Coluna da Fabiana Moraes: Pelo direito à poesia — Gama Revista
COLUNA

Fabiana Moraes

Pelo direito à poesia

Deixar de olhar para o lado e ver a árvore que plantei foi uma mostra do quanto eu, ao me tratar como uma máquina de trabalho, também neguei meu próprio acesso àquilo o que realmente vai restar

01 de Março de 2024
@0800tete0001

Notei na semana passada: fazia tempo que não olhava para a árvore que plantei no jardim do edifício no qual moro. Não sabia como ela estava, se a copa mais frondosa, se precisando de alguma poda, se estava de novo tomada pelas formigas. A questão é que essa árvore está exatamente ao lado do portão de entrada.

Eu estava apressada demais para olhar para o lado e notar aquela criatura com cerca de cinco metros de altura.

Notei também há poucos dias: em uma manhã de fim de semana, o coração acelerado enquanto preparava o café/enquanto colocava os tênis/enquanto procurava o podcast noticioso que ia ouvir/enquanto passava protetor solar no rosto/enquanto catava um elástico para prender o cabelo. Pressa, vai logo, bora.

Mas eu tinha a manhã praticamente livre.

Que porra é essa, Fabiana? Aí ela, muito espartana, muito domesticada, estava pronta para me contar: é que você nasceu para trabalhar. Vai, corre. Trabalha.

Não é a primeira vez que percebo isso, mas é a primeira vez que escrevo a respeito: talvez o trabalho tenha se tornado mais importante do que eu mesma. Alguém vaidosa — e, repito, domesticada — o suficiente para estar sempre muito ocupada. Vai, corre, bora. Trabalha.

Deixar de olhar para o lado e ver a árvore que plantei — e que luto para manter em pé, uma vez que sua existência provoca irritação na vizinhança — foi uma mostra do quanto eu, ao me tratar como uma máquina de trabalho, também neguei meu próprio acesso àquilo o que realmente vai restar depois de mais um artigo pronto, depois de mais uma reunião, depois de mais alguma disputa idiota por qualquer coisa: a poesia.

Fiquei pensando na autoestima mirrada e na percepção do valor de si somente pelo trabalho

O portão, a pressa, a árvore, o coração acelerado: percebi que eu, no fundo, achei que nunca tive direito a ela. Que não era coisa para gente como eu. Poesia é para os outros. Poesia é para os delicados. Poesia é para quem tem tempo. Me acho muito preta para a poesia? Mas quem me disse isso? De onde saiu essa domesticação? Vai, trabalha. A poesia é sociologia? A poesia é um passe? A poesia é branca demais para mim?

Contemplar, absorver, escrever e reescrever. Conversar, olhar, compor e recompor. Devaneio, sonho, porrada. Tempo.

Fiquei pensando na autoestima mirrada e na percepção do valor de si somente pelo trabalho que me atravessou e atravessa. Ao mesmo tempo, se somente assim, como eu consegui chegar até aqui? Burlei a regra? A domesticação falhou em algum ponto?

Há anos e há dias pensando nisso. Há anos e há dias que repito para mim que eu também tenho direito ao tempo e ao devaneio. Que tenho direito à poesia.

Entendi que um bom exercício seria reconhecê-los nas frestas do “vai, corre, trabalha”. Fazer um pequeno mapa para não me perder.

Noite de segunda, ia atrasar a coluna do mês (desculpa Belle!). Peguei a agenda e comecei a anotar:

  • “Olha, mãe, tá faiscando”. Mateus, meu filho, tinha uns seis anos e estava na janela da primeira casa que consegui pagar para nós dois. Ele queria dizer que estava chuviscando, essa palavra meio esquecida usada para falar de um momento tão bonito: a chuva ligeira que perfuma o chão. Depois daquele aviso, toda vez que chuvisca, eu vejo faísca. Obrigada, Mamá.

  • “Pois então saiba que não desejamos mais nada, a noite, a lua, prateada, silenciosa, ouve as nossas canções”. A voz de Creusa Cunha, a voz de Cartola: todas as vezes que ouço Sala de Recepção (1976), brilho molhado no olho. Hino do Brasil.

  • Aeroporto, sete da manhã de um mês de dezembro, embarque para o voo Fortaleza-Recife. Eu tinha acabado de presenciar uma atendente da Gol tratando muito mal um rapaz negro que ia viajar levando uma bolsa cheia de ferramentas de trabalho. Bermuda, chinelos, sem grana para excesso de bagagem. Estava processando aquele episódio quando chamam os passageiros e aparece Camilla, de salto alto, colar de pérolas, saia preta e blusa verde-piscina repleta de lantejoulas. Camilla, distribuindo brilho e dando um rodo no país que privilegia o negro enquanto subalterno. Camilla, que me salvou.

Camilla Requião, a passageira que distribuiu brilho e deu um rodo no país que privilegia o negro enquanto subalterno  Arquivo pessoal

  • Moa. Trago Moa para a lista várias vezes. Registro uma: ele, meu companheiro, meu namorado, com os fones de ouvido dentro de um avião. Estou lendo um livro, então vou falar algo com ele. Está de olhos fechados e maneia a cabeça levemente, as pálpebras apertam, relaxam. Acompanha a música e fica assim durante um bom tempo. Não se importa com o ao redor, só segue a canção. Eu não falo nada e fico admirando aquilo. Nos ouvidos dele, esse disco aqui.

  • Voltando do Iraq, inferninho clássico de Recife, perto das 5h da manhã. Entro em um táxi e o sol está chegando. Estou cansada e o corpo feliz por ter dançado durante várias horas. Lá fora, o mundo é laranja e rosa de sol. Eu começo a filmar para guardar pra mim. O taxista diz: “Tá bonito”. Não faço ideia onde essa gravação está. Não importa, eu guardei mesmo assim.

