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Reportagem

A paixão brasileira pelo vira-lata caramelo

O cachorro de pelagem dourada, que marca presença em quase todo bairro do país com características como sociabilidade, resiliência e carisma, tornou-se ícone cultural nacional

Ana Elisa Faria 02 de Novembro de 2025

A paixão brasileira pelo vira-lata caramelo

Ana Elisa Faria 02 de Novembro de 2025

O cachorro de pelagem dourada, que marca presença em quase todo bairro do país com características como sociabilidade, resiliência e carisma, tornou-se ícone cultural nacional

Os brasileiros reconhecem de longe a pelagem dourada, o rabo balançante, o trote rápido e leve, o faro curioso e a festinha quando alguém se aproxima. O vira-lata caramelo está em todo lugar: nas ruas, nos parques, nos quintais, na televisão, nas redes sociais. De apelido carinhoso, virou símbolo não oficial da nação, ícone cultural, de afeto e de pertencimento. Um mascote que exala simpatia por onde passa.

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Nos últimos anos, esse personagem tipicamente verde-amarelo deixou de ser invisível para ocupar lugar de protagonista em filme arrasa-quarteirão. O estigma de “bicho de rua” ficou para trás e ele entrou na família, nas campanhas publicitárias, nos memes e nas histórias de adoção.

Apesar de todo esse amor pelos cachorros com cor de açúcar queimado, os dados mostram um cenário de abandono. Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem cerca de 30 milhões de animais abandonados, sendo dez milhões de gatos e 20 milhões de cães. Os sem raça definida (SRD) preto e caramelo são os mais deixados para trás. Por isso, a discussão sobre adotar com responsabilidade, castração, uso de microchip e educação de tutores volta ao centro.

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Na Netflix, o longa-metragem “Caramelo” fixou essa mensagem nacionalmente, e para os estrangeiros, ao acompanhar a trajetória de um cãozinho comum e fofo e de um humano em recomeço — desde a estreia na plataforma, em 8 de outubro de 2025, a obra escrita e dirigida por Diego Freitas não saiu da lista das mais vistas no mundo.

O que o caramelo diz sobre nós

“Quase todo brasileiro tem uma lembrança carinhosa de um caramelo no bairro”, diz a médica veterinária Talita Lopes, do Centro Veterinário Manuel Lopes, em São Paulo. Para ela, esse fascínio tem raízes culturais: o caramelo é percebido como um animal forte, esperto e adaptável, características que despertam afeição e reforçam um senso de familiaridade; criam identificação. “Ele reflete os traços mais profundos da nossa identidade e da nossa cultura.”

A internet turbinou esse afeto quando fotos e vídeos de cães dourados andando, correndo e em situações cômicas explodiram nas redes, entre 2012 e 2015, conforme cita Lopes, transformando o caramelo em ícone pop reconhecível do feed à praça da esquina. “Além disso, memes e personalidades da internet ajudaram a popularizar a ideia do cachorro caramelo como uma espécie de símbolo de fofura e humor canino”, pontua a profissional.

Os caramelos têm um espírito brasileiro; são simpáticos, queridos, companheiros

Jéssica Kibrit, gestora de projetos, traduz esse encanto em termos simples. “Os vira-latas caramelo têm um espírito brasileiro; são simpáticos, queridos, companheiros. Estão aí para todos os momentos, bons ou ruins”, afirma. Ela cita o próprio cão, o Perrengue, hoje com 15 anos. “Ele esteve comigo nos momentos mais importantes da minha vida: quando casei, quando tive meus dois filhos, em viagens e em festas. Sempre foi nosso grande companheiro.”

A ciência também ajuda a explicar por que há tantos caramelos Brasil afora. Sem uma seleção de raças, a população de cachorros e cadelas cruza de forma natural, convergindo para um padrão comum, com descendentes que reúnem aspectos dominantes, como porte médio e pelagem curta em tons castanhos. É o que explica o doutor em microbiologia e divulgador científico Atila Iamarino no vídeo “A origem do vira-lata caramelo”. “Quando nós paramos de escolher quais são os cachorros que podem cruzar, essa diferença toda tende a sumir, principalmente entre vira-latas”, fala o biólogo na publicação.

Iamarino comenta ainda o motivo pelo qual os SRDs costumam ter uma vida mais saudável e longeva, em comparação com alguns animais com pedigree. “Nesse processo de criar e manter raças puras, que respeitam o padrão de cor e porte, nós também acabamos fixando nessas raças problemas genéticos, que encurtam bastante a vida dos seus portadores. Enquanto pela própria mistura, os vira-latas vivem muito mais e têm menos doenças do que cães de raça.”

Entre o hype e a realidade do abandono

Por trás do hype nas redes, a rua continua superlotada. Nos abrigos e nas feiras de adoção, quem sobra com mais frequência são os sem raça definida pretos e caramelos — maioria na população e alvo de preconceitos antigos que não foram totalmente desmistificados com a recente popularidade. Em escala nacional, estimativas apontam dezenas de milhões de cães e gatos sem lar, cenário que só muda, de acordo com especialistas, com castração, microchipagem e educação de tutores.

