O que vai no prato das crianças?
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Ilustração de Luana Silva

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Reportagem

Os ultraprocessados na infância e os adultos de amanhã

Coloridos, práticos e viciantes, os alimentos empacotados que encantam as crianças de hoje podem deixar marcas profundas na saúde de toda uma geração, como obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares

Ana Elisa Faria 28 de Setembro de 2025

Os ultraprocessados na infância e os adultos de amanhã

Ana Elisa Faria 28 de Setembro de 2025
Ilustração de Luana Silva

Coloridos, práticos e viciantes, os alimentos empacotados que encantam as crianças de hoje podem deixar marcas profundas na saúde de toda uma geração, como obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares

Biscoitos recheados, refrigerantes, balas, salgadinhos, confeitos, nuggets e sucos de caixinha estão cada vez mais presentes na rotina alimentícia da população infantojuvenil brasileira. Coloridos, fáceis de carregar, abrir e comer, esses tipos de alimentos e bebidas, além de resolver a correria das famílias, agradam os pequenos. No entanto, por trás das propagandas de praticidade — e dos sabores viciantes —, escondem-se sérios riscos à saúde: deficiências nutricionais, excesso de peso, colesterol elevado, problemas intestinais e, mais adiante, doenças crônicas que acompanham o futuro adulto.

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O cenário atual preocupa. Segundo o mais recente Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil, o Enani, publicado em maio de 2024, 80% das crianças com menos de cinco anos consomem ultraprocessados regularmente. Em um recorte na faixa etária de seis meses a dois anos, período em que os bebês estão na fase de introdução alimentar, o percentual é de 20,5%, também considerado alto.

Quanto mais cresce a participação desses pacotinhos atraentes no cotidiano, menos espaço sobra para legumes, verduras, grãos. Ainda conforme a pesquisa, encomendada pelo Ministério da Saúde e conduzida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), metade das crianças não faz um consumo adequado de frutas e 80% não come raízes ou tubérculos.

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Uma investigação realizada pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com o Imperial College London, do Reino Unido, acompanhou nove mil britânicos dos sete aos 24 anos. O resultado foi alarmante. Os indivíduos que consumiram mais ultraprocessados na infância ganharam mais peso e apresentaram piores indicadores de obesidade na vida adulta. Essa relação é conhecida como dose–resposta, ou seja, quanto maior for a ingestão dessas comidas “de mentira”, maiores os danos.

O que são ultraprocessados e por que fazem mal

“São formulações industriais feitas com pouco ou nenhum alimento in natura e uma série de aditivos com funções cosméticas para dar cor, aroma, sabor e consistência”, explica Daniela Canella, professora do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Os ultraprocessados costumam ser ricos em açúcar, gordura, óleo e sódio e, frequentemente, têm adição de muitos “antes”, como corantes, aromatizantes, emulsificantes e espessantes, além de outras substâncias que dão propriedades sensoriais semelhantes às encontradas em alimentos naturais ou minimamente processados — é a famosa maquiagem da comida para torná-la sedutora e comestível. É o que se convencionou chamar de hiperpalatáveis, produtos criados a partir de uma combinação industrial tão irresistível que vicia.

Por serem fáceis de mastigar e agradáveis ao paladar dos mais jovens, os ultraprocessados vão moldando preferências desde cedo. E, quando a criança ou o adolescente aprende a gostar desse sabor intenso, frutas e vegetais começam a parecer opções “sem graça”.

Canella comenta que, para dar lucro à indústria de alimentos, esses itens precisam atrair o consumidor, que vai querer sempre mais um, o que provoca uma engorda até chegar ao sobrepeso e à obesidade. “Com o ganho de peso, vem outras consequências para a saúde, como a mudança do perfil lipídico, o aumento da chance de desenvolvimento de diabetes, da hipertensão e de doenças cardiovasculares”, afirma.

As marcas que a infância deixa

Os impactos de tantas guloseimas na lancheira e em pratos cheios de químicos aparecem logo. “Imagina uma criança com colesterol alto? É uma maluquice, mas é a realidade de muitas”, diz Daniela Canella.

Pesquisas mostram aumento de peso, alterações metabólicas e perfis de colesterol ruins ainda com pouca idade quando a dieta tem um índice de ultraprocessados elevado. “Claro que o efeito ao longo da vida vai ser pior pelo acúmulo desse consumo, mas vemos que mesmo em uma janela de tempo pequena já há consequências.”

Imagina uma criança com colesterol alto? É uma maluquice, mas é a realidade de muitas

A nutricionista infantil Larissa Mattar, que atende no próprio consultório e no ambulatório de especialidades pediátricas do Instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC–FMUSP), reforça que o acúmulo de gordura corporal é um dos resultados mais frequentes de se consumir altas quantidades desses tipos alimentícios na infância.

“Uma das principais consequências é a obesidade, e a persistência desde cedo [nesses cardápios] aumenta muito a probabilidade de a criança se tornar um adulto obeso”, pontua Mattar. Ela também frisa que um quadro comum resultante de uma infância ultraprocessada é o de diabetes tipo 2 em pessoas jovens.

