Como funciona o relacionamento aberto — Gama Revista
Qual é a do amor?
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Relações

Relacionamento aberto: modos de usar

Um jeito de apimentar a relação, explorar a sexualidade, olhar para o outro. Gama ouve especialistas para saber se, como, quando e por que vale a pena tentar novas formas de se relacionar

Manuela Stelzer 12 de Junho de 2022
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Relacionamento aberto: modos de usar

Um jeito de apimentar a relação, explorar a sexualidade, olhar para o outro. Gama ouve especialistas para saber se, como, quando e por que vale a pena tentar novas formas de se relacionar

Manuela Stelzer 12 de Junho de 2022

O ator Will Smith desferiu o tão falado tapa na cara do comediante Chris Rock durante a cerimônia do Oscar, mas a polêmica que o traz para o centro desta reportagem é seu relacionamento com a apresentadora Jada Pinkett. Juntos desde 1997, e sempre envolvidos em muita especulação sobre possíveis infidelidades ou um casamento aberto, eles admitiram a relação não exclusiva em setembro de 2021. E Smith não é o único entre os famosos: no Brasil, a ativista e empresária Bela Gil e a atriz Fernanda Nobre vivem relacionamentos abertos com seus maridos – e defendem a decisão.

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O assunto não é exatamente novo, mas segue quente e complexo. Em 2016, uma pesquisa feita com quase 9 mil adultos solteiros nos Estados Unidos mostrou que um em cada cinco já havia tido um relacionamento consensualmente não monogâmico. Segundo o psicólogo social e pesquisador do Instituto Kinsey, Justin Lehmiller, as buscas na internet por termos como “poliamor” e “relações abertas” aumentaram. E o interesse segue em ascensão: de acordo com o Google Trends, a procura por “polissexualidade” e “não monogamia” tiveram, respectivamente, um aumento de 500% e 350% do início de 2020 até agora.

A pandemia teve a ver com isso porque os casais foram obrigados a se olhar

As pessoas estão mais curiosas. Aplicativos de encontros, a facilidade de achar parceiros pela internet, tudo isso proporcionou mudanças de modalidade nos relacionamentos”, afirma a psicóloga e terapeuta sexual Anahy D’Amico. Ao que o psicanalista Lucas Bulamah, que recentemente lançou um canal no Youtube sobre não monogamia, complementa: “Acho que a pandemia teve a ver com isso porque os casais foram obrigados a se olhar. E como alternativas para além da relação exclusiva e tradicional têm sido apresentadas, as pessoas se serviram de outras possibilidades de união”.

Tão polêmico quanto sua definição, o relacionamento aberto oferece experiências diversas a quem ousar experimentá-lo. Com a ajuda de especialistas, Gama responde algumas dúvidas sobre boas práticas e modos de usar deste meio do caminho entre não monogamia e relações exclusivas mais tradicionais.

O que preciso saber antes de abrir?

Que não é bolinho. Muito provavelmente, entrar nesse barco vai demandar maturidade, transparência e muito diálogo. “Não tem uma regra pro sucesso, somos contra esse protocolo monogâmico de conhece-sai-namora-noiva-casa. Existe um roteiro e ninguém senta para conversar sobre os acordos da relação”, aponta a psicóloga e terapeuta de casal Adelita Monteiro, uma das fundadoras do perfil Reflexões & Conexões Não Mono. Ela exemplifica lembrando de abdicação da carreira, cuidado com os filhos, entre outras situações que se espera o protagonismo da mulher. “Na não monogamia, a proposta é que você decide o tipo de relação que quer e a constrói como desejar. Não há um roteiro, contanto que exista respeito e responsabilidade afetiva.

Para chegar a este ponto, entretanto, é preciso autoconhecimento. “Que relações quero construir, quais são minhas necessidades e expectativas? Esses são pontos que pressupõem uma sabedoria sobre si próprio, algo que muitas vezes não existe na monogamia.” De acordo com a psicóloga, a mentalidade monogâmica é de escassez, já que o amor deve ser doado única e exclusivamente para um outro alguém, enquanto na não monogamia acredita-se em uma abundância de prazer. “A pessoa que quer tentar vai precisar pesquisar e desconstruir essas crenças limitantes sobre amor e sexo.”

