Luiz Antonio Simas fala sobre os problemas do Carnaval — Gama Revista
Qual é a sua fantasia?
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Conversas

Luiz Antonio Simas: "O Carnaval aponta o que o Brasil deveria ser, uma solução coletiva"

Historiador e escritor fala sobre os tensionamentos que circundam a maior festa popular do país: “Anda no fio da navalha entre a domesticação e o ataque pelo poder público”

Isabelle Moreira Lima 19 de Fevereiro de 2023
Reuters/Rickey Rogers

Luiz Antonio Simas: “O Carnaval aponta o que o Brasil deveria ser, uma solução coletiva”

Historiador e escritor fala sobre os tensionamentos que circundam a maior festa popular do país: “Anda no fio da navalha entre a domesticação e o ataque pelo poder público”

Isabelle Moreira Lima 19 de Fevereiro de 2023

Muitas palavras podem ser usadas quando o tema é o Carnaval. Mas talvez a mais proferida pelo historiador e escritor Luiz Antonio Simas, um grande estudioso da maior festa popular do Brasil, em entrevista a Gama tenha sido “tensão”. Ele joga luz sobre vários “tensionamentos” que circundam o evento hoje no país: na disputa entre a regra e a espontaneidade; entre a massificação e a especificidade; entre a violência e a beleza. “O Carnaval anda no fio da navalha desses tensionamentos. Sua relação com o poder público sempre passou pela esfera da repressão pura e simples e do ataque às suas manifestações; ou a da ordem e da disciplina, uma ‘domesticação'”, afirma.

O que explica essa tensão constante é o caráter transgressor da festa: para cada ação de repressão ou ataque, há uma reação. “A rua tem uma pulsão que é difícil de disciplinar“, ele diz. E é aí que vem a parte mais bonita da celebração: o inesperado e o improviso, características que fazem o Carnaval brasileiro.

Para Simas, que é autor de livros como “Dicionário de História Social do Samba” (2015), com Nei Lopes, e “O Corpo Encantado das Ruas” (2019) e acaba de relançar “Samba de Enredo: História e arte” (2023), todos pela editora Civilização Brasileira, não foi o Brasil que inventou a festa, mas o contrário, foi o Carnaval que inventou este país. E mais: nos aponta para um Brasil melhor, plural, diverso, que não policia os corpos, que aprecia a beleza, que festeja a vida.

O historiador rebate quem acusa o Carnaval de ser uma festa da alienação. Diz que, historicamente, o Carnaval sempre usou do humor para acompanhar a política corrente e fazer crítica a ela. Por isso mesmo, neste ano, aposta que um hit das fantasias será o patriota do caminhão. “Vai ter muita fantasia sacaneando esses desvarios patrióticos.” E ele, qual será sua fantasia nesse Carnaval? “Gosto de estar disponível para o inesperado, inclusive na fantasia”, afirma na entrevista que você lê abaixo.

O Carnaval vive um tensionamento entre a ordenação da rua e a espontaneidade, que sofre ataques muito sérios

Luiz Antônio Simas em dois momentos, hoje e em seu primeiro Carnaval como folião  Monica Ramalho e Arquivo Pessoal

  • G |Os críticos dizem que o Carnaval é um momento de alienação. Você fala que é um momento de agudização das questões sociais. Como você acha que o Carnaval de 2023 pode transgredir? Ele vai ser diferente dos outros?

    Luiz Antonio Simas |

    O Carnaval é a festa do inesperado, sobretudo o de rua. É difícil pautá-lo, ele sempre foi muito engajado com o contexto corrente. Dizer que é uma festa alienada não faz sentido. Os da década de 1880 discutiram a abolição. Os carnavais da época da crise da monarquia satirizavam a figura do imperador. Os de 1980 levantavam carnavalescamente a bandeira da redemocratização do Brasil. Está longe de ser uma festa desconectada do seu tempo. Marchinhas são verdadeiras crônicas do que acontecia no Brasil; você pode estudar uma época ao ouvi-las porque ali tem de tudo: a crônica de costumes e a sátira política. Os carnavais mais recentes e o deste ano trazem um retorno às ruas depois do período dramático da pandemia, o que deve agudizar uma série de pautas que estão na ordem do dia do Brasil; a começar pelo fato de que nos livramos do presidente Bolsonaro – não consigo imaginar o bolsonarista carnavalesco porque no imaginário da extrema direita brasileira é a festa da desordem marcada pela relevância das populações afrodescendentes e da rua. Este Carnaval vai celebrar duas coisas: uma reconexão com a ideia do encontro e de engajamento na luta contra o extremismo, o grotesco, o fascismo. A rua tem uma pulsão que não dá para disciplinar. Pode acontecer qualquer coisa.

