As mulheres no funk, no rap e no trap brasileiro — Gama Revista
Qual o futuro da música pop brasileira?
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Ilustração de Isabela Durão com base na capa do single 'Sou Má', de Ludmilla, Tasha & Tracie e Ajaxx

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Reportagem

Bonde das poderosas no funk, no rap e no trap

Jovens artistas empoderadas cantam abertamente sobre temas que vão da fluidez sexual à ostentação

Ana Elisa Faria 01 de Outubro de 2023

Bonde das poderosas no funk, no rap e no trap

Ana Elisa Faria 01 de Outubro de 2023
Ilustração de Isabela Durão com base na capa do single 'Sou Má', de Ludmilla, Tasha & Tracie e Ajaxx

Jovens artistas empoderadas cantam abertamente sobre temas que vão da fluidez sexual à ostentação

Elas não ligam para estereótipos, quebram barreiras — e barracos — todos os dias, debocham dos homens, cantam livremente sobre o prazer feminino e a fluidez sexual, falam palavrão, estão com a autoestima em dia e ostentam sem pudor as grifes que, agora, podem comprar e usar. Mas nem sempre foi assim para artistas de gêneros como o funk, o rap e o trap. E, mesmo com esse cenário positivo se firmando, ainda há uma porção de obstáculos a serem vencidos, como o machismo e o racismo, que também estão no universo musical.

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Para ajudar a compreender melhor como as mulheres dessas cenas se empoderaram e começaram a passar esse poder libertador para a música, Gama conversou com produtoras, rappers, dançarinas, funkeiras, estudiosas e estudiosos no tema.

Beijinho no ombro das pioneiras

Valesca Popozuda, Tati Quebra Barraco e Deize Tigrona foram alguns dos nomes que marcaram esse movimento empoderado no funk, no começo dos anos 2000, narrando, por meio das músicas, os próprios desejos e exaltando conquistas pessoais.

“Quando a Valesca Popozuda e a MC Carol, de Niterói, apareceram, elas fizeram essa virada de chave das mulheres no funk, cantando o que queriam, sem se importar com a opinião dos outros ou, ainda, sem precisar da validação de algum homem para isso”, diz Alana Leguth, cofundadora da KondZilla e fundadora da HERvolution.

A mulher pode cantar o que quiser e ter a postura que deseja, sem precisar da aprovação de ninguém

Ela explica que, até então, as primeiras MCs, como a MC Cacau, faziam apenas duetos de funk melody. “Sempre na segunda voz, numa posição complementar à dos homens, como a Cacau e o MC Marcinho, por exemplo [eles estouraram no meio da década de 1990]. “As que chegaram depois dela foram se abrindo mais, se empoderando, se posicionando e mostrando que, de fato, a mulher pode cantar o que quiser e ter a postura que deseja, sem precisar da aprovação de ninguém.”

Capa do álbum ‘Borogodó’, de MC Carol

Homem é pra sentar: a liberdade sexual

Professor de música e pesquisador do funk na USP, Thiago de Souza, o Thiagson, analisa que foram as mulheres “as responsáveis pela transformação da putaria” no gênero e que essa mudança também passa por percepções de questões ligadas à raça e à classe.

Para ele, ainda, os homens dependem da mulher para se exibir nas letras como “gostosos e comedores”, além de terem uma baixa autoestima e, por isso, se reafirmam a todo tempo, enquanto as artistas falam mais delas ou de outros assuntos e, hoje, depois de muito serem tratadas como objetos, até objetificam. Como em “Put@aria”, de Rubel com MC Carol e DJ Gabriel do Borel: “Eu sou bandida, eu sou safada. E a minha louça é tu que lava. Eu gozo primeiro, teu foco é meu grelo. Te esfolo inteiro, Carol mete medo”.

“Se a mulher quer rebolar a bunda e mostrar os peitos, não tem a ver com o cara, tem a ver com o desejo dela, é sobre ela, não sobre o homem. Há também uma perspectiva racial, de como a mulher preta é vista e tratada, e as condições materiais fazem com que ela tenha outra postura em relação à maneira de cantar a sexualidade”, conta.

O funk ficou mais explícito, inclusive o funk cantado pelos homens se tornou mais explícito, como uma espécie de resposta meio ressentida a essa mulher que se empodera

A partir de 2000, de acordo com Thiagson, as mulheres passaram a cantar a sexualidade mais explicitamente. “Começaram com coisas como ‘a porra da buceta é minha, se eu mandar chupar, tu vai chupar, se eu mandar botar, bota tudo’. Tem a Tati Quebra Barraco falando que ‘homem é pra sentar, não é pra amar’, colocando o homem em posição de submissão. Assim, o funk ficou mais explícito, inclusive o funk cantado pelos homens se tornou mais explícito, como uma espécie de resposta meio ressentida a essa mulher que se empodera.”

O especialista salienta que a mulher cantando o próprio gozo e enaltecendo sua liberdade sexual teve e tem “uma importância imensa para os rumos da história do funk”.

A pedagoga e dançarina Renata Prado, que ensina sobre o funk não apenas na prática, no rebolado, mas comenta a respeito da história do gênero, que faz parte da cultura afro-brasileira, enxerga uma movimentação libertadora também na dança.

