CV: Thiago Andrade
Chef da seleção australiana de futebol feminino, o brasileiro aprendeu a acreditar em si mesmo para alcançar o sucesso na cozinha
Na olimpíada de 2020, a seleção australiana feminina de futebol conquistou o quarto lugar em Tóquio, alcançando o seu melhor resultado esportivo em toda a história do time. O Brasil, por outro lado, não foi tão bem — paramos na quarta de final. Mas, ainda assim, havia um gostinho do Brasil no evento. É que desde 2019, a cozinha das Matildas – apelido dado ao time da Oceania – é controlada pelo chef brasileiro Thiago Andrade.
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Ele, que foi indicado por um amigo brasileiro que trabalhava na seleção masculina do país, inicialmente assumiu a chefia da alimentação da seleção sub 17 masculina. Com o tempo, o chef foi promovido e passou a comandar a cozinha do time feminino. Com a equipe, Andrade viajou para inúmeros países como Japão, Vietnã e Suécia. “Foi um período bem tenso”, relata o chef. “Tínhamos algumas competições para jogar em 2020, mas nenhuma aconteceu devido ao isolamento social.”
No começo de 2021, os campeonatos voltaram e ele retornou ao trabalho. Segundo Andrade, participar da olimpíada foi uma experiência incrível, mas também bem desafiadora. “Tudo estava bem controlado. Vivíamos em uma bolha e não podíamos sequer sair para comprar um ingrediente no mercado da esquina.” Apesar dos perrengues, o feito inédito da seleção fez tudo valer a pena “Foi ótimo estar ali e participar desse momento histórico para o time.”
Quem vê Andrade hoje como um chef internacional não imagina, mas ele quase seguiu outro caminho profissional. Antes de se tornar cozinheiro, se arriscou no curso de Publicidade e Propaganda. “Fiz todo o curso e comecei a trabalhar em uma produtora de vídeo, mas sabia que não era aquilo que queria fazer pelo resto da minha vida.” Nesse meio tempo, o pai dele entrou em uma sociedade de hamburgueria na mesma época em que Andrade estava concluindo a faculdade e chamou o filho para trabalhar com o marketing do negócio.
A paixão pela culinária era antiga. Quando criança, o chef de cozinha morava em um apartamento em cima do tradicional restaurante paulista Santo Colomba. Sua família era figurinha carimbada no estabelecimento e a pouca idade de Andrade não o tornava menos exigente. “Meu pai sempre me levou em bons restaurantes. No Santo Colomba, tinha contato direto com o chef e já era bem chatinho. Falava como queria o meu prato e tudo mais”, relata o cozinheiro.
Na hamburgueria, conviver diariamente com uma cozinha reacendeu a paixão de Andrade que acabou pedindo uma oportunidade de estágio para o responsável pela gastronomia do estabelecimento. “Tive três meses de experiência, observando e aprendendo todo o funcionamento de uma cozinha. Ali, percebi que era isso que queria fazer pelo resto da vida.”
A matrícula em um curso superior de gastronomia foi o próximo passo e não demorou muito para que o jovem se tornasse estagiário no restaurante Brasil a Gosto, da chef Ana Luiza Trajano. Ao fim do estágio, ele foi efetivado. Andrade também trabalhou em um hotel no interior de São Paulo, em um restaurante em Portugal e no Instituto Brasil a Gosto, onde atuou também como pesquisador e professor.
No papo a seguir, ele conta mais sobre sua trajetória nas cozinhas, os desafios da profissão e os sacrifícios que teve de fazer para chegar onde chegou.
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G |Qual o seu papel como chef de uma seleção de futebol?
Thiago Andrade |Costumo entrar em contato com os hóteis em que o time vai se hospedar e passo a lista de ingredientes que nós vamos utilizar na cozinha. Usamos a própria estrutura do hotel para preparar a alimentação dos atletas e da comissão técnica. Também peço que os funcionários do hotel me sugiram um cardápio, quem mora no local sempre vai saber quais os melhores ingredientes disponíveis. Quando tudo isso é finalizado, passo minhas escolhas para a equipe de nutrição e aprovamos juntos o menu que será servido.
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G |Para atuar na sua área, o que um bom profissional precisa saber?
