Guilherme Varella e a política pública do Carnaval — Gama Revista
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Conversas

Guilherme Varella: "Em SP, o Carnaval é tratado como empecilho pelo poder público"

Autor de livro sobre a política pública do Carnaval de rua na cidade, advogado e pesquisador diz que faltam diálogo e planejamento na atual gestão

Leonardo Neiva 11 de Fevereiro de 2024

Guilherme Varella: “Em SP, o Carnaval é tratado como empecilho pelo poder público”

Leonardo Neiva 11 de Fevereiro de 2024
Fábio Picarelli

Autor de livro sobre a política pública do Carnaval de rua na cidade, advogado e pesquisador diz que faltam diálogo e planejamento na atual gestão

Em São Paulo, o Carnaval de rua, por assim dizer, nasceu oficialmente em 1914. Foi o ano em que surgiu o Cordão da Barra Funda, tipo de agremiação que fazia sucesso na época, em que a grande maioria dos foliões vinha da classe trabalhadora. Ao longo do século 20, no entanto, a história dos cordões carnavalescos — assim como dos blocos, que surgiram mais tarde — foi menos de folia do que de repressão pelo poder público, incentivado por uma elite que enxergava o Carnaval como uma bagunça contrária aos ideais de modernidade importados da Europa na época.

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“Para ordenar esses blocos que começavam a crescer, o poder público fez com que desfilassem numa rua definida, com regras e horários”, afirma o advogado, gestor e pesquisador Guilherme Varella. Esse confinamento do Carnaval de rua se arrastou ao longo do século passado, num processo de institucionalização que desaguou na formação das escolas de samba e nos desfiles organizados em sambódromos, que conhecemos hoje. Em 1953, o próprio Cordão da Barra Funda se tornou a Camisa Verde e Branco, tradicional escola de samba paulistana que em 2024 volta a desfilar no Grupo Especial.

Grupo Carnavalesco da Barra Funda em 1915, primeiro cordão de Carnaval de São Paulo
Grupo Carnavalesco da Barra Funda em 1915, primeiro cordão de Carnaval de São Paulo
Acervo Centro de Documentação e Memória do Samba/Prefeitura de São Paulo

Porém, é muito mais nos blocos populares e foliões que se concentra Varella no livro “Direito à Folia” (Alameda, 2024), fruto dos cinco anos de pesquisa que geraram sua tese de doutorado sobre o tema. Após décadas funcionando na marginalidade, com restrições que tornavam praticamente impossível sair às ruas de forma oficial, os blocos ganharam sobrevida em São Paulo a partir de 2013, quando a prefeitura desburocratizou e passou a prestar apoio ao Carnaval de rua. Em 2024, mais de 500 blocos devem sair às ruas da capital paulista, reunindo 15 milhões de foliões.

“O Carnaval é uma manifestação popular relacionada às matrizes da nossa formação identitária, um patrimônio imaterial de diversas dimensões no Brasil, um conjunto de linguagens artísticas. Então está ligado à preservação da nossa identidade”, afirma Varella em entrevista a Gama. Ao analisar na obra os dez anos de política pública que permitiram a retomada do Carnaval de rua na cidade, o pesquisador ressalta o direito às manifestações culturais, no mesmo patamar de questões como educação e moradia, e associa o retorno dos festejos nas ruas e avenidas à ascensão da ocupação das cidades no mundo todo.

Varella, que desfila anualmente no bloco Saia de Chita, no bairro da Pompeia, também foi assessor do Secretário de Cultura de São Paulo Juca Ferreira em 2013, ajudando a elaborar as bases da política pública do Carnaval de rua. Para ele, no entanto, a tradição tem sofrido com graves problemas de gestão. Renascida como uma festa democrática e inteiramente pública, o Carnaval vem enfrentando a falta de diálogo, o retorno da burocracia, a repressão policial e uma apropriação dos blocos por marcas de cerveja, diz o especialista. Este ano, por exemplo, um recorde de mais de 100 blocos cancelaram a participação no Carnaval da cidade, por falta de patrocínio e incentivos públicos.

 Meneson Conceição/Labfoto © 2023

“O Carnaval voltou a ser mal visto, com uma ideia de cidade como objeto de privatização, fortalecimento da segurança pública e gentrificação. Em São Paulo, o Carnaval é tratado como empecilho pelo poder público”, declara Varella. Na conversa com Gama, ele trata também da necessidade de uma gestão cultural para o Carnaval, da elitização dos blocos na cidade e do incentivo aos desfiles nas periferias.

