Os estereótipos de gênero e outros problemas da comédia romântica — Gama Revista
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Repertório

A vida não é filme

Ideais e estereotipadas — mas incrivelmente atraentes. Especialistas explicam os problemas da comédia romântica, respondem por que ainda somos viciados nelas e o que precisa mudar

Manuela Stelzer 17 de Outubro de 2021

A vida não é filme

Manuela Stelzer 17 de Outubro de 2021
Isabela Durão

Ideais e estereotipadas — mas incrivelmente atraentes. Especialistas explicam os problemas da comédia romântica, respondem por que ainda somos viciados nelas e o que precisa mudar

Uma prostituta de Beverly Hills que é paga para ser acompanhante de um milionário a trabalho na cidade. Uma poderosa editora de livros que corre o risco de ser deportada e mente estar noiva de seu assistente para evitar problemas. Uma moça de origem imigrante que começa a namorar um homem às escondidas, já que o relacionamento jamais seria aceito pela família. O que todas essas histórias têm em comum? Além do gênero, do elenco branco, hétero e dentro de um padrão de beleza muito específico, o que as une é o desfecho: os casais se apaixonam, superam as diferenças e vivem felizes para sempre — ou pelo menos vemos o dia um dessa premissa.

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Se não reconheceu os enredos acima: a prostituta de Beverly Hills é Julia Roberts em “Uma Linda Mulher” (1990), que faz par com Richard Gere na quarta comédia romântica de maior bilheteria de todos os tempos. A poderosa editora de livros, Sandra Bullock, se apaixona por seu assistente, Ryan Reynolds, em “A Proposta” (2009), o sétimo da lista de sucessos. E a imigrante da história a la Romeu e Julieta é a atriz Nia Vardalos, protagonista no filme cômico e romântico que mais vendeu ingressos no cinema: “Casamento Grego”, de 2002.

Ao analisar os filmes mais vistos pelo público, parece haver uma fórmula para o sucesso. “Nesses roteiros, ninguém morre. Também rola essa educação sentimental, de quem merece o amor. E claro, o desencontro, que é fundamental”, explica a roteirista Renata Corrêa. De acordo com ela, quem vai se apaixonar são duas pessoas que ou têm um conflito direto, ou são muito diferentes. Impossibilitadas de se relacionar, os personagens veem o amor como uma dádiva, algo maior do que as questões sociais e ideológicas, e ele acaba sendo capaz de unir o casal apaixonado. A isso se une uma trilha envolvente e a química imbatível entre os atores. “Quando damos play nesses filmes, já esperamos o que vai acontecer, só queremos descobrir a forma como isso vai rolar. Se a produção trai essas expectativas, saímos meio frustrados”, afirma a roteirista Thais Pontes.

Vermos as coisas como elas são o tempo todo é insuportável. Quanto mais a sociedade soa como distópica, mais esse gênero se fortalece

As comédias românticas honram seu jargão de “água com açúcar”: são fáceis de assistir e não geram questionamento — ao contrário, são uma forma de escapar da realidade. “Vermos as coisas como elas são o tempo todo é insuportável, e tem ficado cada vez mais difícil. Quanto mais a sociedade soa como distópica, mais esse gênero se fortalece”, diz o psicanalista Lucas Liedke. “Ser acolhido ao invés de ser mais oprimido é algo que atrai as pessoas para esse tipo de conteúdo. O amor é uma estratégia, de alguma forma imaginária, para dar conta de uma falta. Uma tentativa de bater de frente com o real: da separação, da perda, e até com o real da morte.”

A fantasia e os ideais

A comédia romântica é fruto da união desses dois elementos. “A representação de algo, seja um relacionamento nas telas do cinema, inevitavelmente cria um estereótipo”, como explica a doutora em comunicação e semiótica Cândida Almeida. De acordo com ela, esses estereótipos, postos repetidamente para o público por meio do audiovisual, geram uma busca incessante por um ideal — que é irreal e inalcançável. “Essa busca começa a ser naturalmente frustrante e frustrada, porque na história da vida não vamos encontrar necessariamente aquilo que desejamos.”

Recheadas de idealizações, as comédias românticas podem, assim, transformar um aspecto muito negativo de uma relação em positivo, como por exemplo: camuflar uma atitude machista com uma pitada de romance. “Um Lugar Chamado Notting Hill” (1999), outro clássico do cinema com Julia Roberts e Hugh Grant, é um filme que desempenha muito bem o papel de glorificar a mulher que precisa se diminuir para conseguir um homem. “Ela é uma superestrela, e que em determinado momento diz que é ‘apenas uma garota, pedindo para um garoto para que ele a ame de volta’. É lindo, super-romântico, mas é o clássico da mulher maravilhosa, gata, que faz acontecer, e precisa se diminuir para conseguir um namorado e ser digna do amor”, analisa Corrêa.

Já o psicanalista Lucas Liedke aponta para a responsabilidade individual, na tentativa de evitar uma culpabilização do gênero. Segundo ele, por estar “viva” e em constante transformação, a cultura pode estar avançada em alguns pontos, atrasada em outros, perpetuar preconceitos, etc. “Mas ela também nos ajuda, de alguma forma, a despertar e movimentar nosso desejo.” Por isso, os ideais das comédias românticas podem ser prejudiciais se forem as únicas referências do que é um relacionamento. “O mais importante é estar aberto para conhecer mais histórias, mais modelos, mais desfechos possíveis”, explica Liedke. “A saúde de uma relação amorosa está no dinamismo, na reinvenção, na criatividade. E esses filmes podem ser uma das inspirações.” A fantasia, por mais que, por definição, seja uma falácia, é necessária. “É impossível viver só de realidade.”