T.A. |A faculdade de gastronomia te dá uma base. Eu acredito que fazer um curso de gastronomia é importante. Mas, no fundo, você aprende muito mais no dia a dia. Ter paciência para aprender, saber errar e tentar de novo. São requisitos básicos para um cozinheiro que quer ter uma boa carreira. Humildade também é bem importante. Já vi muito estudante de gastronomia chegando em um restaurante e achando que já é chef. Só que o caminho é longo. Eu, por exemplo, sei que ainda tenho muita coisa para aprender. É essencial ter curiosidade para procurar coisas novas, novas técnicas e tendências. Infelizmente, o setor de hospitalidade não é um setor muito valorizado. Dentro da realidade e das possibilidades de cada pessoa, é importante ir em diversos restaurantes e conhecer novas culturas alimentares.
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G |Você teve que abrir mão de algo para chegar onde chegou?
T.A. |Com certeza. Sempre fui alguém muito sociável, de sair todo final de semana com amigos e viajar com a família. Desde que virei chef, isso é algo que nunca mais consegui fazer. Já fiquei anos sem ver alguns colegas e tive relacionamentos que acabaram porque eu quase não ficava em casa e, quando em casa, estava sempre estressado e cansado. Abri mão de muitas coisas, mas não tenho arrependimento algum.
As escolas de gastronomia deveriam fazer cursos voltados para a culinária brasileira
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G |Qual é a importância de uma boa formação acadêmica na sua área?
T.A. |Aprender as bases da cozinha é essencial para uma boa carreira e uma formação acadêmica é o melhor caminho para isso. A partir da base é que você consegue criar sua própria identidade e trilhar seu próprio caminho. Apesar disso, acredito que os cursos de gastronomia no Brasil ainda têm muito a melhorar. Nós nos baseamos nas cozinhas europeias e nem sempre o que é ensinado é voltado para a cozinha brasileira. Hoje, nossa cozinha é bem valorizada e contamos com chefs de fama internacional. O Brasil está no mapa e eu acredito que as escolas de gastronomia deveriam fazer cursos voltados para a culinária brasileira.
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G |Na sua trajetória você cometeu alguma falha que não cometeria hoje?
T.A. |No começo da carreira eu era inseguro e não sabia valorizar o meu trabalho. O mercado de hospitalidade é um mercado desvalorizado, então nesse início eu recebia pouco e não tentava negociar os valores com meus chefes. Acabava aceitando algumas coisas que eu não deveria aceitar. Eu sabia que tinha potencial, mas tinha medo do que poderia acontecer. Na Europa, recebia um salário com o qual conseguia pagar as contas, mas nada mais do que isso. Eu já tinha um pouco mais de experiência, então fui conversar com o dono do restaurante e falei que a situação estava complicada. Ele concordou em me dar um aumento, disse que eu era um bom funcionário e merecia isso. O problema foi que o aumento nunca veio, mês após mês ele dizia que as coisas estavam difíceis, mas que no próximo mês ele ia acertar tudo. Quando o aumento finalmente apareceu, eram apenas doze euros. Pedi demissão no dia seguinte. Meses depois, fui convidado para uma nova vaga de emprego e me perguntaram qual era minha pretensão salarial. Eu não fazia ideia de quanto pedir, mas falei o dobro do que eu recebia no meu emprego antigo. Eles aceitaram. Tem coisas que a gente só aprende na marra e eu acabei aprendendo a me valorizar assim.
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G |Que conselho você daria para os profissionais que estão começando agora e que pretendem seguir carreira na sua área?
T.A. |Experimentem tudo. Leiam tudo. Testem tudo. Para um chef, ter referências é fundamental. Saber pesquisar é importante, hoje uma das áreas que mais crescem na gastronomia é a área de pesquisa e desenvolvimento. É preciso saber também que a gastronomia é uma área onde o retorno é bem demorado, você passa anos se dedicando a algo que nem sempre ocorre de forma imediata. Ninguém começa como chef. Aproveitar todas as oportunidades e as experiências nessa construção de carreira, entender a dinâmica de diferentes cozinhas e saber aproveitar o melhor de cada. Dedicação e paciência andam juntas, é importante ter as duas. Por fim, a terapia é essencial. Não só pra cozinha, mas pra vida. Trabalhar com culinária é um dos ambientes de maior pressão que existem, é um nível de estresse gigantesco. Estar em dia com a terapia ajuda muito nessa hora.
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G |Você vive para trabalhar?
T.A. |Eu vivia para trabalhar. Deixei de ver meus amigos, perdi relacionamentos. Hoje, busco ter um equilíbrio melhor. A minha namorada não vai falar que é equilibrado porque eu ainda trabalho muito, mas a quantidade de tempo livre que eu tenho hoje é incomparável com antigamente. A procura pelo equilíbrio também acontece dentro do trabalho, é uma profissão muito estressante. E não é estressante só para o chef, mas para todos os funcionários da cozinha. Busco ser o mais equilibrado possível com todo mundo.