Em Câmara Lenta — Gama Revista

Trecho de livro

Em Câmara Lenta

Em nova edição após mais de 40 anos, romance clássico do cineasta Renato Tapajós reconta o cotidiano da luta armada e detalhes da opressão sob o regime militar

Leonardo Neiva 11 de Novembro de 2022

Em letras miúdas, espremidas sobre pequenos retângulos de papel de seda, envoltos por fita adesiva e escondidos sob a língua. Foi assim, aos bocados e com a ajuda dos pais que lhe faziam visitas frequentes, que o cineasta e escritor paraense Renato Tapajós contrabandeou para fora da prisão seu livro mais importante. No início dos anos 1970, então cumprindo pena pelo envolvimento com a resistência à ditadura militar e às voltas com as próprias lembranças da luta armada, Tapajós começou a escrever “Em Câmara Lenta” (Carambaia, 2022), aquele que seria um dos romances mais impactantes sobre a repressão e a tortura no período.

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Finalmente publicado em 1977, três anos após a saída do autor da cadeia, o livro não durou muito tempo nas prateleiras. Os exemplares que restaram, pois a edição teve ótimas vendas, foram apreendidos e o próprio Tapajós foi novamente conduzido à prisão sob a acusação de incitar a subversão. Com uma única outra edição desde então, saída quando a ditadura ensaiou uma reabertura em 1979, o livro finalmente ganha nova vida pela Carambaia, em outro momento emblemático para a política e a democracia no Brasil.

Além do texto original, a nova edição traz um posfácio de Jayme Costa Pinto, uma entrevista com Tapajós e o parecer do célebre crítico Antonio Candido (1918-2017) sobre o livro – segundo quem a obra não tinha nada de subversiva –, utilizado nos trâmites do processo contra o autor. Ao longo das muitas memórias e questionamentos gravados no romance, um dos que se sobressaem tem a ver com a validade da luta. “Não admito e não permito que ninguém admita que todos os gestos foram sem sentido, que todas as mortes não serviram para nada”, diz o autor no trecho reproduzido aqui. Uma dúvida que, inclusive, remete à lentidão do gesto que dá nome ao livro, assim como às suas graves consequências.


A Agência Nacional tinha acabado de transmitir a decretação do Ato Institucional Número 5: na cabeça de cada um soavam confusamente aqueles parágrafos, suspensão de habeas corpus para crimes políticos, recesso forçado do Congresso, novas cassações a critério do presidente. Sensação de que algo de importante acabava de acontecer, mas o sentido lhes escapava. Aquelas coisas pareciam um tanto distantes, como se fossem intrigas palacianas que não os afetavam diretamente, mesmo assim sabiam, de modo difuso, que algo havia mudado. O pai de Lúcia entrou na sala — “Vocês ouviram?” — o velho havia sido militante do Partido muitos anos antes e conservava sua visão democrática de uma revolução distante e sonhada, embora não fizesse mais nada por ela. Começou a falar agitadamente de um golpe dentro do golpe, de endurecimento do regime, linha dura, citou nomes de generais. Ainda na janela, ele se voltou e ficou ouvindo silenciosamente, registrando frases soltas no meio de seus próprios pensamentos. O pai de Lúcia continuou, Fernando fez algumas observações, já interessado. O velho se animava, relatou os boatos que corriam desde havia alguns dias, o significado daquela última votação na Câmara rejeitando a licença para processar o Márcio Moreira Alves, o desafio que isso representava para os militares. Fernando levantava outro aspecto: “E o movimento de massas?”. Isso também, concordou o velho, mas não era uma ameaça verdadeira, não tinha profundidade — serviu mais de pretexto, e será que vocês, estudantes, não radicalizaram demais? O Exército não ia ficar quieto vendo tanta gente na rua, eles iam acabar reagindo e agora era preciso ter muito cuidado. Vinha repressão pela frente e era melhor não se expor. Lúcia reagiu, mal-humorada, ao conselho do pai. Será que ele estava pensando que todo mundo era criança? Além disso, desse jeito nunca ninguém ia fazer nada. O velho insistiu que era preciso ter cuidado e saiu da sala — não valia a pena continuar aquela discussão de sempre com a filha. Lúcia continuou irritada depois que ele saiu: ser de esquerda era bom da boca pra fora, na hora de fazer qualquer coisa não podia, era preciso ter tantos cuidados que talvez fosse melhor ficar trancada em casa. Além do quê, revolução era para ser feita pelos filhos dos outros, alguém precisa fazer a revolução, mas não minha filha. Fernando acabou rindo, mas sua companheira continuava séria e distante. Da janela, ele observou a companheira de Fernando e seu silêncio, intuindo a preocupação que havia naqueles olhos escuros e muito levemente estrábicos. Iniciou a discussão: provavelmente o Ato não ia afetar a organização, mas era preciso dar uma resposta.

