numa realidade paralela, chega de frescura, de mimimi. Mas, piedade, caí numa realidade paralela dentro da realidade paralela.

Estou num navio de cruzeiro.

Pois é. Eu e outras 4 mil pessoas. Você leu certo: q-u-a-t-r-o-m-i-l pessoas a bordo. São dois edifícios Copan inteirinhos, flutuando com seus 16 andares de aço em forma de corredores labirínticos, decorados com carpetes de cores berrantes e espelhos jateados.

Sai aquele bando de malucos cantando o hino nacional pra pneu de caminhão, entra o Eri Johnson puxando o coro de “Sou brasileiro/ Com muito orgulho/ Com muito amoooor”. Pelo entusiasmo da plateia diria que, em nossa seção eleitoral marítima, lula só é popular no arroz do buffet.

Aposto que Sophia de Mello Breyner Andresen, finíssima na vida como no próprio nome, sobrenome e letras em geral, jamais encarou um cruzeiro assim – ou arrumaria coisa melhor pra sua alma penada fazer quando voltasse a este plano astral.

Duvido que ela quisesse buscar justo esses instantes que não viveu junto ao mar.

Imagina desperdiçar a eventual assombração na aula de salsa do convés 7. Ou na jacuzzi compartilhada com cinco desconhecidos calibrados com uma garrafa de vodka e cinco Red Bull comprados no combo de 600 reais. Ou, ainda, na pool party em pleno meio-dia, som no talo e cheiro de cloro equivalente a um ataque de armas químicas.

Como vim parar aqui? Razões profissionais que a crise recomenda não contrariar.

Há jornalistas que o dever do ofício leva à guerra no Vietnã ou no Afeganistão; outros, são obrigados pelo compromisso com a verdade a reportar um surto de ebola na Libéria ou em Serra Leoa.

Não tenho essa vida fácil. A mim me coube um cruzeiro animado por shows de bandas dos anos 80, que nem nos anos 80 eram tão populares assim.

Quando desembarcar, vou checar a proa. Aposto que tem um Patriota do Navio pendurado lá na frente, boné e camisa da seleção, lutando numa realidade paralela.

Tá na hora do Jair já ir embora

Tiago Doidão, 2022

Com Lula, a alegria voltou – e essa é a melhor novidade das urnas.

Ontem, a euforia ocupou as ruas do país. Foi uma festança mesmo, ao contrário daquelas manifestações com jeito de um desfile militar dos últimos anos. Não encontrei nem uma pessoa com roupa camuflada.

Ninguém fazia arminha com a mão, defendia a volta da ditadura ou berrava de raiva. Todo mundo sorrindo, abraçando, beijando, cantando e dançando como se não houvesse amanhã – e justamente porque voltou a haver amanhã.

No ritmo dos versos de Tiago Doidão, desconstruindo “Jair” numa mistura de Augusto de Campos com piseiro, de arrocha com poesia concreta, 60 milhões de brasileiros fizeram um carnaval verbivocovisual.

“Tá na Hora do Jair Já Ir Embora” virou hino nacional e internacional, no topo da parada mundial do Spotify – olha aí o Lula já fazendo o Brasil voltar a ser protagonista global.

Na avenida Paulista, até Simone Tebet aderiu. Em geral tão abotoada até o pescoço, soltou a voz sem medo de ser feliz e cantou o instant hit no alto do carro de som, diante da multidão espremida.

(Um salve muito especial, mas muito mesmo, pra senadora, além de Geraldo Alckmin e Marina Silva, que não só apoiaram como se engajaram pra valer na campanha. Sem eles, tá claro agora, não haveria a vitória de 1,8 ponto.)

Passei o domingo como aquela camiseta: tava calmo, mas tava nervoso.

Acordei no Rio, onde mantenho minha zona eleitoral mesmo morando do outro lado da Dutra há décadas. Com cinco ex-governadores presos, o estado precisa mais de um voto consciente que São Paulo – apesar da derrota do Haddad me fazer reconsiderar a questão.

Dei uma corridinha na praia, adesivo com 13 no peito, recebendo e retribuindo o “L” com os dedos. Mais camisas do Flamengo tricampeão da Libertadores que da seleção brasileira. Mas o sinal definitivo de que tudo daria certo apareceu no avião, de volta pra casa: meu vizinho de poltrona era o ator Zé de Abreu. Receba.

Ah, sim, vai ser um desafio imenso reconstruir o país. Mas semana que vem a gente vê isso. Agora eu vou tomar um porre de felicidade.

Todo dia é dia D

Torquato Neto, 1970

Daqui até dia 30, todo dia é dia D.

Como no poema de Torquato Neto, tropicalista e timoneiro da Navilouca, todo dia vai ser preciso reafirmar a vida diante da morte. Se há “urubus no telhado” e “um escorpião encravado na sua própria ferida”, escancara logo “a porta e a janela” em vez de se encolher. O pai tá on, se liga aí também.

Hoje é dia D. Amanhã, também. Quarta, quinta, sexta e sábado. Domingo, vixe, é muito dia D, com letra capitular, maiúscula e negrito. Então, bora.

Aproveita o dia, carpe diem – latino aqui só o provérbio, jamais o cantor bolsonarista. Faz o que puder fazer nessa reta final, pra ajudar o país a acordar dos quatro anos de pesadelo, pra manter os 6 milhões de votos de vantagem do primeiro turno.

Vale panfletagem, Stories, virar o voto da irmã, virar o voto do vizinho, colar adesivo no peito, espetar pin na bolsa, vestir camiseta vermelha, vestir camisa branca. Se for de falar, fala; se for de escrever, escreve; se for de cantar, canta. Curte, comenta e compartilha o certo. Faz L com a mão, faz L com livro, faz L na urna. Só faz. Qualquer maneira de amor vale a pena.

Todo dia um desembarque da Normandia.

Contra Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto, Geraldo Alckmin e Simone Tebet. Contra Damares Alves, Marina Silva. Contra Padre Kelmon, padre Júlio Lancellotti; contra Silas Malafaia, Henrique Vieira. Contra Frederick Wassef, Joaquim Barbosa. Contra goleiro Bruno, Casagrande. Contra Paulo Guedes, Armínio Fraga. Contra 00, 01, 02, 03 e 04, 13.

Contra o Trem-Fantasma, a Frente Ampla.

(Esbarrei com Roberto Jefferson em 1986. Eu e o camarada Chung organizamos uma greve de alunos no colégio. O vilão de ópera-bufa morava em frente e correu pra pendurar uma faixa na varanda do seu apartamento: “Alunos, Roberto Jefferson apoia sua luta”. Já tentava lograr uns votos sem sair de casa, como no último domingo, fora as granadas e os tiros de fuzil.)

Essa é a eleição mais importante da história do Brasil. Pode ser a primeira eleição do resto de nossas vidas – ou a última. Vai votar enquanto é tempo.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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