Não é por ser um vira-lata caramelo que os cuidados diminuem

Talita Lopes faz um alerta sobre o efeito colateral da fama. “A popularidade do vira-lata caramelo facilita muito sua adoção, porém essa decisão precisa ser tomada com clareza e responsabilidade, assim como a adoção de qualquer cão de raça. Não é por ser um vira-lata caramelo que os cuidados diminuem.”

Como se comportam os caramelos

Há um jeito caramelo típico de ser? Lopes pondera: não existe um padrão comportamental fechado, mas, pela diversidade genética, eles tendem a apresentar um temperamento mais estável e adaptável.

Eles são muito alegres. Quando você vê um caramelo a cinco ou a dez metros, ele já está balançando a cauda, pulando, dando beijo

Na prática do adestramento, o educador canino Jeová Oliveira reforça a percepção de sociabilidade alta e energia disponível. “Eles são muito alegres. Quando você vê um caramelo a cinco ou a dez metros, ele já está balançando a cauda, pulando, dando beijo. São muito comunicativos.” O caramelo, pensa Oliveira, é um cão para toda obra. “A qualquer hora que você o chama para correr, por exemplo, ele está lá, pronto”, fala.

O especialista salienta, entretanto, que nem todos são assim, sobretudo porque muitos SRDs amarelinhos já vivenciaram maus-tratos. Atuando com ONGs que resgatam cachorros traumatizados, o professor descreve um protocolo de socialização com exposição gradual a ambientes, convivência com cães estáveis e rotinas previsíveis. Em média, um a dois meses de trabalho consistente preparam o animal para a adoção, variando conforme o caso.

Adoção responsável, sem diferenças de tratamento

Mesmo famoso, o caramelo não é o tipo de cão que costuma ser visto passeando com os tutores nos shoppings nem desfilando nas passarelas dos concursos de beleza canina. Ainda há bastante desigualdades na forma como se cuida, se trata e se enxerga os SRDs em relação aos bichos de raça.

A veterinária Talita Lopes observa que alguns vira-latas seguem proibidos de entrar em casa ou recebem alimentação inferior, enquanto cães de pequeno porte com pedigree dormem com os tutores e frequentam as áreas comuns das residências, além de terem ração super premium no potinho. “É horrível, mas infelizmente essa realidade ainda existe.”

Ela frisa que boa parte dessa distinção de tratamento se dá porque certas adoções são realizadas no impulso, sem analisar o dia a dia, o espaço e as despesas, que mudam com a chegada de um membro de quatro patas à família.

“Na adoção de um filhote caramelo, não sabemos o porte desse animal, pois não temos ideia da origem dos pais e dos avós. E se esse animal crescer muito? Isso será um problema? Saber que todo animal tem seu custo de alimentação, banhos, consultas rotineiras ao veterinário é importante. A pessoa tem de estar ciente que são animais que merecem atenção e cuidado como qualquer outro cão de raça”, destaca.

“Caramelo”, do bairro ao mundo

Filmes com “auprotagonistas” fazem sucesso há décadas no cinema e na tevê, como nos prova a personagem Lessie, que saiu da literatura na década de 1930 para as telas do cinema em 1943. “Todos os Cães Merecem o Céu” (1989), “Bingo, Esperto pra Cachorro” (1991), “Beethoven, o Magnífico” (1992), “Marley e Eu” (2008) e “Sempre ao Seu Lado” (2009) estão aí para provar. Mas, no meio de todas essas tramas caninas de doçura, superação e aventura, faltava um exemplar brasileiro com o nosso mascote. Eis que “Caramelo” chegou.

A fagulha para o longa-metragem veio de uma história íntima. Na pandemia de covid-19, o diretor Diego Freitas adotou a Paçoca, uma típica caramelo. “Ela me trouxe para o presente, para o agora. Me salvou e me fez experimentar o tipo de amor que é cuidar de um filhote e vê-lo crescer. E aí, um belo dia, a gente teve a ideia: ‘E se a gente fizesse um filme sobre o vira-lata caramelo?’”, relatou o cineasta em entrevista ao Meio & Mensagem durante o lançamento da produção.

 Netflix/Divulgação

“Caramelo” acompanha Pedro (Rafael Vitti), um chef às vésperas de realizar o sonho de comandar um restaurante quando um diagnóstico o obriga a desacelerar. No meio da pausa, um vira-lata dourado, simpático e serelepe (vivido pelo cão-ator Amendoim) aparece. Desse encontro nasce uma amizade que reorganiza prioridades e recomeços — para o humano e o animal.

A obra, que se apoia na delicada parceria entre Vitti e Amendoim, cruzou fronteiras, apresentando ao mundo o ícone brasileiro caramelo.

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