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ReportagemPor que livros estão sendo censurados?
Com o recolhimento do livro “O Avesso da Pele” em escolas e rumores de homofobia em premiação, a censura vem dominando o debate literário no Brasil
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Por que livros estão sendo censurados?
Com o recolhimento do livro “O Avesso da Pele” em escolas e rumores de homofobia em premiação, a censura vem dominando o debate literário no Brasil
“Uma diretora sem nenhum preparo, que desconhece o PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático), posta um vídeo terrível nas redes sociais denunciando um livro por tudo que ele não é, e a gente pensa que se trata de algo pontual.” É assim que o escritor e professor Jeferson Tenório, autor de “O Avesso da Pele” (Companhia das Letras, 2020) descreve o evento recente que gerou a censura da sua obra em três estados brasileiros.
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Após a denúncia do livro, que trata de temas como racismo e violência policial, por uma diretora de escola do Rio Grande do Sul, por supostamente trazer conteúdo sexual impróprio para os jovens, a Secretaria de Educação do Paraná decidiu recolher todos os exemplares da obra disponíveis nas escolas do estado, sob a justificativa de que ela deve passar por “análise pedagógica”. Pouco depois, o governo de Goiás e de Mato Grosso do Sul seguiram o exemplo.
Para Tenório, porém, o ocorrido está longe de ser um caso isolado. “Tem muitas pessoas que pensam daquela forma, com um discurso ultraconservador e moralista. Não é algo isolado, e sim um sentimento do nosso tempo não só no Brasil, mas também em outras partes do mundo”, declara em entrevista a Gama.
O grande perigo é quando esse discurso passa a cooptar o cidadão comum, que se transforma num censor
O autor também destaca o fato de a educação ter se transformado num campo de batalha para diferentes narrativas políticas nos últimos anos, desde a criação do programa Escola Sem Partido. “O grande perigo é quando você sai da esfera política e esse discurso passa a cooptar o cidadão comum, que se transforma num censor”, destaca Tenório, que no entanto afirma que a maioria dos professores e instituições de ensino ainda são contra esse discurso.
O acontecimento virou prato cheio para políticos conservadores, como a deputada federal Bia Kicis (PL-DF), que criticou as “descrições explícitas de atos sexuais”. Pelo outro lado, artistas a exemplo de Chico Buarque — que leu trechos do romance como forma de protesto — e profissionais do mundo literário saíram em defesa do livro e contra casos de censura na arte. Com a polêmica, as vendas do livro chegaram a aumentar 1.400% na Amazon.
Apesar de muitas críticas terem sido direcionadas ao governo Lula (PT), na verdade a obra, vencedora do Prêmio Jabuti, foi selecionada pelo Ministério da Educação para o PNLD ainda em 2022, durante a gestão Bolsonaro (PL). Além disso, o envio dos livros não acontece de forma unilateral; ele depende da escolha de professores e gestores escolares.
E esse não foi o único exemplo do tipo ocorrido nos últimos dias, o que vem levantando um debate mais amplo sobre censura no universo literário do Brasil. Na mesma semana em que o caso preencheu o noticiário, o tradicional Prêmio Sesc de Literatura também se viu imerso em acusações de censura e homofobia.
A Folha de S.Paulo publicou reportagem em que afirma que a leitura em novembro de um trecho do livro “Outono de Carne Estranha” (Record, 2023), de Airton de Souza, durante a Festa Literária de Paraty (Flip), teria incomodado membros da diretoria do Sesc Nacional. A obra, vencedora do prêmio na categoria melhor romance, retrata a paixão entre dois homens garimpeiros.
No início de 2024, a instituição demitiu o escritor Henrique Rodrigues, um dos idealizadores e até então gestor da premiação. O Sesc Nacional também estaria estudando a criação de um conselho para além do júri oficial, que iria avaliar a seleção de obras para o prêmio. Uma outra polêmica tem a ver com o atraso nas viagens do tradicional Circuito de Vencedores do prêmio pelo Brasil.
Em suas redes sociais, Souza definiu o episódio como “inexplicável”, “criminoso” e “rodeado de uma falsa moral”. “Homofobia, censura e assedio moral. Um livro tão bonito sofrendo uma perseguição forte”, escreveu.
Em nota, o Sesc afirma que as acusações de censura do livro “não têm qualquer fundamento”. Também reforça a imparcialidade e decisão soberana das comissões julgadoras da premiação. “No caso de ‘Outono de Carne Estranha’, foi feita uma orientação aos Departamentos Regionais do Sesc que apresentassem classificação indicativa, mecanismo de garantia do respeito ao direito à prevenção especial de crianças e adolescentes, quando houvesse evento de leitura,cafés literários, bate-papos, rodas de conversaou similar.”
Prêmio adiado
A Editora Record, que publica anualmente os vencedores do prêmio, tornou público o incômodo da empresa com a postura do Sesc Nacional. Com as notícias, chegaram a avaliar romper a parceria com a instituição.
