Escritora Juliana Leite fala sobre solidão — Gama Revista
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Conversas

Juliana Leite: "O amor não nos livra de atravessar uma crise de enxaqueca em absoluta solidão"

Autora de livro sobre viúva idosa que convive apenas com as próprias memórias fala da relação com o envelhecimento e a impossibilidade de o amor curar a solidão

Leonardo Neiva 05 de Março de 2023

Juliana Leite: “O amor não nos livra de atravessar uma crise de enxaqueca em absoluta solidão”

Leonardo Neiva 05 de Março de 2023

Autora de livro sobre viúva idosa que convive apenas com as próprias memórias fala da relação com o envelhecimento e a impossibilidade de o amor curar a solidão

Embora a escritora fluminense Juliana Leite, 39, tenha redigido seu segundo romance, “Humanos Exemplares” (Companhia das Letras, 2022), todo em 2020, primeiro ano de pandemia, a semente do livro foi plantada muito antes disso. Mais precisamente na infância. “Lembro de ver na TV, quando tinha uns sete anos, uma matéria sobre um meteoro a caminho da Terra”, conta. “Foi quando entendi que havia algo maior regendo a nossa existência, e a falta de garantias e controle sobre a vida. Fiquei fascinada e em pânico, comecei a ter sonhos em que meu corpo vagava sozinho no cosmos após a explosão do meteoro.”

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Numa experiência quase igualmente solitária, “Humanos Exemplares” narra a história de Natália, uma mulher prestes a completar cem anos de idade, que passa os dias isolada em seu apartamento aguardando uma ligação da filha. Como a maioria dos amigos e familiares já morreu, a viúva convive muito mais com as memórias que mantém dessas pessoas, assim como os traumas do período da ditadura.

Mas, se a primeira reação é imaginar uma realidade 100% triste e depressiva, o livro faz questão de destacar a dualidade dessa solidão: se, por um lado, a protagonista sente falta de alguém com quem conversar, também é capaz de aproveitar a liberdade dessa condição e os pequenos prazeres cotidianos, como saborear um pão com manteiga que derrete na boca.

Para a autora, a história de Natália se confunde com a da própria Terra. “A costura entre a história de uma mulher centenária e a do planeta é fruto de um desejo de observar o fim da existência com o mesmo empenho e criatividade de quem observa a vontade da vida”, aponta. Segundo Leite, para a personagem, essa morte é como se deixar diluir, derreter as próprias margens. E ela o faz por meio de uma estratégia milenar. “O que temos a fazer é contar histórias, todas as histórias vividas, como quem desfia pouco a pouco o individual para dentro do coletivo.”

A obra nasceu também da intensa convivência da escritora na infância com o avô, assim como da relação atual com a avó paterna. Ela conta que, certa vez, revelou à avó a culpa que sentia por não ser tão presente em sua vida quanto gostaria. Mas a resposta da matriarca a surpreendeu. “Ela me disse que é assim mesmo a vida, a gente não dá conta de tudo”, relembra. “Minha avó me alforriou da culpa porque ali estávamos as duas frente a frente, duas mulheres tentando dar conta da vida da melhor maneira. Firmar aquela proximidade era o mais importante.”

Assim como a protagonista de “Entre as Mãos” (Record, 2018), romance de estreia vencedor do Prêmio Sesc de Literatura e do APCA, Natália busca encontrar seu lugar no mundo em meio a traumas marcantes, inteiramente só num momento derradeiro da vida. A obra se inclui numa maré de livros recentes explorando a solidão feminina em seus diferentes aspectos. “Essas histórias e imaginários integram o núcleo da experiência humana como um todo, e não apenas da vida das mulheres”, diz Leite.

Em entrevista a Gama, a escritora fala de como a sociedade ocidental trata seus idosos, da ilusão de que o amor nos torna menos sós e aborda também o casamento e a maternidade como medidas de isolamento.

  • G |No que você se inspirou para constituir a psique de uma personagem centenária?