  • G |Mas e no que diz respeito a ser o primeiro Carnaval pós-pandemia? Será como o que veio depois da gripe espanhola, uma explosão de loucura e euforia?

    LAS |

    O Carnaval de 1919 foi extremamente maluco no Rio de Janeiro, porque a gripe espanhola foi mais forte nas cidades portuárias. Foi arrasadora, mas rápida. Em comum entre o Carnaval da espanhola e o de agora, temos uma festa de sobreviventes. Mas o ciclo de aglomeração hoje é muito mais intenso, tem micareta fora de época, festival, festa. As grandes aglomerações já ocorreram e vêm ocorrendo, ninguém vai sair de casa pela primeira vez para brincar Carnaval; na espanhola, foi assim. Temos um discurso de ordem pública que hoje em dia é muito mais atuante, uma tentativa de disciplinar o Carnaval. Há também uma certa mercantilização da festa. A espontaneidade dos carnavais de outrora, da Espanhola, ficou difícil. Temos os megablocos patrocinados por marcas de cerveja que precisam de um alvará e é a prefeitura que determina onde vão desfilar, a que horas começam e terminam. O Carnaval vive um tensionamento entre a ordenação da rua e a espontaneidade, que sofre ataques muito sérios. Um deles está relacionado com o avanço avassalador de certas designações pentecostais que vêem a festa como o reino do demônio. Outro é ligado à ordem do mercado, à circulação de capital. Será aquela pulsão de rua, aquela celebração da vida numa circunstância em que a morte simbólica – do bolsonarismo – e concreta – da pandemia – acossou o Brasil.

  • G |Essas ameaças ao caráter público do Carnaval são perigosas? Os foliões podem fazer alguma coisa?

    LAS |

    Na rua, ou você tem uma esfera do poder público, da repressão pura e simples, do ataque às manifestações do Carnaval; ou você tem a que opera na ordem da disciplina, que é o que você corretamente chama de domesticação. Sendo que você pode disciplinar o Carnaval de várias maneiras, até quando você estabelece a marca de cerveja que o sujeito vai ter que tomar num bloco. O que é fascinante no Carnaval é que há um processo de reação a esse tipo de coisa, as “manifestações de fresta”. Nas frestas dessa ordem disciplinar, você vai tecendo as suas maneiras de praticar a cidade, a rua, o corpo. O Carnaval no Brasil nunca foi um consenso. A história mostra nos entrudos, depois nos cordões, nos blocos de rua, que é pau o tempo todo. Há um certo Brasil que experimenta a vida e constrói significados a partir do Carnaval, mas você tem um Brasil que reage a isso da forma mais tacanha. Mas vamos ter as frestas, muita coisa acontecendo à revelia e a despeito da ordenação pública.

  • G |E o que você quer dizer com isso? São blocos que não estão programados?

