Bonde das poderosas no funk, no rap e no trap
Jovens artistas empoderadas cantam abertamente sobre temas que vão da fluidez sexual à ostentação
Elas não ligam para estereótipos, quebram barreiras — e barracos — todos os dias, debocham dos homens, cantam livremente sobre o prazer feminino e a fluidez sexual, falam palavrão, estão com a autoestima em dia e ostentam sem pudor as grifes que, agora, podem comprar e usar. Mas nem sempre foi assim para artistas de gêneros como o funk, o rap e o trap. E, mesmo com esse cenário positivo se firmando, ainda há uma porção de obstáculos a serem vencidos, como o machismo e o racismo, que também estão no universo musical.
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Para ajudar a compreender melhor como as mulheres dessas cenas se empoderaram e começaram a passar esse poder libertador para a música, Gama conversou com produtoras, rappers, dançarinas, funkeiras, estudiosas e estudiosos no tema.
Beijinho no ombro das pioneiras
Valesca Popozuda, Tati Quebra Barraco e Deize Tigrona foram alguns dos nomes que marcaram esse movimento empoderado no funk, no começo dos anos 2000, narrando, por meio das músicas, os próprios desejos e exaltando conquistas pessoais.
“Quando a Valesca Popozuda e a MC Carol, de Niterói, apareceram, elas fizeram essa virada de chave das mulheres no funk, cantando o que queriam, sem se importar com a opinião dos outros ou, ainda, sem precisar da validação de algum homem para isso”, diz Alana Leguth, cofundadora da KondZilla e fundadora da HERvolution.
A mulher pode cantar o que quiser e ter a postura que deseja, sem precisar da aprovação de ninguém
Ela explica que, até então, as primeiras MCs, como a MC Cacau, faziam apenas duetos de funk melody. “Sempre na segunda voz, numa posição complementar à dos homens, como a Cacau e o MC Marcinho, por exemplo [eles estouraram no meio da década de 1990]. “As que chegaram depois dela foram se abrindo mais, se empoderando, se posicionando e mostrando que, de fato, a mulher pode cantar o que quiser e ter a postura que deseja, sem precisar da aprovação de ninguém.”
Homem é pra sentar: a liberdade sexual
Professor de música e pesquisador do funk na USP, Thiago de Souza, o Thiagson, analisa que foram as mulheres “as responsáveis pela transformação da putaria” no gênero e que essa mudança também passa por percepções de questões ligadas à raça e à classe.
Para ele, ainda, os homens dependem da mulher para se exibir nas letras como “gostosos e comedores”, além de terem uma baixa autoestima e, por isso, se reafirmam a todo tempo, enquanto as artistas falam mais delas ou de outros assuntos e, hoje, depois de muito serem tratadas como objetos, até objetificam. Como em “Put@aria”, de Rubel com MC Carol e DJ Gabriel do Borel: “Eu sou bandida, eu sou safada. E a minha louça é tu que lava. Eu gozo primeiro, teu foco é meu grelo. Te esfolo inteiro, Carol mete medo”.
“Se a mulher quer rebolar a bunda e mostrar os peitos, não tem a ver com o cara, tem a ver com o desejo dela, é sobre ela, não sobre o homem. Há também uma perspectiva racial, de como a mulher preta é vista e tratada, e as condições materiais fazem com que ela tenha outra postura em relação à maneira de cantar a sexualidade”, conta.
O funk ficou mais explícito, inclusive o funk cantado pelos homens se tornou mais explícito, como uma espécie de resposta meio ressentida a essa mulher que se empodera
A partir de 2000, de acordo com Thiagson, as mulheres passaram a cantar a sexualidade mais explicitamente. “Começaram com coisas como ‘a porra da buceta é minha, se eu mandar chupar, tu vai chupar, se eu mandar botar, bota tudo’. Tem a Tati Quebra Barraco falando que ‘homem é pra sentar, não é pra amar’, colocando o homem em posição de submissão. Assim, o funk ficou mais explícito, inclusive o funk cantado pelos homens se tornou mais explícito, como uma espécie de resposta meio ressentida a essa mulher que se empodera.”
O especialista salienta que a mulher cantando o próprio gozo e enaltecendo sua liberdade sexual teve e tem “uma importância imensa para os rumos da história do funk”.
A pedagoga e dançarina Renata Prado, que ensina sobre o funk não apenas na prática, no rebolado, mas comenta a respeito da história do gênero, que faz parte da cultura afro-brasileira, enxerga uma movimentação libertadora também na dança.
“Com o feminismo se popularizando, as mulheres estão mais à vontade para dançar funk, se permitindo mais e rompendo com certos preconceitos que esse tipo de dança suscita. Hoje, as mulheres entendem que o corpo delas pertence a elas, que elas fazem com ele o que quiser”, elabora.