    Juliana Leite |

    Na ideia de liberdade e tempo. Minha intuição é que o tempo é o elemento fundamental que permite abrir mão do eu com mais tranquilidade, compreender mais amplamente a palavra humanidade. Ao longo da escrita, pensava no processo de envelhecimento como construção de liberdade. Como se, por trás da passagem dos anos, caíssem pouco a pouco os véus que escondem a identidade humana. Sem o véu da profissão, da responsabilidade pelos filhos, dos cargos familiares, da necessidade de conquistas incessantes, quem somos nós? Esse foi o pano de fundo do encontro com Natália nas páginas, problematizado pela vida prática e pelos jogos de força social que se impõem na rotinas. Acho que escrevemos livros e os lemos em busca de companhias que nos ajudem a atravessar certos tempos. Chamamos por essas pessoas antes mesmo de sabermos suas histórias e nomes. E elas se apresentam de bom grado para nós porque no fundo também desejam contar algumas coisas, existir. É uma busca de dois lados.

  • G |Li que você teve bastante contato com pessoas idosas na infância. Quais principais impressões você traz desse período?

    JL |

    Meu avô era quem mais olhava por nós, minha irmã e eu, durante o dia de trabalho dos meus pais. Ele já passava dos 70 anos quando nasci e tinha 101 quando desapareceu. Dessa época de convivência intensa e íntima, guardo algumas memórias importantes, que tinham a ver com sons: a personalidade absolutamente silenciosa, quieta, vagarosa; o molho de chaves que balançava no cinto; o acordeão que ele começou a estudar depois dos 80. Tanto o molho de chaves quanto o acordeão estão comigo hoje, ao alcance dos meus olhos. O silêncio também está comigo, talvez sua herança mais direta e definitiva, assim como a certeza do tamanho do amor nesse silêncio. O tempo pode parecer abstrato, mas não quando alguém que você ama completa 100 anos. Meu avô foi a concretude do tempo para mim, tão longevo quanto as grandes árvores que cobrem um século de história do planeta. Essa proximidade se expressa no gosto pelo ritmo mais lento dos gestos, na capacidade de escuta, no desejo de me aproximar de pessoas mais velhas para puxar papo.

  • G |O que te atrai nas conversas com pessoas de idade avançada?

    JL |

    Tenho uma curiosidade infinita por ouvir histórias de vida tão longas a ponto de o enredo já não ser o centro da atenção, mas sim a memória. A memória, com o passar do tempo, faz dos diálogos uma espécie de passeio entre ilhas: um amor aqui, uma saudade ali, uma aventura acolá. Cabe ao ouvinte criar braços para navegar entre elas, costurando pequenas completudes. É algo que me fascina. No último carnaval, conheci a Vera, 78 anos, cabelos brancos curtíssimos com uma coroa de flores multicoloridas, maiô rosa e uma saia de tule. Em três minutos de conversa, descobrimos que já moramos no mesmo bairro do Rio, em Vila Isabel, e estivemos nos mesmos sambas no início dos anos 2000, quando Jamelão era vivo e tocava caixinha de fósforo no bar da esquina da rua Jorge Rudge. Vera tinha uma tatuagem na nuca que definia sua vida após a aposentadoria: “Mais feliz”. Cada novo encontro como esse é um pretexto para reviver meu avô.

  • G |A sociedade acaba encarando os mais velhos sempre com um certo distanciamento, incluindo-os cada vez menos em conversas? Ainda falta sensibilidade para reconhecer suas vontades e necessidades?

    JL |

    Essas perguntas nascem e reverberam especialmente em sociedades brancas, ocidentais, capitalistas. Como contadora de histórias, percebo que sociedades orientais e povos originários são infinitamente mais criativos diante da extensão da vida, aplicando imaginação e fabulação a toda a existência, de antes do início até depois do fim. Existe uma compreensão simples e belíssima de que alguém que acumula os anos também acumula vivência, e por isso se torna uma preciosa fonte a quem recorrer em caso de impasse ou dúvida. Nós brancos e ocidentais temos muito menos sensibilidade e prática no assunto. Ficamos atrapalhadíssimos quando nos deparamos com esse momento existencial que não é regido pelos valores de progresso, conquista, produtividade e sucesso. Não sabemos onde colocar as mãos diante de tamanha liberdade. Deixamos de contar essas histórias, de compreender o grande arco da vida. Perdemos a fonte. Um dia desses li uma matéria que dizia que já nasceu a criança que viverá 150 anos, graças aos avanços da ciência e da medicina. Fiquei refletindo sobre o tamanho da imaginação que vamos precisar arranjar nesses 70 anos de vida a mais. Não bastará ter mais vida sem por dentro disso sermos capazes de imaginar uma boa vida.