    LAS |

    Teremos uma proliferação de pequenos blocos; uma ocupação de outros espaços urbanos, que não aqueles destinados pelo poder público, como uma reação. O Carnaval de bairro opera numa dimensão reativa a esse Carnaval das grandes multidões. Você pode ter certeza que 30 pessoas que não conseguem mais se imaginar num bloco com 2 milhões, mas ao mesmo tempo não conseguem se imaginar fora do Carnaval, farão algo. Há uma distinção entre o Carnaval tragado pela cultura do evento e o Carnaval que é um evento da cultura. Parece só um jogo de palavras, mas não é não. A cultura do evento não tem organicidade, é ditado pela lógica da circulação de capital. O Carnaval que é um evento da cultura se manifesta nas periferias, nos pequenos blocos. O Bola Preta, no Rio de Janeiro, é um megabloco, mas ao mesmo tempo tradicionalíssimo, com mais de cem anos. Aos poucos vão surgindo deste blocão uma quantidade muito grande de pequenos blocos. Daqui a pouco tem 15 caras que saem lá do Bola Preta cantando “A Jardineira” e vão parar numa esquina qualquer e vão continuar ali brincando Carnaval. Assim, os fragmentos dos megablocos vão se espalhando por cidades como Rio, São Paulo e Belo Horizonte. O Carnaval vive um tensionamento também entre o espontâneo e o que é controlado, entre a circulação de capital e a prática da rua.

Foliões no Cordão do Bola Preta, na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, em 2007  Reuters/Jorge Silva

O Brasil não inventou o Carnaval, mas de certa forma foi inventado por ele

  • G |Algumas cidades que não eram exatamente conhecidas pelos seus carnavais de rua estão fortes agora: São Paulo, Fortaleza, etc. Que sintoma é esse que o Carnaval dessas cidades mostra?

    LAS |

    O primeiro sintoma, por incrível que pareça, parece um paradoxo, mas é o superdimensionamento dos carnavais do Rio, de Salvador e de Recife e Olinda. O Carnaval é dinâmico, ele vai reagindo. Você teve uma centralidade tão inchada desses três carnavais, que acabou gerando uma reação: não tem mais condição de ir para esses lugares, então a gente pode construir um Carnaval a partir daqui, da nossa experiência. Essa descentralização da festa é muito interessante. E não só Fortaleza, Belo Horizonte, São Paulo. Tem muitas cidades de médio e pequeno porte em que o fenômeno carnavalesco vem crescendo de uma forma efetiva, com a ideia da ocupação da rua e o desejo de brincar do folião. Eu conheço gente que brinca Carnaval de rua em São Paulo, porque diz que os grandes ficaram inviáveis economicamente. De certa forma, cada um desses lugares a princípio começa emulando outros carnavais, o baiano, o carioca, o pernambucano, mas aos poucos você vai construindo os significados ligados àquele chão. O que o pessoal do maracatu cearense diz é que esse crescimento do Carnaval de rua lá repercutiu também na volta do interesse pelo ritmo. Tem uma garotada que sabe que o samba de São Paulo não é igual ao samba do Rio de Janeiro ou da Bahia, e isso repercute também na sonoridade da rua. Essa dinâmica faz o Carnaval estar vivo, mesmo com todos os dilemas que envolvem o processo.

  • G |Tendemos a achar que é uma festa nacional. Mas há especificidades que se mantém?

    LAS |

    Sim, elas se mantêm numa relação tensa com uma tentativa de padronização.

  • G |Que vem de quem?

    LAS |

    Vem da questão mercadológica. Tem um Carnaval que vai sendo padronizado. Também vem da grande mídia, que durante muito tempo só transmitiu e massificou um determinado tipo de Carnaval.

  • G |Quais são as influências de cada povo que chegou por aqui? Dá para traçar uma árvore genealógica do Carnaval brasileiro?

    LAS |

    O Carnaval brasileiro é uma festa que chega com os portugueses, que surge na Europa como transgressão à criação da quaresma pela Igreja Católica: “Nós vamos pintar e bordar antes para gastar tudo que a gente tem. Se é para ficar 40 dias espiando o pecado, então eu vou pecar mesmo”. O Carnaval é uma festa de transgressão em suas origens, uma festa portanto que mora naquela encruzilhada que sacraliza o profano e profana o sagrado. Mas ele sofre um impacto muito forte do processo de construção do Brasil, é vigorosamente atravessado pela influência das Áfricas plurais que vieram para cá. A africanização do Carnaval brasileiro se manifesta no samba, nas escolas de samba, nos cordões carnavalescos, nos blocos baianos, nos cortejos de candomblés, nos blocos de rua. Hoje, o Brasil é um país que tem uma experiência de multiplicidade: um desfile de escola de samba traz a referência dos tambores dos terreiros de candomblé; mas tem um cortejo dramático, ilustrado por carros alegóricos, que são uma tradição no Carnaval de Nice, da França. Tem o Carnaval da máscara que cruza tudo, desde as sociedades secretas africanas e a tradição indígena, até os salões de baile venezianos. A marchinha também é uma música fundamentalmente de salão e europeia. Tem uma circularidade na cultura. O Brasil não inventou o Carnaval, mas de alguma forma foi inventado por ele.

