CV: Francisco Sant’Ana, mestre sorveteiro — Gama Revista
Divulgação

CV: Francisco Sant’Ana

Em sua escola e projeto social em Heliópolis, o chef quer gerar renda e emprego incentivando uma sorveteria natural e genuinamente brasileira

Betina Neves 24 de Novembro de 2021

Francisco Sant’ Ana, de 48 anos, encontrou no sorvete o caminho para fazer sua pequena revolução no mundo. Há seis anos, o paulistano comanda a Escola Sorvete, a primeira formação independente no ramo da América Latina, em São Paulo. Ali, já ensinou cerca de 4,5 mil alunos, entre aulas presenciais e os cursos online que organizou durante a pandemia. A intenção é formar microempreendedores e incentivar o desenvolvimento de uma sorveteria genuinamente brasileira feita com ingredientes naturais. “Grande parte do mercado hoje usa produtos pré-prontos, muitas vezes importados, cheios de açúcar, corantes e saborizantes, em vez de aproveitar nossas frutas”, diz.

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Além disso, toca o Projeto ÔSH, sigla para Oficina de Sorvete de Heliópolis, que capacita moradores a fabricarem e venderem os gelados e dispõe de uma loja na Vila Madalena. Em breve, Sant’ Ana deve inaugurar uma fábrica na comunidade, que tem construído com investimento próprio e doação de empresas parceiras, para criar franquias sociais de sorvete. “O que me move é gerar renda e emprego, saber que estou ajudando alguém a levar o pão para casa.” Nas horas vagas, distribui sorvete de graça, como fez no Dia das Crianças deste ano no assentamento do MST em Franco da Rocha (SP).

Sant’ Ana embarcou pelo mundo dos sorvetes pouco depois dos 30. Antes, cursou geografia na USP e foi funcionário público do governo do estado, quando participou da criação do programa Meu Primeiro Trabalho, que funciona até hoje. “Mesmo assim, tinha a sensação de que não estava fazendo o que eu queria. Resolvi sair e investir em algo que eu gostava de fazer: cozinhar”, conta.

Ele vendeu então o pequeno apartamento que tinha em Osasco (SP) e foi estudar gastronomia – durante o curso, um professor disse que achava que ele não tinha ritmo para uma cozinha de restaurante, mas que daria um bom confeiteiro. Seguindo o conselho, acabou emendando uma série de experiências e formações internacionais, primeiro na Argentina, e depois na Europa, onde ficou seis anos – lá, obteve o diploma de chef pâtissier e glacier na prestigiosa Escola Nacional Superior de Confeitaria da França, estagiou com Alain Chartier, considerado um dos melhores sorveteiros do mundo, e trabalhou para a Gelato University Carpigiani, na Itália.

De volta ao Brasil desde 2015, Sant’ Ana passou a dar aulas, além de fornecer sorvetes para restaurantes e lojas e dar consultoria para sorveteiros que vão desde o interior do Goiás a países como El Salvador, Rússia e Egito. Agora, se prepara para mudar para um espaço com o dobro do tamanho. “A ideia é aumentar a produção para que os alunos possam estagiar na própria escola.”

A Gama, ele conta mais sobre sua trajetória.

  • G |O que te trouxe até aqui?

    Francisco Sant’ Ana |

    Eu sou preto, de origem pobre, e cresci em Cajamar, periferia de São Paulo. Joguei futebol até os 16, quando rompi o ligamento do joelho, e aí fiz de tudo: vendi roupa no trem, galinha na feira, o que aparecia. Eu sou de uma geração de resistentes. E todo dia acordo com a consciência de que eu tenho sorte e que fui privilegiado de ter feito o que eu fiz, e tento retribuir isso ao mundo. Eu fico pensando: quantos franciscos se perderem pelo caminho porque não tiveram oportunidade? Então hoje eu melhoro a minha vida tentando melhorar a vida dos outros.

  • G |Qual a sua missão na sua profissão?

    FS |

    Criar renda e emprego e incentivar o empreendedorismo para uma nova sorveteira brasileira – um mercado que é quase 85 % de pequenos e médios produtores. Outro dia, por exemplo, me ligou um cara dizendo que fez meu curso online de açaí, passou a produzir e hoje vende para uma porção de lojas, com 25 funcionários contratados. Eu acho isso fantástico. Eu tenho orgulho de saber que 25 pessoas levam pão para casa por causa de algo que eu criei. Eu gosto muito de gerar prosperidade nesse sentido coletivo. Eu quero que todo mundo possa chegar em casa e jantar a mesma coisa que eu.