Bulamah relembra: “Algo interessante para se pensar é perceber o outro como diferente de você”. Ele diz que, ao se relacionar com alguém por muito tempo, a tendência é de encará-lo como comum, rotineiro, sexualmente desinteressante. “Não tem mais surpresa, mistério, novidade. Isso é fatal para casais estruturados nessa ilusão de controle de identidade, e que querem tentar abrir a relação.”

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Acordos e regras: o que pode e o que não pode?

Cada casal vai estabelecer seus combinados. “Toda relação tem seus acordos, sejam eles familiares, de trabalho, de amizade. O diferencial da não monogamia é que tentamos não prometer o impossível, ou seja, como posso garantir a alguém o que sentirei num amanhã que nem eu mesmo vivi?”, alerta a psicóloga e mestra em psicologia social Geni Núñez, que é também autora do prefácio de “O desafio Poliamoroso: por uma nova política dos afetos” (Elefante, 2022). “Esse tipo de cuidado é importante para que não se firmem acordos que retomam promessas já falidas na monogamia.”

Na não monogamia tentamos não prometer o impossível, ou seja, como posso garantir a alguém o que sentirei num amanhã que nem eu mesmo vivi?

Um casal que decide abrir o relacionamento precisa estar na mesma página, como afirma a psicóloga Adelita Monteiro: “É preciso combinar como vai ser essa abertura, se será apenas sexual ou afetiva, se posso me envolver, se vamos só transar com outras pessoas estando os dois juntos, etc”. Abrir e “ver no que vai dar” raramente é um bom jeito de levar esse relacionamento. “Aí chegam os conflitos, os desafios, o ciúme, tudo junto e atropelado.” Ela atenta para o fato de que o processo nunca sairá exatamente como planejado, por mais que acordos sejam feitos. Mas ainda assim é importante estabelecer regras, conversar e acolher o outro. “Só não dá para fazer uma lista gigante. Há variáveis que não são possíveis de serem controladas.”

Se a relação aberta parece um bicho de sete cabeças, Lucas Bulamah mostra que os conselhos para boas práticas nesses casos passam muito perto de um guia do casamento tradicional. “É a mesma instituição monogâmica de sempre. Alguns combinados se aplicam de um jeito universal, em um preceito ético e até moral do bem fazer da relação aberta”, explica. “Dar um conselho para um casal aberto não seria tão diferente de dois parceiros passando por uma maternidade e trabalhando, ou seja, escutem um ao outro, respeitem as escolhas individuais, preservem a individualidade.”

Mas o psicanalista atenta para o cuidado com as interações fora do relacionamento central: “É muito fácil para o casal se aventurar lá fora e voltar para a estabilidade da casa. Como ficam as pessoas com quem vocês se relacionam? Você as escuta, as valoriza enquanto seres humanos?”

E se meu parceiro não quiser?

Aqui é onde mora o perigo, e é preciso cuidado. Ao jornal The New York Times, um namorado anônimo enviou esta aflição ao colunista Philip Galanes – sua companheira queria abrir o relacionamento, e ele, surpreso com a proposta, não conseguiu se imaginar em uma relação deste tipo. A solução de Galanes foi clara e direta: “Sua resposta pode ser negativa, mas não dispense a ideia simplesmente porque você não estava esperando”.

Aceitar que o parceiro saia com outra pessoa por medo da separação é uma violência emocional

A psicóloga e terapeuta sexual Anahy D’Amico aponta para a comunicação transparente e honesta nessas situações, e o entendimento pleno dos motivos para querer ou não abrir o relacionamento. “Mas aceitar mudar a modalidade da relação por medo de perder o parceiro não dá certo. Aceitar que o parceiro saia com outra pessoa por medo da separação é uma violência emocional.”

Geni Núñez afirma que, entre as motivações para viver uma experiência, talvez a única que não seja interessante é quando fazemos algo por ou para o outro. “Isso tende a criar dívidas emocionais e ressentimento.” Adelita Monteiro segue a mesma linha: “Se um não quer, o outro vai ter que se reprimir, ou teremos o término. Se a pessoa escolhe se reprimir, essa abdicação vai ser cobrada em algum momento, há um limite”. Por mais que o terreno seja perigoso, não é o fim da linha, segundo Monteiro: “Se a pessoa que não quer abrir tiver um pouco de curiosidade, pode ter uma possibilidade do casal se compatibilizar.”