O Carnaval é uma festa de reconstrução do sentido coletivo da vida

  • G |Falando agora sobre as máscaras, há quem diga que, no Brasil, em vez de usar máscaras, as pessoas as tiram no Carnaval, são mais verdadeiras. O que a festa revela sobre quem somos e o que tentamos esconder o ano inteiro?

    LAS |

    Ao mesmo tempo que é uma festa do velamento, é a do desvelar. O próprio Aldir Blanc dizia que é aquele período em que a gente tira a fantasia que usa no resto do ano. Levanto aqui uma dúvida: o Carnaval é uma festa de transgressão ou é aquela festa que, ao transgredir, permite que a ordem social se estabeleça? É um dilema. É uma festa diversa, traz essa dimensão da diversão, da diversidade, afronta de uma forma vigorosa um padrão que foi construído no Brasil e que tem origens coloniais: um padrão branco, heteronormativo, patriarcal, disciplinador, domesticador dos corpos. O Brasil é uma disputa, não é um consenso. É tensionado entre o pau que bate no corpo e a baqueta que bate no couro do tambor para reinventar a vida como samba. A nossa história é a de uma guerra que envolve o controle dos corpos, a concentração de riqueza, a tentativa de construir sentidos de vida a despeito de tudo isso. Mas o Carnaval pode indicar o que nós deveríamos ser, esse país diverso, plural. É a festa da pluralidade, da diversidade, da diversão.
    O Rio de Janeiro é uma cidade tensa, extremamente violenta, ao mesmo tempo produtora de sentido de vida, de beleza. Uma das coisas que talvez mais mascaram o que é efetivamente o Rio de Janeiro é a certa construção simbólica do mito do carioquismo, do carioca consensual, praieiro. A cidade é um quebra-pau. E o Carnaval desvela tudo isso, tem a tarefa importante de apontar o tipo de rua, de cidade e de gente que queremos, o tipo de relação que queremos estabelecer com o outro, porque estamos mergulhados cada vez mais em um mundo que nos empurra para a individualidade absoluta.

  • G |Já ouvi você citar que “a gente festeja não porque a vida é boa, mas justamente porque ela não é”. O Carnaval tem um fundo melancólico também?

    LAS |

    O sentido da festa no Brasil é um sentido de transgressão do horror, porque nós somos um projeto horroroso de estado-nação: violento, excludente, castrador, genocida, aniquilador de corpos, de saberes, de tecnologias. Mas ao mesmo tempo, nas brechas desse projeto, foram construídos sentidos de beleza. É o que eu proponho como uma guerra entre o Brasil e a brasilidade. Não dá para entender as festas populares do Brasil sem levar em consideração esse dimensionamento de construção do sentido da vida. Desconfio seriamente que fazemos festa porque a vida não é boa, porque se fosse, acho que nem faríamos.

  • G |Você teve problemas na adolescência ao se fantasiar de espinha e de pomba do divino Espírito Santo. Como é sua relação com fantasias hoje? O que que vai cair bem neste ano para você?

    LAS |

    Comecei a estudar o Carnaval porque nunca fui um folião exemplar. Eu era um pouco desajeitado, botava fantasia mas não conseguia me entregar à folia de uma forma mais efetiva. Fui espinha, desfilei na ala das baianas de escola de samba do acesso porque estava faltando baiana. Neste ano, o que vai ter de patriota no caminhão não tá no gibi, vai ter muita fantasia sacaneando os desvarios patrióticos. Gosto da fantasia improvisada, que surge de uma maneira espontânea. Me comovem mais do que a superprodução. Gosto de estar disponível para o inesperado no Carnaval, inclusive na fantasia.