Um corpo que caiba — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

Um corpo que caiba

Por mais que se discuta os padrões de beleza vigentes, o nosso esforço, suor e boca fechada seguem em alta

12 de Maio de 2022

Em 1962, Marylin Monroe foi fechada (literalmente) num vestido feito sob medida para que ela cantasse parabéns para você ao então presidente dos Estados Unidos, o vestido era tão justo que ela não podia usar roupas íntimas e ele teve que ser finalizado em seu corpo. Foi sua última aparição em público, com 36 anos. Em entrevista a uma revista alguns anos antes, ela explicou sua dieta que pulava o almoço e incluía apenas carne e cenoura no jantar.

Nas últimas semanas, talvez seu feed tenha sido impactado pelas imagens do tapete vermelho do Baile do Met Gala, pelos desfiles das escolas de samba e pela pesquisa nacional que revelou que apenas 3% dos homens se acham feios.

Um dos pontos altos do primeiro evento foi a entrada de Kim Kardashian usando o vestido que Marilyn Monroe cantou parabéns pro JFK, sim aquele mesmo que acabei de citar. Na entrevista do tapete vermelho, Kardashian disse que chorou lágrimas de felicidade quando, após cortar todo o açúcar e o carboidrato, comer os “mais limpos” legumes e proteínas, usar uma roupa-sauna duas vezes por dia enquanto corria na esteira, não morrer de fome mas ser muito severa, ela perdeu sete quilos em três semanas. Seu corpo foi então autorizado a entrar na tal roupa para usá-la apenas por alguns minutos. Só de digitar tudo isso eu já cansei, tô considerando incluir como gasto calórico. Sim, ela entrou na roupa, a roupa entrou no evento e pronto, ela trocou por uma réplica em seguida.

Entre confessar que quase morreu de fome e lidar com o julgamento alheio, há quem acredite que é mais sábio silenciar o esforço

Os vídeos da celebridade subindo as escadas do evento falam por si só. Vale uma rápida viagem no tempo para lembrar que, em 2021, Kim atravessou o tapete toda de preto, rosto completamente coberto pelo mesmo tecido da roupa e só isso daria uma baita discussão semiótica de corpo e roupa. Afinal, quando nem rosto aparece, o que vemos além do corpo que veste a roupa? Em 2020, pasmem, ela não pôde sentar para apreciar o jantar. Nada a ver com restrição alimentar, é que a roupa a impossibilitava de sentar. Passou o jantar em pé.

Bom, corta para: muitas discussões sobre ela ter falado abertamente sobre o tal esforço, o suor e as lágrimas de alegria e os impactos negativos que isso poderia trazer para as mentes e corpos de outras mulheres.Daí você que chegou até aqui e já está considerando essa leitura seu exercício cardio do dia, vamos atravessar a avenida e fazer essa reflexão comigo.

Acha que as musas do Carnaval brasileiro não gastaram tempo e muito dinheiro para aqueles minutos de avenida? Cortando isso e aquilo, suando, correndo, deitando e rolando numa preparação física para a apresentação das virilhas saradas — como a tal Kardashian para seu vestido? Só não ouvi nenhuma delas falando sobre o drama de conseguir o corpo da avenida, parecia tudo normal, no estilo “nasci assim”.

Por mais que se discuta os padrões de beleza vigentes, o nosso esforço, suor e boca fechada seguem em alta

O que é melhor: saber que houve todo um trabalho e dedicação – como Kim Kardashian bem listou – e refletir sobre isso, ou fingir naturalidade e fazer a linha só-tomo-chá-verde-imagina-kkk-risos?

Entre “confessar” que quase morreu de fome para entrar numa roupa, explicitar todo o percurso de abnegação e lidar com o julgamento alheio e o cancelamento, há quem acredite que é mais sábio silenciar o esforço e o sacrifício para parecer que assim viemos ao mundo, abdômen chapado como uma benção divina.

Realmente não tô aqui pra julgar ninguém, talvez se tivesse todo o acesso, tempo e dinheiro faria o mesmo, quem sabe. O que me importa é que, de 1962 pra cá, a coisa tá na mesma página. Estamos enfiadas na roupa-sauna e, por mais que se discuta os padrões de beleza vigentes, o nosso esforço, suor e boca fechada seguem em alta. Ora falados e explicados em alto e bom tom, como fez Kardashian, ora disfarçados de genética natural, como o Instagram não me deixa mentir. Se você tem a solução, por favor me diga.

Enquanto nós mulheres somos atravessadas por tudo isso, parece que do lado de lá está tudo tranquilo.

Vou encerrar com a pesquisa do Instituto Ideia, divulgado esta semana, que mostra que apenas 3% dos homens brasileiros se acham feios. Um em cada dois se acha bonito. Claro, numa cultura construída à imagem e semelhança do homem branco, onde ele é padrão e a medida das coisas, não é de estranhar que mulheres se sintam deslocadas de seus corpos, tendo que, veladamente ou abertamente, suar para valer o quanto pesam. A pergunta é até quando a gente vai diminuir para caber?

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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