  • G |Na sua visão, a solidão da mulher na terceira idade tem componentes característicos em comparação com homens idosos?

    JL |

    No Brasil — e creio que no mundo –, mulheres vivem mais do que homens. Significa que há mais mulheres experimentando o extremo dos anos, construindo uma visão panorâmica da existência e da humanidade. Como mulher, posso afirmar que nenhuma experiência humana acontece à margem da diferença de gênero, dos degraus sociais impostos. Nenhuma idade está a salvo da desigualdade de gênero.

  • G |Como você sente e encara a solidão em seu cotidiano?

    JL |

    Até este momento em que beiro os 40 anos vivencio a solidão como algo muito valioso para mim, fundamental. Muitas experiências fundadoras aconteceram em solidão, inclusive a minha descoberta como escritora. Algumas revelações da existência aguardam os momentos em que poderão se apresentar com tranquilidade para nós, momentos de solidão. Talvez eu entenda a solidão como a forma humana de dizer que, na ausência do outro, fica incontornável dar de cara com o sujeito que reside dentro de nós mesmos. Sem distrações, na solidão você olha de volta e diz: aqui estou eu. É um paradoxo da humanidade ser uma espécie que depende do conjunto, mas com travessias essencialmente individuais. Sei que vivemos experiências como o amor, radicais a ponto de nos fazerem sentir em nível celular que não estamos sós. Mas ainda somos lembrados de que o amor não nos livra de atravessar uma crise de enxaqueca em absoluta solidão, mesmo que alguém se mantenha à beira da cama todo o tempo. A dor, como um alerta de humanidade, lembra da individualidade. Claro que essa sensação benevolente em relação à solidão ainda pode mudar em mim. Provavelmente vai mudar.

  • G |A protagonista de “Humanos Exemplares” acaba se refugiando nas memórias para suportar o dia a dia. Você enxerga essa como uma tendência atrelada ao envelhecimento, se apegar mais ao passado do que a um presente sem acontecimentos? O isolamento favorece uma certa desconexão?

    JL |

    Se refugiar nas memórias é um instinto humano em todas as idades. Somos seres narrativos, nossos pensamentos estão o tempo todo narrando histórias na cabeça para dar sentido aos acontecimentos, construir saberes e fortalecer a continuidade. O passado é uma parte importante da realidade, o real não é feito apenas do presente. O envelhecimento é um período em que, cercados de menos acontecimentos e tarefas, precisamos recorrer com mais frequência à memória para narrar nossa existência. Vale a pena sermos criativos quanto a essa interpretação: será apego ao passado ou mobilização de uma bagagem mais volumosa e intensa? Se entendermos da segunda maneira, seria uma estratégia humana que nos conecta diretamente aos nossos antepassados mais remotos, aqueles que compreendiam que narrando e passando adiante nossas narrativas conseguiríamos seguir vivos.

  • G |A solidão da protagonista também tem um componente de liberdade e alguns prazeres repentinos e solitários, como saborear um pão com manteiga. Essa dualidade faz parte de estar só?

    JL |

    Natália é uma mulher que teve tempo suficiente para fazer da solidão uma companhia, para se habituar a essa presença. Ela não concordaria com o pensamento de que é preciso suportar a solidão, mas sim construir junto a ela uma convivência possível. Natália está sozinha e se sente sozinha, mas não é o único sentimento à mesa. Há espaço para que outros se juntem a essa coleção e componham as sensações de um dia como, por exemplo, o prazer de um pão com a manteiga derretida. Ela se deixa ser surpreendida pelo relaxamento e não expulsa o prazer quando ele se apresenta. Em meio ao possível mal-estar, percebe as inúmeras ilhas de bem-estar. Para nossa sorte — talvez seja uma benção neurológica da nossa constituição –, somos capazes de ter mais de uma sensação ao mesmo tempo, de mesclar sentimentos, até os ambíguos. Ver beleza em meio ao desalento, ter alegria no sofrimento. Tudo isso nos espanta.

  • G |E dá para não se deixar levar pelos sofrimentos e experiências mais negativas?