“Com o feminismo se popularizando, as mulheres estão mais à vontade para dançar funk, se permitindo mais e rompendo com certos preconceitos que esse tipo de dança suscita. Hoje, as mulheres entendem que o corpo delas pertence a elas, que elas fazem com ele o que quiser”, elabora.

Meu corpo, minhas regras. Minha música, meu sexo

Letras sobre o prazer feminino não são uma exclusividade do funk. Jovens mulheres do rap e do trap —um gênero relativamente novo no Brasil— têm cantado sobre o tema. Ajuliacosta, de obras como “Homens como Você”, é uma delas.

A rapper acredita que as mulheres, de variados gêneros, que chegaram antes e abriram as portas inspiraram as novas gerações, além do acesso à internet, que possibilita que meninas gravem e postem seus trabalhos, e estudem sobre sexo, liberdade e afins.

O sexo não pode ser um tabu para a gente e ser uma coisa comum para o homem

“Acho que a internet nos deu a possibilidade de falarmos sobre nós, mulheres, sem um porta-voz que, talvez, tirasse um pouco o tom feminino e diminuísse o que a gente quisesse dizer. A internet também ajuda no conhecimento sobre essa liberdade sexual. E é aquela coisa: eu faço sexo, então também posso falar sobre isso. O sexo não pode ser um tabu para a gente e ser uma coisa comum para o homem”, pondera.

Slipmami usa o trap para dizer o que vem à mente, sem se preocupar se o que está sendo dito é uma bandeira feminista ou para mostrar um sentimento de poder conquistado. “Eu falo o que estou a fim de falar, e me divirto”, declara. Ela reconhece, porém, que, atualmente, a liberdade sexual pauta cada vez mais o trabalho de mulheres, seja no trap, no rap ou no funk.

Capa do single ‘8KG’, de LARINHX, Ebony e Slipmami

“Quando eu era mais nova, ouvia muito rap de algumas brasileiras falando sobre causas sociais”, lembra. Hoje, ela ainda vê o rap de protesto, mas percebe que “as mulheres têm mais liberdade para falar sobre o que quiserem”.

A artista é um exemplo disso, e canta coisas como: “Me dá o teu dinheiro ou você me faz gozar. Quer gozada grátis vai tomar no cu pra lá”. Ela explica: “Quando os caras não se importam com o prazer feminino, [a regra é] ou você me faz gozar ou você me dá dinheiro”. Slipmami diz que não tem a intenção de colocar os homens abaixo dela e, mais do que exaltar o sexo feminino, o que interessa é onde ela se coloca. “É me colocar acima, me demonstrar. Por ser muito comum o cara ignorar o prazer da mina, eu sempre estou colocando que precisa haver o prazer: ‘vem atrás de mim porque minha buceta é gostosa.’”

Alana Leguth cita ainda mais artistas, como MC Dricka, MC Taya e Azzy, que também cantam livremente sobre sexo, corpo, liberdade e sucesso.

“Temos diversos exemplos de mulheres da música urbana que não seguem padrões estéticos, um padrão de composição ou de comportamento. Cada uma delas tem a sua personalidade, uma linguagem própria, e cada uma canta as próprias conquistas, canta sobre a sua autoestima. Assim, cada uma do seu jeito, com a sua realidade e suas vivências, elas empoderam outras mulheres. E isso é muito incrível”, finaliza.

Não é questão de luxo, faça o favor

Outro tema bastante em destaque é a ostentação, que aparece com frequência nas letras das gêmeas do rap Tasha & Tracie, como cantam em “Desce Licor”: “Desce licor 43, garrafa de Cîroc. Não pode me ver vencendo, recalcada se morde. Só porque tomou de assalto e vim lá da zona norte. Só vai brindar o Chandon quem tava e dividiu a dose”.

Capa do single ‘Sou Má’, de Ludmilla, Tasha & Tracie e Ajaxx

Tamiris Coutinho, autora de “Cai de Boca no Meu B*c3t@o: O Funk como Potência do Empoderamento Feminino” (Claraboia, 2021), graduada em relações públicas pela UERJ, com formação em música e negócios pela PUC-Rio, pesquisa a cena do trap no Rio de Janeiro e nota que o gênero apresenta, de fato, a ostentação e observa que a temática de mostrar roupas e acessórios de grife, bebidas caras e carros de luxo tem a ver com o contexto sociopolítico, que melhorou a vida dos mais pobres no começo dos anos 2000.

“Isso proporcionou uma ampliação maior do consumo por outras classes sociais, para além dos mais ricos. Hoje em dia, a gente consegue parcelar e ter um celular, uma roupa de marca. E um MC ou uma MC que conseguiu ascender socialmente e economicamente, dentro daquele contexto em que estão inseridos, vão querer ostentar”, avalia.

A pesquisadora completa: “Como estamos em uma sociedade capitalista que, infelizmente, é selvagem e que oprime, sobretudo, pessoas pretas e pobres, obviamente quando alguém dentro dessa conjuntura ascende financeiramente, é uma vitória, e os MCs e as MCs vão exibir esses itens luxuosos para incentivar outros outros jovens a buscarem, de forma digna e honesta, seus bens materiais. Então, perpassa muito esse imaginário também.”

Colaborou Emilly Gondim.