“Em pleno ano de 2024, é impensável esse tipo de discurso”, declara o diretor editorial da Record, Cassiano Elek Machado. “Somos um grupo marcado pela diversidade em todos os sentidos, do livro mais comercial ao mais literário. Para a gente, é muito ruim que um livro nosso esteja conectado a esse discurso velado, uma nuvem de homofobia.”
Ele conta que não estava presente na leitura do livro na Flip, mas ficou sabendo por terceiros do desconforto de representantes do Sesc Nacional. “Logo em seguida, começamos a ouvir rumores de que haveria mudanças no prêmio e demissões. Acabaram demitindo a pessoa que não só coordenava o prêmio, mas era seu criador”, aponta Machado. Para ele, Rodrigues era uma figura central do projeto, mantendo boa interlocução com os escritores e montando júris que prezavam pela diversidade e originalidade das obras.
Ainda segundo o diretor, o Sesc Nacional tinha total autoridade para fazer as demissões, mas, considerando a parceria no prêmio, a editora esperava ao menos ser avisada. Outro problema até então era a falta de respostas por parte do Sesc aos questionamentos da editora. Machado ressalta que, embora a questão não tenha sido resolvida, a instituição chegou a dizer que não fará mudanças na estrutura da premiação e compartilhou um novo calendário com as viagens dos autores premiados.
“Considero o Prêmio Sesc um dos mais interessantes já criados no Brasil, um dos únicos voltados para novas vozes e a revelação de escritores. Espero que ele continue tendo essa orientação e que seja possível manter as coisas num bom nível, porque é um prêmio valioso para a gente.”
Em nota, o Sesc diz que o edital do prêmio foi adiado por conta de uma revisão no regulamento do concurso, visando ampliá-lo e torná-lo mais próximo do atual cenário da literatura nacional. Também afirma que a premiação está mantida e deve abrir inscrições em breve. Sobre as viagens dos autores premiados na edição 2023, a instituição informa que elas serão retomadas e que o adiamento aconteceu devido às mudanças na premiação.
A nota também aponta que o prêmio é gerido por profissionais da área de literatura do Sesc Nacional e “se reserva no direito de selecionar e manter em seus quadros funcionários que atuem em sintonia com a filosofia e cultura da Instituição”. “É, inclusive, um dos papéis desse importante projeto, que proporciona ao público a reflexão e debate sobre importantes temas, como diversidade de raça, gênero, orientação sexual, trazidos a luz por meio da literatura”, diz ainda o documento.
Sexo e censura
Em 2018, uma escola do Rio de Janeiro retirou de sua lista de leituras o livro “Meninos Sem Pátria” (Ática, 2019), de Luiz Puntel, que trata da repressão na ditadura militar, após pais apontarem uma suposta “doutrinação ideológica”. O então prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), mandou recolher da Bienal de 2019 uma história em quadrinhos de super-herói por conter uma cena de beijo gay. No ano passado, o livro “Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios” (Companhia das Letras, 2005), de Marçal Aquino, foi retirado do vestibular de uma universidade de Goiás após um deputado denunciar “absurdos pornográficos” na obra.
Assim como nos exemplos acima, boa parte dos casos de censura literária no Brasil nos últimos anos ocorreram por alegação de conteúdo sexual ou, quando se trata de leituras escolares, também por apontamentos de viés político. Não é de hoje, aliás, que movimentos conservadores usam a sexualidade para justificar a censura, como afirma o psicólogo Domenico Hur, pesquisador de psicologia política.
“É uma questão que mobiliza muito a opinião pública e a população”, diz o especialista, que aponta que a estratégia vem sendo usada por aqui pelo menos desde o início do século passado. “A manifestação da diretora e a rápida discussão de governo, por essa bandeira moralista, faz parte da guerra cultural de movimentos de direita para ter uma adesão na mídia e da população.”
Segundo Hur, o movimento pode ter a ver com as eleições municipais que acontecem ainda neste ano, colando no atual governo e, consequentemente, em partidos de esquerda, a acusação de corromper a juventude. Até porque, afirma o psicólogo, boa parte da população associa automaticamente qualquer problema a quem está no poder naquele momento.
É uma estratégia comum na extrema direita para causar agitação. Para eles, é irrelevante se o livro vai ser censurado ou não, o importante é manter a base engajada
“Enxergo como uma estratégia comum na extrema direita para causar agitação. Para eles, é irrelevante se o livro vai ser censurado ou não, o importante é manter a base engajada”, afirma Fabiano Curi, diretor-executivo da editora Carambaia, que tem em seu catálogo livros que foram censurados ou banidos ao longo da história, como “Em Câmara Lenta” (Carambaia, 2022), de Renato Tapajós, proibido pela ditadura militar.
Em algum lugar do passado
O professor de comunicação da Faculdade Paulus, João Nery, vem pesquisando, ao lado da docente da USP Sandra Reimão, os casos de censura e banimento de livros no Brasil nos últimos anos. Segundo ele, os padrões não mudaram muito desde o início do século passado.