    JL |

    Participei de um retiro de meditação em que tive dor de cabeça durante dois dias inteiros. É quase impossível meditar com dor porque o próprio princípio da meditação, que é pousar radicalmente no próprio corpo e diminuir ao máximo os pensamentos, te lança bem no centro dela. Tudo que você quer é se distrair, sair do corpo que dói, e a meditação faz o contrário. Lembro de receber do professor a sugestão de meditar não dentro, mas ao lado da dor, buscando as ilhas que existem mesmo quando achamos que nada será capaz de aplacar aquilo. Achei que não fosse conseguir, mas ele sabia muito bem o que estava sugerindo. Com paciência e calma pude sentir, dentro do estado meditativo, que a própria dor estava descansando de si mesma naqueles instantes. Essa experiência me faz pensar na dualidade da qual somos capazes, para nossa alegria.

  • G |Você tem avós vivos? Como define sua relação com eles?

    JL |

    Tenho minha avó paterna viva, que mora em Petrópolis, cidade onde nasci. Nos vemos pouco e sempre que nos falamos ao telefone começo tomando a bênção — é um privilégio absoluto ouvir alguém que te abençoa — e termino dizendo eu te amo. Todas as vezes. Uma ocasião em que estava na casa dela conversando, senti o peso da culpa por não ser tão presente quanto gostaria. Ela me disse que é assim mesmo a vida, a gente não dá conta de tudo. Me contou que também sentia isso quando tinha pais e avós vivos. Fiquei arrebatada. Talvez esperasse uma resposta no caminho contrário, em que ela aproveitaria a deixa para dizer que também queria mais presença. Mas não fez isso, apesar de desejar mais presença.

  • G |Você imagina o por quê dessa resposta dela?

    JL |

    Minha avó me alforriou da culpa porque ali estávamos as duas frente a frente, duas mulheres tentando dar conta da vida da melhor maneira. Firmar aquela proximidade era o mais importante. Muito depois, numa prática de meditação, meu professor construiu uma conexão inesperada entre amor e liberdade. “Eu te amo e por isso te deixo livre”, ele disse. Me fez lembrar daquela tarde com a minha avó. Também tenho a sorte de ter num papel de avó a irmã mais velha da minha mãe. Ela me ensinou a chamá-la de avó desde bebê, é a avó que me promete bolo, promete um pano de prato novo, um anelzinho que ela tem e quer que seja meu. E me ensina que carregar as amigas por toda a vida, visitá-las e presenteá-las é muito importante. Na pandemia, ela descobriu o Whatsapp e agora tenho um acervo crescente de áudios em que nos damos notícias e dizemos que nos amamos. Sou grata à tecnologia por gerar esse acervo dos amores praticados à distância. “Humanos Exemplares” é dedicado a elas duas, assim como aos meus outros avós que já desapareceram e a quem sempre envio balões imaginários.

  • G |Romances contemporâneos vêm explorando o tema da solidão feminina na vida doméstica ou na sociedade. Por que, na sua visão, o assunto tem ganhado tanto destaque?

    JL |

    Mais do que destaque, sinto que tem ganhado representatividade, e isso significa o oposto: é possível perceber mais claramente o quanto essas histórias e imaginários integram a experiência humana, e não apenas a vida das mulheres. Quanto mais mulheres forem publicadas, mais evidente ficará o muro artificial que separa a vida doméstica da vida da sociedade, como se uma não fosse parte constitutiva e primordial da outra.

  • G |A experiência da maternidade ou de estar casada pode também ser isoladora para a mulher?

    JL |

    É uma pena, mas é incontornável dizer que sim. Esse é um fruto de nossa pouca criatividade de vida, da pouca liberdade de imaginação. Não faz sentido algum que experiências humanas tão grandiosas quanto a parentalidade e o amor possam ser limitadoras ou causar constrangimentos. No entanto, é o que acontece para muitas de nós. Me arriscaria a dizer que todas já experimentamos isolamento em alguma medida, ao menos em arranjos conjugais e de parentalidade heterossexuais. E muitas também chegaram a pensar que esse isolamento era natural, parte das escolhas. Não é. É preciso uma consciência e uma força psíquica tremendas para identificar, questionar e rearranjar esses isolamentos, lidando com cabos de força social extremamente resistentes. Um trabalho exaustivo e só possível com muita rede de apoio junto a outras mulheres, a seus exemplos, suas forças e travessias.

Produto

  • Humanos Exemplares
  • Juliana Leite
  • Companhia das Letras
  • 248 páginas

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