Coluna da Vanessa Rozan: "A influência do privilégio" — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

A influência do privilégio

São CEO de suas imagens, vivem de influenciar com a demonstração de seu jeito de viver, ser por ser. E que lifestyle é esse que faz sucesso no Brasil?

21 de Outubro de 2022

Faz tempo que o termo blogueira caiu em desuso. Desde que blogs foram substituídos pelas redes sociais e o conteúdo de imagem passou a ser mais importante que o texto escrito. Em seu livro “De Blogueira a Influencer” (Sulina, 2020), Issaaf Karhawi descreve com profundidade como a blogosfera de moda brasileira se profissionalizou do seu início até os dias de hoje, recomendo fortemente a leitura.

Hoje em dia o mercado se expandiu ad infinitum. No começo eram as influenciadoras fitness, que davam dicas de exercícios e alimentação. Hoje há influenciadoras para todo mercado, umas dão dicas de moda, como as blogueiras e fundadoras do “look do dia” faziam; há as influenciadoras de vida sexual, de maquiagem, de livros, de viagens, de finanças, de empreendedorismo, de casamento, de carreira. São criadores de conteúdo que usam de suas expertises para monetizar nas redes sociais, dando dicas de alguém que entende mais sobre tal assunto. Com uma busca você acha um perfil que fala com propriedade e vivência sobre qualquer coisa, seguindo a receita da credibilidade da “pessoa real” dando dicas do lugar do consumidor para outro consumidor, sem aparentemente passar pelo interesse comercial de uma marca. Isso, lá no começo; hoje, sabemos que o publipost veio pra ficar, pelo menos até quando existir rede social (que hoje mais parece marketplace).

Com influencers de lifestyle de riqueza, não há serviço algum prestado, apenas o detalhamento visual de uma vida de privilégio

Mas tem uma categoria que muito me intriga. Não são pessoas que falam sobre suas carreiras ou dão dicas, ou prestam algum serviço ou são artistas. Também não são pessoas que postam fotos de suas vidas com certo verniz de beleza e olhar estético, para compartilhar com amigos. São as influenciadoras de estilo de vida. São CEO de suas MEIs e de suas imagens, vivem de influenciar com a demonstração de seu jeito de viver, ser por ser. Não há serviço algum prestado, apenas o detalhamento visual de uma vida de privilégio. E que lifestyle é esse que faz sucesso no Brasil? Certamente não é o estilo de vida do Padre Júlio Lancelotti.

O mercado de luxo nunca sofreu com tanta “escassez” no Brasil, como mostra a reportagem do querido João Batista Jr. para a revista “Piauí” –há fila de espera para compra de Rolex e disputa pelas bolsas mais caras de cada grife de luxo internacional. O aumento desse tipo de consumo foi impulsionado pela pandemia, segundo as marcas dizem. Tem até vídeo no TikTok de uma senhora que se autodenomina “Rainha do Brasil”, comentando um calmíssimo “tá barato” a respeito do valor do anel de turmalina de R$ 184.470 da joalheria em que visita.

Tá certo que esse mercado nunca foi sobre disponibilidade ou acessibilidade. Ele trabalha em cima do desejo, da exclusividade e da falta. Dos poucos e bons, do grupo seleto do qual você nunca fará parte. E, para vender para seu público, certamente esse mercado não vai eleger alguém que não é desse próprio círculo, ou alguém que pelo menos não tente com todas as forças mimetizar a riqueza e seus códigos, com toda a pompa desse estilo de vida.

Influencers de lifestyle de riqueza se proliferaram em busca de uma fatia desse mercado. Para quem não nasceu em berço de ouro, tudo bem, afinal o que os olhos veem, a mente crê, e as redes sociais promoveram parecer mais do que ser. A foto não precisa ser verdadeira, mas tem que parecer real aos olhos dos seguidores. Recomendo o documentário e experimento social “Fake Famous”, que mostra como se constrói um influenciador, desde o anonimato até os recebidos. Também tem o filme “Influencer de Mentira”, disponível no Star+, onde a menina se aplica sobre fundos da cidade Paris e faz crer que está de férias na cidade luz. Se isso não fosse um mercado tão aquecido quanto o de luxo, não existiriam empresas que alugam jatos no solo apenas para produção de fotos para redes sociais ou emprestam por sete dias a sua bolsa de marca favorita por R$ 200. Parecer rico é como ser rico, você constrói o privilégio em uma sessão de fotos, devolve tudo segunda-feira, está aí o caso do golpista do Tinder e daquela moça de Nova Iorque, que enganaram muita gente nessa construção de narrativa.

Vale forjar documentário de si mesmo, vazar a sex tape, alugar jatinho, comprar seguidores, militar por qualquer causa

Essa nova categoria não passa pela relação de intimidade ou identificação entre seguidor-influenciador. Segundo Issaff, é muito mais uma relação projetiva, que aciona os valores como os que as celebridades tradicionais carregam, só que agora num novo cenário, com novas regras do jogo. “A fama é uma possibilidade a partir da visibilidade midiática e o digital democratiza essa visibilidade midiática”, como reforça a autora. A fama não é a consequência de feitos ou conquistas de uma atuação inicial, a fama é o ouroboros dela mesma, o resultado e a busca em si. “A grande questão é ser publicamente pois visibilidade é um valor atual. Isso explica a influencer de estilo de vida, famosa por ser famosa, profissão que as Kardashians pariram nesse jogo. Os famosos são os embaixadores da meritocracia, representam os cidadãos que perseguem a riqueza pelo charme, talento e esforço”, segundo texto no New York Times sobre os efeitos do #guillotine2020, que condenava ostentação de celebridades em tempos de pandemia. Foi nesse texto, aliás, que se previu o fim desse tipo de influência. Tsc, tsc.

Pois corta para 2022 e, para a nossa surpresa, a categoria se levanta com força total, o estilo de vida da herdeira nunca foi tão vendável, está até na moda. Para chegar lá vale a bolsa do momento, a dancinha da trend (mesmo que não seja seu estilo), o look inacessível, forjar documentário de si mesmo, vazar a sex tape, alugar jatinho, comprar seguidores, contratar fotógrafa para registrar a vida perfeita, militar por qualquer causa, falar sobre política sem entender nada da história do país ou levar em conta os recortes de gênero, raça e classe. Quer entender mais? dê uma passeada nos perfis @forcaguerrreiros e @influenceratwild, ótimos e tristes exemplos desse esforço contínuo em busca da fama pela fama.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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