Qual é o limite do sensacionalismo na TV? — Gama Revista
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Reportagem

Quem traça os limites do sensacionalismo?

Do “Linha Direta” aos programas de true crime, ainda é um desafio separar o interesse público da exploração vazia da violência

Leonardo Neiva 25 de Junho de 2023

Quem traça os limites do sensacionalismo?

Leonardo Neiva 25 de Junho de 2023

Do “Linha Direta” aos programas de true crime, ainda é um desafio separar o interesse público da exploração vazia da violência

Desde que retornou às telas de TV, o “Linha Direta” vem batendo recordes de audiência — e também levantando algumas polêmicas — nas noites da Globo. Um dos momentos que gerou mais controvérsia, o episódio que reconta o assassinato do menino Henry Borel, de quatro anos, chegou a ter sua exibição proibida pela Justiça a pedido da defesa da mãe de Henry e do Dr. Jairinho, acusados da morte do garoto. O programa, porém, foi ao ar de qualquer forma após liberação do ministro do STF Gilmar Mendes, que classificou a decisão como censura.

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Mas o episódio também gerou comoção nas redes ao mostrar uma cena em que Henry aparece no colo da mãe no elevador do prédio da família, aparentemente morto. Enquanto parte dos internautas tachou a cena de desnecessária ou sensacionalista, os defensores argumentaram que as imagens eram cruciais para o caso. Afinal, seriam provas de que o garoto chegou morto ao hospital, como afirmavam os médicos.

Casos assim mostram que não existe uma linha reta que trace onde termina o interesse público e onde começa o sensacionalismo. Por isso, muitas vezes recai sobre o senso comum e a avaliação pública a tarefa de julgar a sensibilidade de programas de TV, filmes e séries que abordam tragédias e crimes reais. Até por isso, casos como o do novo “Linha Direta” ou de toda série sensação de true crime acabam sendo julgados pelos tribunais das redes, geralmente com resultados difíceis de discernir.

Não existe jornalismo sem vibração, afeto, paixão. Isso vai estar sempre presente, mas presidido pela razão

Não que esses limites sejam sempre difusos. No caso dos tabloides — aqueles que, se você torcer, escorre sangue — e programas policiais de fim de tarde na TV aberta, é difícil enxergar algo além do puro sensacionalismo. “Um programa que seja uma concessão ao policialesco e ao entretenimento mórbido se afasta do que a imprensa deve constituir na sociedade”, resume o jornalista e professor na Escola de Comunicação e Artes da USP Eugênio Bucci. “Vira um circo que não tem nada a ver com informação, reflexão crítica ou respeito aos direitos das pessoas.”

Para Bucci, não se trata nem de uma questão ética, mas de saber respeitar a dose certa de cada coisa — como numa receita em que, caso você erre no sal, vai acabar ou com uma refeição sem gosto ou condimentada a ponto de se tornar intragável. “Não existe jornalismo sem vibração, afeto, paixão. Isso vai estar sempre presente, mas presidido pela razão.” Então, se houver razão de menos, o jornalismo deixa de dar o tom, diz o especialista.

No entanto, como em toda boa regra, a dosagem também encontra exceções. Como exemplo, Bucci relembra a cobertura dos atentados às Torres Gêmes. “Que informação nova vinha a cada segundo? Às vezes nenhuma, porque ninguém sabia exatamente o que estava acontecendo. Mas todos os cânones do bom jornalismo exigiam que aquilo fosse mostrado ininterruptamente. Nesse caso, defende o professor, o excesso de cobertura e exposição das mesmas imagens contemplava o interesse público. Isso porque a sociedade precisava entender que aquele era um evento disruptivo, com efeitos gigantescos.

“É uma situação em que o uso redundante, até sufocante de uma imagem de forte impacto não viola a boa prática da imprensa”, considera Bucci. “Mas, no cotidiano dos programas sensacionalistas, o que a gente vê em imagens ininterruptas são viaturas buzinando por avenidas, suspeitos sendo expostos, policiais dando entrevistas, que não acrescentam absolutamente nada.”

Casa abandonada

“Isso é um crime, e eu estou tentando parar.” A frase marca o primeiro contato do público com Margarida Bonetti. No episódio inicial do podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, o jornalista Chico Felitti a apresenta como uma mulher baixa e gorducha que veste uma camiseta tie-dye azul-marinho, leva uma faixa preta nos cabelos e carrega um caderno da Pequena Sereia.