  • G |Como você define o direito à folia? Por que celebrar o Carnaval de rua é tão importante?

    Guilherme Varella |

    A gente coloca o direito à folia dentro do rol dos direitos culturais. Ou seja, é uma categoria autônoma dentro da Constituição, no mesmo patamar de direitos como educação, trabalho e moradia. O exercício desse direito garante uma cidadania cultural. O Carnaval é uma manifestação popular relacionada às matrizes da nossa formação identitária, um patrimônio imaterial de diversas dimensões no Brasil, um conjunto de linguagens artísticas. Então está ligado à preservação da nossa identidade. Mas o Carnaval vai além disso, é uma liberdade. Quando existe um direito social, o Estado tem que criar condições e colocar o time em campo para garanti-lo. Quando falamos em liberdade, é hora de tirar o time de campo para que a expressão individual ou coletiva seja exercida de forma plena. Não pode colocar força policial, fiscalização indevida ou obstáculo administrativo para coibir. O Carnaval de rua é uma liberdade de expressão artística e cultural, garantida pela Constituição.

  • G |Como ele se relaciona com a defesa do direito à cidade?

    GV |

    O direito à cidade é um guarda-chuva de direitos, uma plataforma de reivindicação para que a cidade seja fruída com mais convivência, sociabilidade e uso do espaço público. Quando ocupa radicalmente o espaço público com suas alegorias, adereços, músicas e corpos, o Carnaval vira um vetor privilegiado de projeção do direito à cidade. Como exercício político, é também um direito fundamental de protesto e associação. Um bloco vai à rua com uma mensagem política, uma música que reivindica, critica e escracha, uma postura de contestação da moral e do status quo. Ele coloca os corpos na rua de forma que eles habitualmente não se colocam, fantasiados, inebriados, fora das roupas e atitudes cotidianas. O Carnaval tem uma carga descomunal de manifestação política. Todos esses aspectos conformam o direito à folia, o direito de exercer uma manifestação cultural.

  • G |Há uma linha de argumentação que liga o Carnaval à obstrução e degradação do espaço público. Como lidar com esse movimento?

    GV |

    Assim como temos acesso a serviços de saúde e educação, estamos fruindo de um serviço importante para a população e um direito. Ele ocupa a cidade, levando à mitigação de outros direitos, como a segurança pública, o conforto acústico e a mobilidade, que precisam ser compatibilizados. A discussão que sempre ocorreu é de que o Carnaval não seria um direito, mas uma bagunça. Historicamente, sempre se tentou rebaixar a proteção jurídica do Carnaval. Só que a própria Constituição coloca o direito cultural no mesmo patamar. Se o momento é de exercício do direito ao Carnaval, os outros precisam conviver no mesmo espaço urbano. Para isso serve a política pública, que funciona como a mediação de diálogo entre os principais agentes, uma redução de danos.

  • G |Qual foi a virada de chave para que o poder público em São Paulo fizesse esse movimento de revalorização dos blocos?

    GV |

    A partir do século 21, os blocos marginalizados começam a se mobilizar numa perspectiva de fortalecimento global do direito à cidade, que incorpora o direito à cultura. O Carnaval de rua talvez seja a manifestação cultural mais radical de ocupação do espaço público. Então ele vai aglutinando os blocos ao longo de 2011 e 2012, quando se organiza o Manifesto Carnavalista, que reivindica à prefeitura descriminalizar o Carnaval de rua. Como o prefeito Fernando Haddad tinha sido eleito com uma plataforma de ocupação do espaço público, a prefeitura enxerga ali algo pertinente com sua agenda. Essa confluência permite implementar uma política pública de apoio aos blocos. Nas décadas de 1990 e 2000, as gestões em São Paulo tinham criado obstáculos administrativos, exigindo um sem número de autorizações que um bloco comunitário não teria condições de conseguir. E os blocos irregulares eram objeto de repressão policial. Esse modelo anti-Carnaval foi abandonado, os blocos só precisam se cadastrar na prefeitura, que presta os serviços necessários, com a regra de que o Carnaval de rua não pode ser privatizado. A desburocratização abriu as comportas. Essa política fez com que os blocos passassem de 40 em 2013 para mais de 600 em 2020, porque se criaram condições urbanas mínimas.