O velho havia sido militante do Partido muitos anos antes e conservava sua visão democrática de uma revolução distante e sonhada, embora não fizesse mais nada por ela

Talvez tudo aquilo atingisse apenas a própria política burguesa, mas o que irritava era que os militares ficavam fazendo o que bem entendiam e ninguém tomava uma atitude. Fernando interrompeu. Afinal, o problema não era bem esse – o que a organização pretende é a guerrilha rural. Todos os esforços estão voltados para esse objetivo. Algumas mudanças conjunturais não afetam a estratégia adotada, não podemos nos perder nesses acontecimentos. A estrutura da organização nas cidades, no momento, é apenas para acumular fundos, armas e homens para enviar para o campo. Quando a guerrilha começar, aí sim, vamos interferir na política. O foco será um polo de atração, um exemplo para todos os revolucionários e para o povo. Ele não soube contestar os argumentos de Fernando, no fundo era aquilo mesmo. Mas havia alguma coisa que lhe causava um vago mal-estar. Falou que já fazia um ano que se falava em guerrilha rural e não aparecia nada. Está certo que a preparação era secreta, mas os militantes precisavam ver algum resultado. Todo mundo confia nos companheiros do Comando, mas tem um monte de gente esperando, sem muita coisa para fazer. Mesmo na cidade é preciso aproveitar esse pessoal todo que está disponível. Se o problema é dinheiro e armas, tem muita gente parada que pode aumentar o volume de ações, muita gente que está a fim disso. Além do quê, não custa nada agitar as ideias da organização, fazer umas ações de caráter político, voltadas para a massa. Principalmente agora, quando a ditadura se desmascara. Dar uma resposta, qualquer resposta. A companheira de Fernando aprovou com frases curtas e secas essas opiniões e reforçou a necessidade de organizar mais grupos armados, aproveitar o pessoal disponível – o que ia servir também como treinamento para formar um número maior de quadros militares. Fernando acabou por concordar: ia discutir com os companheiros do Comando, mas ele achava que toda iniciativa de formar novos grupos e ampliar o volume de ações era válida. Ninguém precisa pedir licença para fazer a revolução. Claro que o Comando precisaria indicar alguns quadros experientes. Talvez até mesmo emprestar algum armamento mais pesado para as operações maiores. Ele veria se dava para quebrar o galho. Também achava que algumas ações mais fáceis poderiam servir de treinamento, além de funcionarem como uma resposta. Como pôr umas bombas em alvos politicamente significativos.

Ninguém precisa pedir licença para fazer a revolução

A resposta de Fernando o animou. Ele sorriu e disse que agora iam começar a fazer alguma coisa.

O ponto é amanhã. Ainda um dia e uma noite até lá, e essa casa vazia, de repente enorme. Andar da sala para o quarto, do quarto para o banheiro, do banheiro para o outro quarto. Registrar as imagens conhecidas, cada uma carregada de significações, cada uma devolvendo o olhar acrescentado pelo peso dos gestos que foram feitos. Ela deitava no sofá da sala e ficava lendo com a luz da tarde através da cortina. O sofá está lá, imóvel, morto, vazio. E do lado dele, o cinzeiro no chão. Continua lá, esperando o cigarro que não vem mais. Não adianta mudar nada. Para quê? Pôr o cinzeiro noutro lugar como quem foge, mas não há por que fugir: os olhos que veem o cinzeiro estão vazios, são olhos vazados de um corpo morto que continua passeando seu ódio e seu desespero. Esvaziado de tudo porque não é apenas ela, são todas as certezas que ruíram – essa casa é um monte de escombros e de corpos mortos amontoados em cada canto. Não há nada para fazer: andar, comer, esperar. Não adianta tentar ler alguma coisa, a atenção se dissipa, o livro, a revista, o jornal ficam por trás de uma névoa e, na névoa, o que aparece é o rosto dela – o rosto dela virando mais uma vez dentro do carro, num movimento repetido, sempre o mesmo movimento. Inevitável, imutável, porque já aconteceu. E, ainda assim, ler: mas, mesmo que se vejam as letras, elas dizem coisas que não fazem mais sentido. O jornal repete o já sabido e que agora não dá mais para saber. Todas as certezas se perderam, embora continue sabendo que o gesto não foi em vão. Simplesmente não se pôde completar.