Como tudo isso nos afeta?

O que acontece dentro da sala de cinema é algo muito próprio do ser humano: nos deslocamos para o lugar do outro. Cândida Almeida, doutora em semiótica, explica que toda a construção do audiovisual, acompanhada de trilha, imagem e roteiro, coloca o telespectador dentro daquele universo de tal maneira que ele torce pelos personagens, ri, chora e se emociona com eles. E se a narrativa traz conforto, felicidade e ainda mostra um final positivo, que “deu certo”, inconscientemente aquilo se consolida no imaginário. “Se torna quase inimaginável não optar por se casar de branco numa igreja cheia e ainda jogar o buquê de flores para trás. A mensagem que fica é que se você viver aquela realidade, vai ser feliz também.”

Sou uma mulher negra e alta. Pode parecer bobagem dizer isso, mas são características que dificultam que você se veja nesses filmes

Mas nem todos são impactados por essas produções da mesma forma. Na infância, Thais Pontes, hoje roteirista, adorava assistir a comédias românticas — mesmo que, raramente, se enxergasse nelas. “Sou uma mulher negra e alta. Pode parecer bobagem dizer isso, mas são características que dificultam que você se veja nesses filmes.” As inseguranças que colecionava na adolescência foram pouco retratadas no audiovisual e, segundo ela, esses filmes são sempre bastante padronizados. Mas diz também que, ao ver uma produção do gênero, entende que a vontade seja fugir da realidade, e não ver estampada na tela as dificuldades que a vida real já tem. Ainda assim, afirma: “Nada é melhor do que se identificar com o que assistimos”.

Renata Corrêa, também roteirista, relembra que a comédia romântica não é um produto que cai do céu. É pensada, produzida, distribuída por pessoas. “Quem são esses alguéns?”, questiona, apontando para a necessidade de colocarmos mulheres e mais diversidade atrás e na frente das câmeras. “Temos que mudar mesmo. A população negra e feminina é maior. Digo que são maiorias minorizadas. Claro que adoro ver ‘Uma Linda Mulher’, mas quero me ver ali também”, diz Pontes.

O que mudou — e o que ainda precisa mudar

Depois de décadas na soberania no audiovisual, as comédias românticas se tornaram grandes clichês, e o gênero sofreu um tombo daqueles. Até que, graças ao streaming e (finalmente) elencos mais diversos, como afirma o jornal britânico The Guardian, algumas produções, ainda que tímidas, trouxeram com elas um ideal mais atualizado do que seria o tal final feliz. “Missão Madrinha de Casamento”, de 2011, é um desses títulos: celebra o amor entre amigas e deixa o romance e a busca pela metade da laranja em segundo plano. “Megarromântico”, uma produção da Netflix de 2019, é outro: além de trazer uma mulher gorda como protagonista, é uma crítica viva ao gênero. Ambos mantêm a fantasia do amor, mas quebram estereótipos.

“A Incrível Jessica James” (2017) e “Insecure” (2016) fazem o mesmo: trazem mulheres negras à frente, abrem mão do ideal inalcançável e ainda contam uma história mais próxima de como a vida real de fato é. O primeiro, segundo Renata Corrêa, reforça a ideia de que relacionamentos dão trabalho, têm idas e vindas, e são construídos de forma não-linear, diferente do que as comédias românticas tradicionais pregam. Já o segundo explora a vida e as inseguranças de uma mulher negra no mercado de trabalho, nos relacionamentos e em diferentes espaços.

Depois destas, chegaram outras que seguiam um caminho semelhante. “Para Todos os Garotos Que Já Amei” (2018), traz uma protagonista, asiática, que é a caricatura da princesa dos contos de fada — usa laços no cabelo e faz cupcakes. “E mesmo assim, ela deseja diversos caras ao longo da narrativa, tanto que é ‘para todos os garotos’, são vários. É uma autodescoberta sobre amor e desejo bem complexa e avançada, apesar da embalagem fofa”, explica Corrêa. “Eu Nunca…” (2020) colocou uma indiana como protagonista, e duas melhores amigas igualmente não brancas. Sem perder o caráter cômico, traz a ideia de romance não apenas vinculada ao romantismo, mas ao desejo e à descoberta, algo muito mais pé no chão do que o amor idealizado de outros títulos (talvez porque a série tenha uma pitada de realidade).

O que se vê no audiovisual nos últimos anos é uma tentativa de levar as comédias românticas para mais perto do público, e assim promover identificação sem, entretanto, perder a fantasia, o foco no amor e nem o riso. Ainda que essas tendências mais emergentes tenham maior força no streaming e menor espaço nos estúdios, como mostram estudos, produções têm trazido cada vez mais temas relevantes e personagens complexos, com suas falhas em evidência. “Acredito que a comédia romântica possa servir como um termômetro do que está acontecendo, uma arena para tratar da sociedade em transformação”, analisa Lucas Liedke. “Já há evolução para falarmos mais da história e da experiência, do que necessariamente do final feliz.”

Thais Pontes diz que “nem todo mundo é um dono de empresa milionário como em ‘Uma Linda Mulher’. Temos que ver o popular também, humanizar as narrativas”. A roteirista conta que mais do que a fórmula, o que precisamos mudar é onde ela é aplicada. “Essa fórmula dá certo há muitos anos. Pegamos questões base do ser humano e só colocamos uma lente de aumento. Mas essa lente não precisa ser colocada só em mulheres brancas da alta sociedade. Pode ser colocada em mim, em você, em qualquer pessoa.” Se é impossível viver sem fantasia, só nos resta torcer para que as produções imaginem cenários mais contemporâneos, roteiros mais humanizados e elencos mais diversos.