Naquele momento, era impossível adivinhar que a moradora de Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, preocupada em impedir a derrubada de uma árvore, escondia no passado a acusação de manter uma empregada em situação análoga à escravidão. Nem que o caso acabaria virando o que o próprio Felitti descreveu como um “circo” envolvendo a ativista Luisa Mell, a mídia, a polícia e influenciadores fazendo dancinhas em frente ao casarão caindo aos pedaços onde Bonetti vive até hoje.

Se, por um lado, Bonetti foi criticada e ridicularizada tanto pelos crimes que cometeu quanto por sua figura excêntrica, ações como a entrada de Luisa Mell com a polícia na casa, sob justificativa de resgatar cães sofrendo maus-tratos e investigar um abandono de incapaz, também foram duramente questionadas como tentativas de ganhar mídia em cima do caso. A própria abordagem de Felitti no podcast chegou a ser contestada nas redes por uma suposta parcialidade no retrato que fez de Bonetti.

Segundo Felitti, durante a polêmica, os questionamentos vinham de todos os lados. Desde ouvintes perguntando por que ele mesmo não prendeu Bonetti até o questionamento de que haveria um interesse imobiliário por trás da história. “Recebi ligação de um jornalista dizendo que eu tinha ganhado um milhão de dólares de uma incorporadora para construir um prédio no lugar. Amor, se fosse assim, não estaria morando na Santa Cecília, e sim nas Bahamas”, diz o jornalista a Gama.

Felitti também afirma que só o que tem nas mãos é o conteúdo do podcast e que, embora tenha interesse em todos os desdobramentos da história, estes deixaram de ser sua responsabilidade depois que a história foi contada. “Quando vinham falar de um novo desdobramento dessa história, era algo que não estava sob meu controle.”

Janela para o passado

Mais do que evitar o sensacionalismo, reviver o passado também pode servir como forma de reavaliar os erros cometidos em algum momento e procurar não repeti-los. Hoje, é raro encontrar um jornalista que não conheça ou tenha estudado a cobertura do caso Escola Base.

Em 1994, o casal de proprietários da Escola Infantil Base, em São Paulo, foi acusado de pedofilia. Apesar de a polícia e imprensa da época agirem como se eles fossem culpados dos crimes, mais tarde ficou provado que tudo não passava de mentira. Mas, embora os réus tenham sido inocentados, o dano à imagem e à vida de Icushiro e Maria Aparecida Shimada foi irreparável. Os dois, que já morreram, nunca conseguiram se reerguer do episódio.

Quem conduz o documentário “Escola Base” (2022), da Globoplay, é o jornalista Valmir Salaro. Então repórter da Globo, ele foi um dos primeiros a cobrir o caso. Além de rememorar os acontecimentos, o filme serve como um mea-culpa de Salaro, que reavalia seus erros. Na época, além de não ouvir em nenhum momento o lado dos acusados, o jornalista ajudou a expô-los na TV como se já tivessem sido condenados.

“Quando o Salaro faz um balanço dessa cobertura, não incorre em nenhuma concessão sensacionalista”, aponta Bucci. “Pelo contrário, está fazendo um jornalismo que volta ao passado e reflete sobre si mesmo. Para mim, é de um grande valor informativo e ético.”

Numa das cenas mais intensas do documentário, o jornalista se vê frente ao filho do casal, à professora Paula Milhim e seu marido, o motorista Maurício Alvarenga — ambos também acusados injustamente do crime. Finalmente expondo seu lado, eles mostram ao repórter como suas vidas foram destruídas pelo incidente.

Crime e castigo

Mais um exemplo de mea-culpa jornalístico veio com a estreia da nova temporada do “Linha Direta”. Ao abordar o caso Eloá, em que uma jovem mantida em cárcere privado pelo ex-namorado acabou sendo morta por ele, o programa mostrou o quanto a imprensa — deixando clara a responsabilidade da própria emissora — interferiu nas negociações e pode ter mudado o rumo do crime. Outro caso semelhante é retratado no documentário “Ônibus 174” (2002), de José Padilha, que relembra um sequestro de ônibus transmitido em tempo real que terminou em tragédia.

