Elas cantam os novos hinos feministas em francês — Gama Revista
Thiago Quadros

Elas cantam os novos hinos feministas em francês

Nascidas nos anos 1990, elas são o símbolo da mulher que exige, para ontem, respeito e igualdade de direitos

Carolina Vasone 29 de Março de 2022

O que uma loirinha belga estilo princesa, uma rapper homossexual, uma cantora negra de chanson, uma diva pop e uma típica musa francesa podem ter em comum? Com vivências e repertórios diferentes, elas se encontram no idioma e na cultura francesa, e numa produção artística que foi moldada durante uma nova onda feminista cujo ápice foi notado em 2017, com o movimento #metoo (quando estouraram dezenas de denúncias de abuso sexual contra o produtor de Hollywood Harvey Weinstein).

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Unidas no discurso, elas criam músicas que denunciam machismo, homofobia, racismo e outras agressões a minorias de direitos. Além disso, praticam a sororidade ao se apoiarem publicamente. Várias se tornaram amigas, como a parisiense de origem camaronesa Yseult, que antes de lançar seu EP (mini-álbum) Noir, de 2019, mostrou todas as composições para a belga Angèle.

A seguir, conheça cinco cantoras francófonas que levantam e praticam a bandeira do feminismo.

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    Divulgação

    Angèle

    Ela cantou “denuncie seu agressor” e criou o maior hino feminista francês da atualidade

    Impossível falar de feminismo na música francófona sem citar Angèle. A cantora pop belga de 26 anos é a responsável pela música que virou um dos hinos feministas atuais da língua francesa. “Balance Ton Quoi” faz menção ao movimento #balancetonporc, o equivalente francês ao #metoo. A hashtag significa “denuncie seu agressor”, ou, literalmente, “denuncie seu porco” (“balance”, em francês, vem do verbo balançar, mas também é uma gíria que significa denunciar). A composição foi lançada no disco de estreia da cantora, Brol, de 2018, pelo selo Angèle VL Records, criado pela própria artista. Em 2019, foi o álbum mais vendido na França.

    Fenômeno das redes sociais, Angèle foi fazendo sucesso no boca a boca em shows nos cafés de Bruxelas, enquanto ganhava visibilidade ao postar suas músicas em meio a vídeos de humor na sua conta do Instagram (@angele_vl), hoje com 3,4 milhões de seguidores. Filha de um cantor e uma atriz, e irmã de um controverso rapper (Roméo Elvis), ela teve sua primeira prova de fogo dois anos depois do início de sua carreira, quando havia lançado apenas dois singles: o rapper e conterrâneo Damso, grande nome do rap belga, a convidou para abrir sua turnê de 2017. “No primeiro show, o público me vaiou, insultou, me chamou de puta…No rap os códigos sexistas são chocantes. Pensei em cancelar tudo, mas decidi me defender e me impus no segundo show. Damso me apoiou no Twitter e, no fim da turnê, o público estava me aplaudindo”, lembra.

    Elogiada por Billie Eilish, parceira de Dua Lipa na música “Fever” (ela também participou do clipe e de show da cantora), Angèle lançou seu segundo disco, Nonante-Cinq, em dezembro passado, aprimorando seu estilo pop e cantando as questões da sua geração. A igualdade de direitos e o respeito às mulheres segue na pauta, como em duas de suas novas composições, “Tempête” e “Mots Justes”, que denunciam a banalização da violência cotidiana contra a mulher.

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    © Lala&ce

    Lala &ce

    Tomboy, miscigenada, e contra as regras do mercado, é uma voz forte no rap francês

    Aos 27 anos, a franco-marfinense Lala &ce é um raro exemplo de voz feminina no rap francês. “Não me considero exatamente uma ativista, mas penso que só por ser uma rapper mulher, um pouco tomboy, homossexual e miscigenada, já vou contra as regras do mercado”, disse, sobre o tradicionalmente homofóbico e machista universo do hip hop, num vídeo feito pela Vogue francesa no ano passado.

    Foi em 2021 que a artista lançou seu primeiro álbum chamado “Everything Tasteful”. Três anos antes, porém, a Vanity Fair já a chamava de “segredo escondido do rap francês”. Nascida em Lyon, Mélanie Berthinier (nome de batismo) mistura o idioma materno com inserções em inglês em composições experimentais e intimistas, que falam de emoções, não de brigas de gangues. O ritmo é mais lento, no que se convencionou chamar de “cloud rap” (em alusão ao estilo surgido no Soundcloud). “Não quero falar do mundo das drogas. Não é a minha realidade, e não vou inventar uma vida que não é a minha”, afirmou à Vanity Fair. No lugar disso, Lala fala de amor, mais especificamente do amor lésbico. Seus versos trocam o usual “pute” (puta), repetido à exaustão por rappers homens, por “cyprine” – palavra francesa que dá nome à excitação/lubrificação sexual feminina.

    Autodidata na música – aprendeu a mixar sozinha, assim como manipular a voz no programa auto-tune –, a rapper morou cinco anos em Londres, onde se formou em administração com foco em finanças. “Viver lá foi uma experiência que abriu minha cabeça: me descobri muito como artista e como mulher”, diz a cantora de timbre andrógeno, que um dia já quis mudar o tom para que ficasse claro que se tratava de uma garota cantando. “Seja na escola ou na rua, sempre senti, por meio do olhar dos outros, que era um pouco diferente. E eu gosto de trazer essa diferença para o mundo.”