  • G |Paixão e motivação andam juntas?

    FS |

    Sim, mas acho que a necessidade e o senso de sobrevivência também fazem parte disso. Se você não acordar de manhã com isso bem aguçado, você não faz nada com paixão. Na pandemia precisei muito disso: tive que reinventar o modelo de negócio, fazer aula online, vender sobremesas congeladas. E eu também acompanhava cada um dos nossos alunos, foi bom ver que quase nenhum deles fechou nesse período. Eu dou para cada um acompanhamento para a vida toda no Whatsapp, todo dia tenho umas 300 perguntas para responder. Mas eu gosto, gosto de ensinar.

Minha missão é criar renda e emprego e incentivar o empreendedorismo para uma nova sorveteira brasileira

  • G |Quais os principais desafios da sua área?

    Francisco Sant’ Ana |

    Minha ideia sempre foi construir a identidade da sorveteria brasileira, que precisa se desenvolver dentro de uma cadeira produtiva, como já acontece com o açaí. A gente tem um país imenso, com grande variedade de frutas e leite e água de qualidade, além de ingredientes especiais como a baunilha do cerrado. Mas nossa sorveteria foi, no geral, montada em cima de modelos de outros países por uma indústria espúria que vende produtos pré-prontos cheios de saborizantes, gordura vegetal, açúcar, emulsificante, óleo de palma, tudo de forma desmedida. Todas as grandes sorveterias usam essas coisas. Então é um sorvete industrial, mesmo que feito nos fundos de casa, uma versão ultraprocessada do sorvete. E não há regulamentação para os gelados comestíveis: você pode dizer que algo é de morango mesmo só tendo 20% de morango. Então eu tenho feito uma luta bastante acirrada para regulamentar o setor, porque colocar mais fruta dentro dos produtos significa gerar outra cadeira de emprego e negócios, além de melhorar a alimentação das pessoas.

  • G |Quais os seus aprendizados nesses anos como sorveteiro?

    FS |

    O mundo do sorvete é muito pequeno: são poucas empresas que fazem máquinas pra sorvete, há poucas formações e fornecedores independentes. Eu tive que provar que não precisa ser branco e italiano pra falar de sorvete – e hoje eu vendo sorvete até na Sibéria. Para isso, eu sempre foquei muito em entender o sistema de vendas mais adequado para cada lugar, além da cultura local em relação ao consumo de sorvete. Isso tem a ver com minha formação como geógrafo, entender o humano e o espaço. Aqui eu faço todo funcionário meu assistir o documentário “O Povo Brasileiro”, do Darcy Ribeiro. Eu formei minha personalidade lendo gente que foi contra o sistema, eu não consigo me enquadrar no sistema – eu sou rebelde mesmo, e eu sofro muito com isso. Às vezes eu acordo pensando: ‘mais um dia contra tudo que está aí’, como dizia o Brizola. Eu poderia ser só sorveteiro, dar minhas aulas, ser um sujeito isento, ganhar meu dinheiro, e tá tudo certo. Mas eu não consigo, minha natureza não é essa. Eu não consigo vender nem um picolé sem ter propósito.

  • G | O que um bom sorveteiro precisa saber?

    FS |

    Precisa entender que sorvete é estudo. Sorvete é cartesiano, é matemática, tem uma coisa lógica ali, tem que ser técnico. Tudo o que eu faço vem de estudo e de teste. Depois, precisa compreender aonde você está, para quem você vai vender, quem são os clientes em potencial, como é sua cadeia de produção e de vendas. Gastronomia é, acima de tudo, sistema de venda apoiado num sistema de produção e num sistema cultural que envolve aquela venda. Além disso, se você gosta do fim de semana e dos meses de verão, não dá pra ser sorveteiro. Sábado à tarde na praia, quando você gostaria de esta debaixo do guarda-sol descansando, o sorveteiro vai estar trabalhando até meia-noite.

  • G |Como você vê os recomeços na vida profissional?

    FS |

    Eu recomeço todo dia e aprendo todo dia, todo dia é uma escola. Recomeçar tem a ver com se adaptar às novas dinâmicas, ter uma boa gestão das suas circunstâncias, entender o que você precisa no momento. E tem a ver com necessidade e resiliência também: quem já teve fome sabe como acordar de manhã e recomeçar.

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