Para o advogado Pierpaolo Bottini, o sensacionalismo reside no limiar entre os limites jurídico e ético. Mesmo quando a liberdade de expressão não chega a romper a intimidade ou honra alheia — e, portanto, não deve sofrer processo judicial — , ela ainda pode esbarrar na ética profissional.

“Se o sujeito dá uma notícia sem apurar ou ouvir o outro lado, isso pode ser crime, no caso da calúnia, ou uma negligência que não prevê punição penal, mas ainda assim pode gerar uma indenização”, afirma Bottini, que é organizador do livro “Direito, Mídia e Liberdade de Expressão” (Quartier Latin, 2023), ao lado do ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski.

“Em casos como o Escola Base, vimos isso com muita frequência. O que existe são notícias descuidadas, sem base documental nem ouvir o outro lado, que revelam um mau jornalismo, um jornalismo que abraça uma versão dos fatos em detrimento da outra”, continua o advogado.

Todos humanos

Foi só enquanto escrevia o livro “Rainhas da Noite” (Companhia das Letras, 2022), sobre três travestis que comandaram o centro de São Paulo entre 1970 e 2010, que Felitti se deu conta de que sua principal matéria de trabalho era a memória coletiva. “Até então isso era inconsciente, só fazia o que me interessava. Quando cheguei nesse livro, quase inteiro baseado em relatos e memórias, fui atrás de entender o que era a memória coletiva.”

As coisas são mais complexas do que parecem numa nota de jornal

Mas bem antes disso, ao narrar a história de Ricardo Corrêa — o Fofão da Augusta —, o jornalista acabou abordando uma figura que tocou a vida de milhares de pessoas ao longo dos anos. Ainda que nem sempre de forma agradável, na maioria das vezes esse contato foi marcante. “Nunca vou esquecer da moça que ele abordou para dizer que o cabelo dela estava com ponta dupla. Na hora, ela ficou ofendidíssima. Depois, se deu conta de que precisava mesmo de uma hidratação”, conta.

Para Felitti, uma história é boa — e evita uma abordagem sensacionalista — quando seu autor lembra que, vítima ou criminoso, no fim somos todos humanos. “Não podemos perder isso de vista. As coisas são mais complexas do que parecem numa nota de jornal.” Recentemente, ele anunciou um novo projeto de podcast com a Amazon Music, que deve trazer à tona outro relato de crime tipicamente brasileiro, cujos detalhes seguem em segredo.

Contadores de histórias

Outra que entrou para a lista da plataforma é a apresentadora e criadora do podcast “Não Inviabilize”, Déia Freitas. A contadora de histórias, que vai assumir o semanal “Histórias da Firma”, revela que nem sempre busca narrativas absurdas para chocar seu público — embora admita que são essas que acabam chamando mais atenção. Em vez disso, prefere as comuns, daquelas que provavelmente já aconteceram com você ou alguém que você conhece.

Antes de levar ao ar alguma das milhares de histórias que recebe dos ouvintes, Freitas considera necessários alguns cuidados. Primeiro, bate um papo longo com a pessoa. “Tento pegar detalhes, o que ficou faltando. E quero sentir se ela está realmente pronta para ouvir sua história, porque às vezes o assunto é difícil”, diz. Também faz questão de mudar os nomes dos envolvidos e do local onde a narrativa se passa, evitando que a situação seja reconhecida.

Sou uma contadora de histórias. É importante não perder essa perspectiva, senão podem rolar cobranças que não são minha responsabilidade

Em todos os anos que faz esse trabalho, ela recebeu apenas uma reclamação de alguém cuja história contou: uma ouvinte ficou incomodada com a chuva de hate que o namorado tomou nas redes. O que aconteceu foi que, certa vez, ele bateu leite com paçoca para enganá-la e embolsar o dinheiro que a namorada deu para comprar suplementos. Tentando apagar a má impressão, ela pediu para a podcaster gravar um novo episódio. “Avisei que todo mundo ia continuar odiando o namorado, apesar de ela achar que talvez perdoassem. Essa história teve um pouco mais de drama”, lembra Freitas.

A apresentadora acha importante esclarecer que, embora toque em temas importantes como racismo e gordofobia, sua proposta no programa não é fazer debates aprofundados. “Estou ali para entreter, sou uma contadora de histórias. É importante não perder essa perspectiva, senão podem rolar cobranças que não são minha responsabilidade.”