Assim como a diretora que apontou problemas no livro de Tenório, os mecanismos de censura sempre dependeram de denúncias. Isso porque, segundo Nery, o Estado nunca teve capacidade de controlar tudo que é publicado no país. “Eu mesmo fui preso por distribuir um livreto que tratava de questões proibidas. É mais fácil controlar uma Globo ou uma Folha de S.Paulo do que todo um mercado editorial, que é muito diversificado.”
O que mudou é que hoje muitos postam essas impressões nas redes sociais, em vez de fazer uma denúncia formal ao governo, gerando uma discussão mais ampla na sociedade. O pesquisador também aponta uma preocupação excessiva com crianças e adolescentes, que, na opinião dele, não vêm sendo tratados devidamente como cidadãos. O docente evoca inclusive casos de censura ocorridos na ditadura, em que boa parte tinha a ver com questões morais, colocando a sexualidade no centro do debate.
Nery também considera que, se tivesse ocorrido ainda durante a gestão Bolsonaro, a censura de “O Avesso da Pele” teria ganho contornos ainda mais amplos, com uma provável ação do governo federal para recolher o livro em outras regiões do país. O que não significa que ocorrências de censura tenham diminuído com a chegada de Lula. Na verdade, parece ter sido o contrário.
“Ainda não fizemos um registro organizado, mas os casos aumentaram”, afirma o professor. Segundo ele, isso acontece por conta de governos estaduais e municipais ligados à extrema direita e ao bolsonarismo, que acolhem ações como essa. O que vem ocorrendo no Prêmio Sesc, no entanto, é uma surpresa para o pesquisador. “Apesar de não admitirem que houve censura, é muito preocupante, porque vem de uma instituição tradicionalmente parceira de uma visão mais diversa.”
Livros incendiários ou incendiados?
“Mais de 2 mil livros foram removidos de distritos escolares nos EUA. Eles foram catalogados como restritos, questionados ou banidos não estão mais disponíveis para milhões de estudantes em até 37 estados.” É com essa mensagem lúgubre que se inicia o curta documental “The ABCs of Book Banning” (O ABC do Banimento de Livros), indicado à mais recente edição do Oscar.
A menção dá uma boa medida da relevância atual do tema na sociedade norte-americana. Por lá, obras clássicas como “O Olho Mais Azul” (Companhia das Letras, 2019), em que Toni Morrison trata do preconceito racial, “Maus” (Quadrinhos na Cia, 2005), a HQ de Art Spiegelman sobre o nazismo, e até “O Hobbit” (HarperCollins, 2019), de J.R.R. Tolkien, já sofreram algum tipo de sanção.
“Voluntários de famílias vêm e levam livros para casa para revisá-los”, conta uma estudante de ensino médio entrevistada no filme. “Não conseguimos encontrar nenhum livro de que gostamos, porque ou já lemos um milhão de vezes ou é uma leitura fácil demais para a gente”, reclama outra.
Embora os casos sejam muito mais numerosos nos Estados Unidos, eles não se restringem ao país. Em 2023, no México, opositores da gestão do atual presidente Andrés Obrador aderiram a uma velha tradição de regimes totalitários, incendiando uma série de livros didáticos.
Para o psicólogo Domenico Hur, a tendência só não é maior no Brasil porque nosso mercado editorial é consideravelmente menor e menos estruturado do que o norte-americano. Ou seja, por aqui livros estão longe de ser um tema central. Segundo pesquisas, quase metade da população nacional não tem o costume de ler. E, enquanto o brasileiro consome em média quatro livros por ano, nos EUA, esse número salta para 14.
“Se formos comparar, nosso mercado editorial é terrível. Traduzimos poucos livros, pagamos pouco aos autores e tradutores”, aponta Hur. “Me parece que essa guerra da censura literária não é tão grande no Brasil por conta disso.”
Temos confiança no Judiciário de que os livros vão acabar voltando para onde deveriam estar: nas mãos dos alunos
Apesar de esse tipo de movimento trazer mais visibilidade para a obra e o autor , o especialista reforça que não costuma ser um problema para movimentos conservadores. “Eles não querem prejudicar os autores, mas criar um factoide com visibilidade na mídia para se lançar como ofertas políticas relevantes.”
Nery, porém, teme que movimentos de direita estejam agora começando a reproduzir a estratégia norte-americana no país, o que pode ter forte impacto até naquilo que é produzido na literatura nacional.
“Quando começa a ter um crescimento da pressão, muitas editoras passam a adotar uma linha de autocensura”, explica Fabiano Curi, da Carambaia. “Não vão querer tratar de determinados temas que podem gerar desgaste. Isso é o mais problemático. A longo prazo, vejo editoras evitando alguns autores, assuntos ou abordagens, porque não querem confusão.”
Até a publicação da reportagem, o livro “O Avesso da Pele” não havia sido devolvido para as escolas em nenhum dos três estados onde foi censurado.
“Não podemos naturalizar esse tipo de atitude”, considera Tenório. “Temos confiança no Judiciário de que os livros vão acabar voltando para onde deveriam estar: nas mãos dos alunos. É importante dar o recado de que não vamos retroceder a atos de censura.”
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