Desfile do tradicional bloco Saia de Chita, em que Varella sai anualmente como folião, no bairro da Pompeia
Desfile do tradicional bloco Saia de Chita, em que Varella sai anualmente como folião, no bairro da Pompeia
Fábio Picarelli
  • G |A política do Carnaval de rua paulistano se baseou no de outras cidades pelo país?

    GV |

    Foi uma política que se baseou e também negou esses modelos. Primeiro, negou o licenciamento do espaço público que acontecia em Salvador. Aqui, o Secretário de Cultura Juca Ferreira optou por um modelo público, gratuito e democrático de ocupação das ruas. O modelo carioca foi o mais próximo do que a cidade adotou, em que os blocos se cadastram e vão às ruas de forma livre nos seus territórios. A prefeitura arca com os serviços mínimos, como banheiros químicos, limpeza e fechamento de ruas. E a iniciativa privada entra para ajudar, ativando suas marcas no Carnaval. Inclusive alguns problemas surgem primeiro no Rio e só depois aparecem em São Paulo, como a hiper mercantilização, que vem acontecendo lá há mais de uma década. Nos últimos anos, São Paulo tem visto uma apropriação do Carnaval pelo excesso de marcas e a ativação selvagem das cervejarias, que chamo de “ambevização”. Outra questão é a tentativa de cercear o Carnaval, incluindo gradis e revistas. São todos problemas que vamos identificando aqui.

  • G |Você também é folião. Como se iniciou a sua ligação com o Carnaval?

    GV |

    Começou por uma questão afetiva. Sou apaixonado por Carnaval. Temos um bloco há 17 anos em São Paulo, o Saia de Chita, que surgiu em São Luiz do Paraitinga e hoje sai na Pompeia. Em 2013, fui assessor do Juca Ferreira na implementação da política pública do Carnaval de rua. Ali virou um assunto de gestão para mim. E sou pesquisador. Quando fiz meu doutorado em direito, optei por um projeto sobre proteção jurídica ao Carnaval de rua. Passei cinco anos elaborando a tese, que resultou no livro “Direito à Folia”. Então meu interesse é como folião, pesquisador e gestor. O livro traz uma confluência desses três olhares: o olhar empírico de quem faz o Carnaval, o olhar institucional e administrativo de quem gere e o olhar acadêmico de quem analisa criticamente a política. O livro traz a análise desses dez anos olhando as lacunas e falhas desde a gênese dessa política.

  • G |Mais de 100 blocos cancelaram sua participação alegando falta de patrocínio e diálogo com a gestão Ricardo Nunes. O que vem acontecendo?

    GV |

    A política de Carnaval tem que ser de cultura, apesar de abarcar aspectos como turismo, comunicação e zeladoria urbana. O problema começa quando a Secretaria de Cultura abandona o Carnaval de rua. Ele deixou de ser uma pauta cultural em 2017, quando a gestão mudou. O Carnaval voltou a ser mal visto, com uma ideia de cidade como objeto de privatização, fortalecimento da segurança pública e gentrificação. Em São Paulo, o Carnaval é tratado como empecilho pelo poder público. Com isso, criou-se um abismo entre a política pública e a vida cultural do Carnaval. Como organizar uma política pública sem diálogo? Como organizar um sistema de financiamento e patrocínio sem entender as reivindicações dos blocos? Então há um esvaziamento da política. O Carnaval de rua cresceu muito em São Paulo, com 15 milhões de pessoas e mais de 600 blocos. Como pagar essa conta? Agora tem Carnaval azul, vermelho, amarelo, com cada cor representando uma cerveja. Não é mais o Carnaval de São Paulo ou do Rio, mas de tal marca. Essa superexploração do Carnaval e a mitigação da diversidade estética geram um efeito problemático, bloqueando sua originalidade. E, se os recursos de patrocínios não são bem geridos, a quantidade não importa. Se você está distante do Carnaval, não vai saber onde colocar banheiros químicos nem como diferenciar um bloco comunitário de um megabloco. A criação de condições para o Carnaval de rua passou a ser pouco eficiente.

  • G |Também há um problema de desequilíbrio dos patrocínios?