A economia cresce, dizem todos os jornais, e na rua a gente continua a ver os mesmos rostos ausentes, a saber que a mesma miséria continua

Por quê? O gesto precisava ser feito. Todas as coisas que ele implicava precisavam ser feitas. Cada ação, cada panfletagem, cada bomba, precisava ser feita. Tudo estava encadeado e dependia do primeiro movimento. Por isso, há, ainda, uma certeza: o gesto precisava ser feito. Mas será que o gesto feito foi o gesto certo? Talvez ainda dê para saber, embora já seja muito tarde. Saber apenas para não terminar na dúvida. Saber se havia uma outra saída, uma outra linha, um outro gesto que, pelo simples fato de existir, não permita a perda irreparável, não permita a falência do movimento. Não admito e não permito que ninguém admita que todos os gestos foram sem sentido, que todas as mortes não serviram para nada, que a morte dela foi inútil. Eu sei que o gesto se estilhaçou, não se completou, ficou a meio caminho. Mas não pode ser apagado, tornando-se inexistente, esquecido. Mesmo errado, valeu a pena. Mesmo errado, serviu para alguma coisa. Senão, será dar razão a eles. Será dar razão ao inimigo, aos que exploram, aos que oprimem, aos que matam e torturam para poder continuar a explorar, a oprimir, a matar e a torturar. Eles precisam ser destruídos e serão destruídos; serão apanhados pela vaga, pelo mar que cresce e que os afogará a todos, espalhando suas carcaças junto com os peixes podres. O mar que cresce, mas onde? Se o gesto falhou. Em algum lugar, em algum momento, deve ter havido um erro. Não é possível pensar direito com esse ruído surdo que bate nos ouvidos, a dor e o desespero, os olhos e o rosto que voltam sempre e agora são inatingíveis. Mas deve ter havido um erro. Porque hoje não há nada para fazer senão andar pela casa, e amanhã tem um ponto onde algumas frases serão ditas, mas nada se pode esperar. Havia muita gente faz apenas três anos e hoje o que temos é um monte de mortos, uma multidão de exilados no exterior e algumas solidões tentando continuar. Algumas pessoas dispersas que pouco se encontram, quase nunca discutem e se contentam em sobreviver. Alguns sonhando, outros conhecendo o desespero. Alguns ainda sonham. Que abandonarão o asfalto, os aparelhos, os carros e marcharão no campo, lutando uma ou outra guerra, uma guerra de espaços amplos, uma corrida até o horizonte e a multidão agrupada para destruir aqueles que hoje conduzem a matilha de cães que, pouco a pouco, dilacera os corpos de todos nós. Mas nós apenas arranhamos a pele do monstro. Não conseguimos atingir seus músculos: a economia cresce, dizem todos os jornais, e na rua a gente continua a ver os mesmos rostos ausentes, a saber que a mesma miséria continua e que os donos do país prosperam pisando no sangue, na demissão, na apatia, no medo daqueles que trabalham nos intestinos da pátria. Alguns ainda sonham. Mas nós estamos cada vez mais sozinhos, mais isolados, o gesto falhou em algum momento. Os nomes do passado não representam mais pessoas, onde está cada um daqueles que começaram a luta, que traziam um entusiasmo enorme, uma disposição de se entregar inteiramente para fazer a única coisa certa que se pode fazer. A única: lutar.

Produto

  • Em Câmara Lenta
  • Renato Tapajós
  • Carambaia
  • 192 páginas

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