Meu corpo, minhas regras. Minha música, meu sexo
Letras sobre o prazer feminino não são uma exclusividade do funk. Jovens mulheres do rap e do trap —um gênero relativamente novo no Brasil— têm cantado sobre o tema. Ajuliacosta, de obras como “Homens como Você”, é uma delas.
A rapper acredita que as mulheres, de variados gêneros, que chegaram antes e abriram as portas inspiraram as novas gerações, além do acesso à internet, que possibilita que meninas gravem e postem seus trabalhos, e estudem sobre sexo, liberdade e afins.
O sexo não pode ser um tabu para a gente e ser uma coisa comum para o homem
“Acho que a internet nos deu a possibilidade de falarmos sobre nós, mulheres, sem um porta-voz que, talvez, tirasse um pouco o tom feminino e diminuísse o que a gente quisesse dizer. A internet também ajuda no conhecimento sobre essa liberdade sexual. E é aquela coisa: eu faço sexo, então também posso falar sobre isso. O sexo não pode ser um tabu para a gente e ser uma coisa comum para o homem”, pondera.
Slipmami usa o trap para dizer o que vem à mente, sem se preocupar se o que está sendo dito é uma bandeira feminista ou para mostrar um sentimento de poder conquistado. “Eu falo o que estou a fim de falar, e me divirto”, declara. Ela reconhece, porém, que, atualmente, a liberdade sexual pauta cada vez mais o trabalho de mulheres, seja no trap, no rap ou no funk.
“Quando eu era mais nova, ouvia muito rap de algumas brasileiras falando sobre causas sociais”, lembra. Hoje, ela ainda vê o rap de protesto, mas percebe que “as mulheres têm mais liberdade para falar sobre o que quiserem”.
A artista é um exemplo disso, e canta coisas como: “Me dá o teu dinheiro ou você me faz gozar. Quer gozada grátis vai tomar no cu pra lá”. Ela explica: “Quando os caras não se importam com o prazer feminino, [a regra é] ou você me faz gozar ou você me dá dinheiro”. Slipmami diz que não tem a intenção de colocar os homens abaixo dela e, mais do que exaltar o sexo feminino, o que interessa é onde ela se coloca. “É me colocar acima, me demonstrar. Por ser muito comum o cara ignorar o prazer da mina, eu sempre estou colocando que precisa haver o prazer: ‘vem atrás de mim porque minha buceta é gostosa.’”
Alana Leguth cita ainda mais artistas, como MC Dricka, MC Taya e Azzy, que também cantam livremente sobre sexo, corpo, liberdade e sucesso.
“Temos diversos exemplos de mulheres da música urbana que não seguem padrões estéticos, um padrão de composição ou de comportamento. Cada uma delas tem a sua personalidade, uma linguagem própria, e cada uma canta as próprias conquistas, canta sobre a sua autoestima. Assim, cada uma do seu jeito, com a sua realidade e suas vivências, elas empoderam outras mulheres. E isso é muito incrível”, finaliza.
Não é questão de luxo, faça o favor
Outro tema bastante em destaque é a ostentação, que aparece com frequência nas letras das gêmeas do rap Tasha & Tracie, como cantam em “Desce Licor”: “Desce licor 43, garrafa de Cîroc. Não pode me ver vencendo, recalcada se morde. Só porque tomou de assalto e vim lá da zona norte. Só vai brindar o Chandon quem tava e dividiu a dose”.
Tamiris Coutinho, autora de “Cai de Boca no Meu B*c3t@o: O Funk como Potência do Empoderamento Feminino” (Claraboia, 2021), graduada em relações públicas pela UERJ, com formação em música e negócios pela PUC-Rio, pesquisa a cena do trap no Rio de Janeiro e nota que o gênero apresenta, de fato, a ostentação e observa que a temática de mostrar roupas e acessórios de grife, bebidas caras e carros de luxo tem a ver com o contexto sociopolítico, que melhorou a vida dos mais pobres no começo dos anos 2000.
“Isso proporcionou uma ampliação maior do consumo por outras classes sociais, para além dos mais ricos. Hoje em dia, a gente consegue parcelar e ter um celular, uma roupa de marca. E um MC ou uma MC que conseguiu ascender socialmente e economicamente, dentro daquele contexto em que estão inseridos, vão querer ostentar”, avalia.
A pesquisadora completa: “Como estamos em uma sociedade capitalista que, infelizmente, é selvagem e que oprime, sobretudo, pessoas pretas e pobres, obviamente quando alguém dentro dessa conjuntura ascende financeiramente, é uma vitória, e os MCs e as MCs vão exibir esses itens luxuosos para incentivar outros outros jovens a buscarem, de forma digna e honesta, seus bens materiais. Então, perpassa muito esse imaginário também.”
Colaborou Emilly Gondim.
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