    GV |

    As empresas procuram blocos de apelo midiático, que levam milhões de pessoas à rua, com grandes artistas.Os blocos que recebem dinheiro são aqueles que já têm. Na prática, são poucos em um mar de mais de 600. A maioria é vítima de uma distorção típica do mercado: a concentração do patrocínio. O papel do Estado é intervir para corrigir essas distorções, é preciso criar uma política de fomento para atender os desamparados. Com pouco recurso, dá para fazer um grande Carnaval. Só que, para isso, precisa entender onde estão e que blocos são esses. Se o Carnaval deixou de ser uma política cultural, como entender essas especificidades? Um edital de fomento desastrado mistura todos esses blocos, os que têm patrocínio e os que precisam de dinheiro público. Um bloco como o Ilú Obá De Min, de mulheres negras, que sai há mais de 20 anos no Centro, não ser beneficiado é um exemplo da falta de compreensão da vida carnavalesca. Do ponto de vista financeiro, acaba ficando insuficiente e ruim para todo mundo. A má gestão não leva o mínimo necessário, de banheiro químico a fechamento de rua. Já os megablocos têm dinheiro, estrutura e patrocinador, só que a má gestão impede que alguns realizem seus desfiles.

  • G |Hoje, qual é a identidade carnavalesca de São Paulo?

    GV |

    O Carnaval de rua de São Paulo sempre existiu, só que antes ele resistia na marginalidade. Sua afirmação política a partir de 2013 contribuiu para que ele se estabelecesse como uma realidade da vida cultural paulistana. São Paulo consolidou uma imagem da cidade do trabalho, que nunca dorme, sempre com o imperativo da produtividade sem fim, da ordem, da velocidade. O Carnaval de rua contesta essa lógica, propondo uma São Paulo do lazer, da brincadeira do ócio e da folia. Esse éthos disputa um imaginário da cidade na exuberância e enormidade dos blocos. E o Carnaval de rua também absorveu a feição cosmopolita da cidade, os conflitos estéticos e simbólicos do ambiente cultural paulistano. Não é um Carnaval intrinsecamente conectado aos gêneros tradicionais, com uma diversidade estética incrível. Tem blocos mais tradicionais, ligados ao samba, mas também blocos de techno e punk rock, blocos queer, LGBTQIA+ e de homenagem a artistas individuais, tudo isso convivendo no espectro carnavalesco. Uma identidade que é uma espécie de “desidentidade”, por compor várias identidades estéticas em um Carnaval inusitado.

  • G |O Carnaval de São Paulo é elitizado?

    GV |

    A retomada do Carnaval de rua nas capitais é de classe média, branco e intelectualizado. Os blocos foram às ruas em centros expandidos, lugares ligados à universidades e à vida artística. Então, num primeiro momento, são blocos da classe média branca. Mas o Carnaval sempre existiu nas periferias, ligado às comunidades de terreiro e às escolas de samba. O que nunca teve foi apoio público para se projetar. Agora começa um movimento de articulação desses blocos, exigindo que os serviços públicos cheguem até eles. É importante que a gente evolua para um Carnaval democrático, pela cidade inteira, sem cerceamento nem proeminência de uma população rica e branca. Toda a sociedade deve ter a capacidade de exercer o Carnaval, o acesso a recursos e condições. A democratização plena passa por todas essas esferas, incluindo a questão racial.

  • G |Hoje, quais desafios o Carnaval e o poder público enfrentam em São Paulo?

    GV |

    Vemos sintomas claros de erosão da política do Carnaval de rua. Sintomas como o esvaziamento do conteúdo cultural da política pública, a falta de diálogo com os blocos e o retorno da burocratização. Hoje as regras são muito rígidas, como a de que todos os blocos têm que terminar às 18h. De forma inédita, há um conluio entre as forças policiais e a Guarda Civil Metropolitana, que atua de forma repressiva. A política foi parar nas subprefeituras, que tratam isso como um curral, com influência de interesses locais. A prefeitura tem usado os grandes blocos como parâmetro para todos, só que não se pode aplicar a mesma lógica para um pequeno bloco comunitário. E, por último, tem a anuência da prefeitura para que a iniciativa privada se aproprie do Carnaval. As empresas são bem-vindas, mas a prefeitura deve regular sua atuação para que tenha a ver com os valores do Carnaval, como sociabilidade, liberdade e valorização do espaço público. Não dá para agregar a isso valores empresariais antigos, de exclusividade, selvageria e apropriação.