Abrir pode salvar meu relacionamento?

A resposta não é simples. “Muitas relações se abrem simplesmente porque os parceiros querem apimentar o sexo, que caiu na rotina. Eu não vejo problema em abrir, explorar a sexualidade, se divertir, mesmo quando o relacionamento não está legal”, afirma Adelita Monteiro. “Mas isso não vai salvar um casal em crise.” Segundo a psicóloga, que cita o livro “Ética do Amor Livre”, (Elefante, 2020) de Dossie Easton e Janet Hardy, é preciso quebrar o tabu do sexo – que é uma experiência prazerosa, e não devemos recusar explorá-la. “Abrir a relação pode matar um pouco essa carência e propor uma aproximação dos parceiros, colocá-los para conversar sobre acordos e regras, e consequentemente sobre todo o resto. Vejo muito isso nos casais que atendo.”

Lucas Bulamah traz uma reflexão para quem mira na relação aberta como um primeiro passo para a não monogamia: “Se o relacionamento está sofrendo questões mil, seja de rotina demais, desinteresse, falta de criatividade, abrir e ter a possibilidade de pensar sobre isso, mesmo que os acordos iniciais do casal monogâmico não sejam preservados, essa relação, para mim, já está salva”. Ele relembra as etapas de um casamento tradicional – começo, meio e fim – e como a não monogamia não segue o mesmo padrão. “É mais criativo, porque ela repensa inclusive o término, que é tão traumático na monogamia. Não precisa ser substitutivo, e nem abandonar a pessoa com quem você passou cinco, 15, 20 anos.”

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É para todo casal?

Por mais que a monogamia seja considerada um modelo em crise e extremamente frágil, Taís Araujo e Lázaro Ramos provam que não, ao relatarem que não abririam o casamento. A relação aberta é para os parceiros que, em comum acordo, topam quebrar com uma parte da exclusividade, seja só sexual ou também afetiva. “Têm casais que vivem muito bem num relacionamento fechado, monogâmico, exclusivo, e nem cogitam outra maneira de se relacionar”, explica Anahy D’Amico.

A relação aberta pode oferecer uma oportunidade para falar sobre as vulnerabilidades, ter conversas mais profundas

Se ambas as partes estiverem dispostas a explorar essa possibilidade, pode ser muito produtivo no sentido do diálogo honesto, concordam os especialistas. “Assim o casal pode começar a investigar seus desconfortos, ao invés de colocar tudo para debaixo do tapete”, afirma Adelita Monteiro. “Geralmente, nas relações monogâmicas, ninguém senta para conversar e fazer acordos, falar do que incomoda. A relação aberta pode oferecer uma oportunidade para falar sobre as vulnerabilidades, ter conversas mais profundas.”

Dá para chamar de não monogamia, afinal?

A questão divide especialistas. Geni Núñez acredita que a não-monogamia é uma tentativa de construir outras formas de se relacionar e questionar conceitos postos há muitos séculos. “Por que a renúncia ao direito à própria sexualidade ou afetividade é tida como sinal de amor? Por que, para provar que amo alguém, devo necessariamente não amar outras pessoas?” Para ela, a parte importante é o questionamento, que pode ser feito em uma relação aberta.

Adelita Monteiro, do perfil Reflexões & Conexões Não Mono, pensa como um primeiro passo para a não monogamia. “Em alguma medida, o padrão de exclusividade é quebrado, mesmo que seja unicamente a exclusividade sexual.” Ela afirma que a não monogamia propõe uma reavaliação do roteiro tradicional de um casamento. “E relacionamento aberto permite que as pessoas explorem seus desejos e sexualidade de forma mais honesta e consensual.”

Já o psicanalista Lucas Bulamah traz um contraponto: “Geralmente, essas relações são regidas por pactos e acordos de um casal, então, a ideia de ser aberta é restritiva. Nunca é de fato aberta, já que há a preservação da entidade do casal”. Ele diz que a não monogamia tende a criticar e tentar reestruturar as bases que fundamentam a monogamia, o que pouco acontece em um relacionamento aberto. “A questão que sempre me faço é: o quanto é de fato crítica à monogamia? Acho que muito pouco.”