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    © Alice Moitier

    Clara Luciani

    Ela conseguiu traduzir o espírito do tempo em uma canção e virou sucesso instantâneo

    Os primeiros versos da música não deixam dúvidas sobre a mensagem de Clara Luciani: “Ei, você! Está olhando o quê? Nunca viu uma mulher que luta?”. Lançada bem na época pós eventos #metoo na França, “La Grenade” virou sucesso instantâneo, embalando de posts no Instagram a manifestações pelos direitos das mulheres. “Fico feliz por ter conseguido traduzir em palavras um mal geracional tão importante, e que este título tenha toda essa repercussão”, disse a cantora à rádio France, sobre a música que abre seu disco de estreia, Sainte Victoire, lançado em 2018.

    O nome do álbum faz alusão à montanha Sainte Victoire, pintada por Cézanne e cartão-postal da região onde a cantora nasceu, numa pequena cidade perto de Marselha, na Provence. Aos 29 anos, ela parou os estudos de história da arte aos 19, quando decidiu seguir carreira musical. Mudou-se para Paris e trabalhou de babá a vendedora da Zara até ingressar na banda de rock La Femme. A partir daí, decolou.

    Lançado no ano passado, seu segundo álbum solo, Coeur, acaba de ganhar o prêmio Victoires de la Musique 2022, o equivalente francês ao Grammy. Ela ainda foi eleita a artista do ano na mesma edição do evento. Com biotipo das típicas musas da música francesa (longos e lisos cabelos castanhos, franja), ela recebeu elogios de um ícone do gênero. “Nos seus textos, Clara tem uma força que as minhas músicas não têm”, afirmou ninguém menos do que a cantora Françoise Hardy a um programa de rádio, sobre as letras das músicas de Clara, todas compostas pela própria artista.

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    Getty Images

    Aya Nakamura

    Uma diva contemporânea que se tornou um símbolo de empoderamento feminino negro

    “Cresci em meio a árabes, africanos e franceses. Essa é a minha música. Somos uma geração miscigenada, e quando não temos medo de misturar, o resultado é poderoso.” Numa entrevista para a Vogue francesa, Aya Nakamura fez, em poucas linhas, o raio-x da nova música francesa, que veio para ficar e reinar, haja vista o sucesso da cantora de 26 anos que acumula mais de 800 milhões de visualizações de suas canções no Youtube.

    Nascida no Mali, Aya Nakamura cresceu na França e estudou moda antes de iniciar carreira na música, em 2014. Lançou alguns singles, mas estourou mesmo com a música “Djadja”, parte do seu segundo álbum, “Nakamura”, lançado em 2018. A canção tipo chiclete virou hit do verão francês daquele ano e ultrapassou fronteiras francófonas para ficar famosa mundialmente – a maioria das visualizações no Youtube são dessa única canção, embora sobrem algumas dezenas de milhões para outras.

    A cantora, que virou mãe recentemente, faz o estilo diva e se tornou um símbolo de empoderamento feminino negro. Em seu disco mais recente, Aya, lançado em 2020, ela ressalta a segurança e a liberdade da mulher contemporânea nos relacionamentos amorosos. “Sim, essa mulher é assertiva, sabe flertar, não tem medo, mas isso não a impede de ser romântica. Ela pode ser sarcástica, ela pode provocar e ser brincalhona, e ela sabe o que quer.”

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    © Thibault Théodore

    Yseult

    Um corpo que não se encaixa em caixa

    Revelação, aos 18 anos, do “Nouvelle Star” de 2014 (espécie de “The Voice” francês), Yseult vai contra todos os estereótipos da musa de canção de variedades tradicional francesa, estilo que cresceu ouvindo e que a inspira. “Yseult pertence a uma nova geração de mulheres impetuosas. Ela tem uma profunda consciência física e política e impõe seu corpo em um gênero musical predominantemente branco”, diz Rokhaya Diallo, escritora, cineasta e ativista feminista e antirracista ao The Guardian, numa reportagem sobre a cantora.

    Parisiense de pais emigrados dos Camarões, a cantora tomou as rédeas da própria carreira depois de um primeiro álbum sem sucesso, lançado em 2015 com a Polydor (da Universal), gravadora que a contratou logo que saiu do programa. Demorou alguns anos para ela se recompor, mas conseguiu sua independência musical ao criar o próprio selo, o YYY, e desabrochar como artista ao produzir, como queria, a trilogia de mini-álbuns “Noir”, “Rouge” e “Brut”, todos de 2019. Para a capa de “Noir”, decidiu posar nua e sem retoques, um reflexo das composições, extremamente pessoais. O resultado é um recorte de um pedaço do corpo com as ondulações de uma mulher negra fora dos padrões de magreza da sociedade francesa. A partir dessa experiência, a artista decidiu começar a posar nua para uma série de fotografias que farão parte de uma exposição chamada “Corps”.

    Cada vez mais engajada na representatividade da mulher negra e gorda (luta contra a gordofobia, mas não se considera parte de movimentos como o body positive), Yseult foi chamada de “estrela da geração do mimimi” pela extrema direita ao fazer um discurso em favor da inclusão racial no ano passado, quando ganhou o prêmio de cantora revelação no “Grammy francês” (o Victoires de la Musique). Mas não arrefeceu e disse que continuaria a usar sua exposição para defender o que acredita. “Não me encaixo nas caixas. Sou negra e faço variedade francesa com voz de piano. Atualmente estou sozinha nesse mercado, mas ficarei muito orgulhosa se for a primeira a abrir a porta para outras mulheres negras que querem fazer esse tipo de música”, disse, numa entrevista a um site feminista francês.

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Este conteúdo é parte da série “Para conhecer a música francesa”, uma parceria institucional com a iniciativa “What the France”, marca de referência da organização CNM (Centre National de la Musique) criada para promover a diversidade da música produzida na França.

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