  • Teve outra vez no táxi. Estava chovendo e eu voltava para uma casa que ia mudar. Eu queria que ela mudasse, mas tinha medo. Mas queria. Aí começou a tocar A Matter of Feeling (1986), do Duran Duran. “How does it feel, when everyone surrounds you? How do you deal, do crowds make you feel lonely?/ Steal away in the morning, love’s already history to you”. Quase seis minutos de música. Aqueles caras que nunca vão saber de mim me deram a certeza: ao chegar em casa, eu sabia que estava tudo acabado.

  • Tem Maria Clara, que entrou com sua trança na sala de aula no primeiro dia em que comecei a ser professora da UFPE, há oito anos. Eu, Recife, ela Catende. Gostamos de LPs e esses dias falamos sobre os discos arranhados que já compramos. Falei que descartei alguns. Aí ela: “Foram tantos anos em contato com esses discos que me apeguei a alguns. Por exemplo, comprei o LP de Evaldo Braga mesmo sabendo que não ia tocar porque o vendedor me contou uma boa história. Uma amiga me deu um disco arranhado do Roberto Carlos por conta de uma dedicatória na capa.” Maria não se desfaz dos discos porque eles fazem mais do que tocar.

  • “Aquela saudade banal de nunca mais achar um jambo numa calçada molhada de chuva” (Miró)

  • Meu pai pintando a frente da casa com duas cores perto do ano novo. Minha mãe trazendo para minhas irmãs e eu vestidos brancos de cambraia. Os olhos castanhos de Pat. Olhar a ladeira do alto de nosso muro: no fim da rua, tinha o xangô de Dona Carminha.

  • A moça, bem alta e magra, depois da banca do trabalho de conclusão de curso. Era abraçada pelo pai, baixinho, agricultor, curvado de tempo e trabalho. Ele chorava. Era a primeira pessoa de sua família em uma universidade. Lá, na banca, eu chorava também. Nunca, nunca esqueci.

  • (…)

Olha, você é preta e merece a poesia. Olha, já tentaram te matar. E você merece — você merece — poesia

Tem tanta coisa. Da obviedade de que, sim, poesia é esse troço que cerze a vida da gente. Da obviedade de que ela morrerá de inanição através da minha absoluta falta de atenção. Deixar de olhar, por exemplo, uma criatura de cinco metros que plantei quando ela era somente um coração. Um coração de nego.

Tem tanta coisa: desde que conheci Maré, percebi que poesia não se nega, nem se pode ter vergonha por ser parte dela:

é impossível moralizar um poema
poesia é aventura:
não experiência inofensiva
arrumo arame tatame contenda
poesia é salto e queda livre
a vida acesa é cinema

Desde que Miró cantou “Abacateiro” pra mim. Desde que Miró declamou “Sonhos”, de Peninha (foi quando a poesia realmente fez folia em minha vida).

Desde que vi Ricardo Aleixo e o “Fruto Estranho“.

Desde que comecei a ler os poemas-posts de Tete, que aceitou estar comigo, hoje, aqui:

“Sendo o virtual um ambiente de enfoque na imagem (o instagram), no debate (o twitter) ou na ação (o tiktok), escrever poesia, um campo tão ligado a meditação e ao processamento de sentimento, em público nessas condições significa quebrar o tempo, de alguma maneira. Essa quebra do tempo para mim, num tom essencial, acontece também na quebra do poema em versos, o que por si só já empresta da escrita publicitária, que não é de todo ruim, mas também possui seus códigos, trejeitos e limites. De qualquer maneira, por essas razões, eu tenho muitas vezes tido de entender que escrever poesia é menos sobre a palavra, e mais sobre como eu apresento ela. Sobre a clareira que preciso abrir na mata antes de juntar lenha para, só então, acender uma fogueira. Essa é uma metáfora do mundo natural para a ação de dividir um poema em dez partes, em um carrossel.
Eu tenho tido de lidar com o texto dessa maneira, a conta-gotas, uma cebola, uma boneca russa, um mistério a ser revelado. Só assim consigo fazer com que alguém atrasado pro trabalho, no ônibus a caminho de uma aula, aceite essa coceira na orelha que é o poema. Como as pessoas têm aceitado este meu convite, acho que eu poderia criar um neologismo sobre isso, mas me rendo ao formalismo e só chamo de poema mesmo. Acho que acontecer na internet fala mais sobre (a falta de acesso) acesso à publicação, à editoras, à distribuição formal em livrarias, que é uma questão muito brasileira — o apagamento das forças xyz.
Isso acaba por tirar as pessoas que não conseguem pagar a própria produção sensível dentro dessa dinâmica — elas têm que trabalhar, pagar suas contas. E desse jeito eu sempre me sinto usufruindo de um privilégio, em poder continuar criando. Daí sabendo que é um privilégio, e processando isso, minha escrita tem muitas vezes se voltado a chamar as pessoas à uma autonomia, a alguma noção de perceber-a-si-mesmo, que a própria Audre Lorde coloca em um poema que li recentemente:

i dream of your freedom
as my victory
and the victory of all dark woman
who forego the vanities of silence
who war and weep
sometimes against our selves
in each other
rather than our enemies
falsehoods
eu sonho sua vitória
como minha própria
e de toda mulher escura
a encarar o silêncio vaidoso
em guerra e pranto
até contra nós mesmas
entre nós
invés de contra dos inimigos
a falsidade
(…)”

@0800tete0001

(Olha, você é preta e merece a poesia. Olha, você já foi tratada como merda e merece poesia. Olha, já tentaram te matar. E você merece — você merece — poesia).

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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