Além disso, a especialista lembra que hábitos alimentares são construídos nos primeiros anos, e o que aprendemos a comer novinhos tende a se perpetuar.

Mas será que dá para mudar esse padrão? Não é simples, justamente porque gostos e preferências são alimentados e acompanhados por forte apelo da indústria desde a meninice, porém, é possível. Como ressalta Canella, reverter esse quadro requer estratégias de educação, acesso à comida de verdade e políticas que facilitem escolhas saudáveis.

Mattar frisa que é necessário, ainda, fazer um aconselhamento nutricional para uma transformação aos poucos. “Ninguém muda um hábito de um dia para o outro, mas é fundamental, inclusive, para impactar positivamente os filhos. Mas, às vezes, até acontece o contrário: a gente não consegue mudar os pais, mas conseguimos mudar a criança.”

É proibido proibir

Se o consumo diário de ultraprocessados é nocivo, cortar de vez também não é a melhor estratégia. “A proibição leva à compulsão. A criança passa a comer escondido ou em grande quantidade quando tem acesso a esses alimentos, seja na escola ou em uma festa de aniversário”, sinaliza Larissa Mattar.

Assim como as bebidas alcoólicas, não há uma recomendação de quantidade segura para a ingestão desses itens. Entretanto, em um mundo inundado por propaganda de pacotinhos coloridos deliciosos, é praticamente impossível passar incólume a eles.

A proibição leva à compulsão. A criança passa a comer escondido ou em grande quantidade quando tem acesso a esses alimentos

O ideal, segundo as profissionais, é equilibrar. Bolachas, chocolates e sucos industrializados não devem fazer parte da rotina de garotos e garotas, mas podem ser consumidos em ocasiões sociais, como festinhas, num fim de semana ou outro — a exceção é para os menores de dois anos, que não devem consumir ultraprocessados, recomenda o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras.

“Ser muito radical não funciona. A criança tem que entender que existem alimentos que ela precisa comer todos os dias, que são importantes para a saúde, e tem os que ela pode comer, mas apenas ocasionalmente”, ensina Mattar.

Educação alimentar na escola

O papel da escola também é essencial para o trabalho de diminuir os ultraprocessados do menu diário infantojuvenil. Além de ter cardápios balanceados e de regular cantinas (leia ainda mais nesta edição), a escola pode propor a atividades que aproximem os alunos da horta e da cozinha, que ajudam a criar um repertório alimentar diverso e saudável.

Para Larissa Mattar, as instituições de ensino deveriam ser obrigadas a oferecer uma disciplina de educação nutricional, com atividades lúdicas e brincadeiras que expliquem o que é comer saudável, o que são os ultraprocessados. “Isso ajudaria a criança a ter mais autonomia e a entender o que ela precisa comer e o que deve evitar.”

Compreendendo os malefícios desses produtos desde pequenos, além de decorar alguns nomes de aditivos para conseguir destrinchar um rótulo, os futuros adultos saberão o que é alimento de verdade e o que é uma maçaroca industrial com maquiagem bonitinha.

“Se tem uma lupa na embalagem, já acende um primeiro alerta. Depois, a dica é olhar para a lista de ingredientes. Caso tenha corante, aromatizante, edulcorante e emulsificante, os mais comuns e mais fáceis de memorizar, a pessoa já sabe que aquilo é um ultraprocessado”, enumera a professora da UERJ Daniela Canella. De acordo com a docente, essas ações são de extrema importância. “O mercado está cheio de coisas que parecem, mas não são. Olhar o rótulo ajuda e empodera o consumidor.”

Muitos snacks aparentemente saudáveis são um exemplo que, de tão maquiados, enganam compradores distraídos. Portanto, o lema é: se há ingredientes que você não usaria em casa, provavelmente aquele é um pacotinho ultraprocessado.

Todos para a cozinha

Pais, mães, cuidadoras e cuidadores, não se trata de transformar a alimentação infantil em uma missão impossível e cara. Algumas mudanças simples sugeridas pela nutricionista Larissa Mattar já fazem a diferença.

  • Separar um momento da semana para higienizar folhas, cozinhar grãos e porcionar frutas ajuda a evitar a facilidade de pegar um pacotinho no armário.
  • Faça lancheiras práticas, incluindo sempre uma fruta, uma fonte de proteína (iogurte natural, queijo, pasta de grão-de-bico) e um carboidrato de qualidade (pão integral, bolo caseiro).
  • Leve o pequeno para a cozinha. Quanto mais a criança participa do preparo dos alimentos, mais tende a aceitar verduras e legumes.
  • Negocie exceções, combinando o que será permitido em festas ou passeios e que, no dia seguinte — ou na próxima refeição —, a rotina saudável deve ser retomada.

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Este conteúdo integra uma série especial sobre segurança alimentar de crianças e adolescentes no Brasil, produzida com apoio do Infinis – Instituto Futuro é Infância Saudável. O Infinis é a frente de filantropia e advocacy da Fundação José Luiz Setúbal, e atua em defesa da saúde pública voltada a crianças e adolescentes, além de contribuir para o fortalecimento do terceiro setor e para o desenvolvimento da filantropia no país.

Um assunto a cada sete dias