CV: Mariana Valente
A pesquisadora e diretora do InternetLab forjou seu próprio caminho no direito e conseguiu unir a paixão por arte e tecnologia em um único trabalho
Mariana Valente sempre gostou de arte e de tecnologia. Não imaginava, no entanto, que seu trabalho como advogada pudesse se relacionar com os quadros, pinturas e com a programação que tanto amava. Unir todas as suas áreas de interesse em uma única profissão parecia mesmo uma tarefa impossível, mas foi o acaso, junto a uma boa dose de coragem e persistência, que mudaram o rumo profissional da pesquisadora.
Hoje diretora da InternetLab, centro independente de pesquisa interdisciplinar nas áreas de direito e tecnologia, doutora pela Faculdade de Direito da USP e professora do Insper, Mariana forjou um caminho próprio dentro da profissão. Foi em uma visita ao Museu de Arte Moderna de São Paulo, quando estava no quinto ano da faculdade de direito, que ela se deparou com algo que mudaria sua vida profissional: um recrutamento para trabalho voluntário. Mariana enviou um e-mail demonstrando interesse, mas não para uma das vagas que estavam sendo ofertadas. “Não enviei para o setor que estava recrutando e sim para o setor jurídico do MAM.”
A proposta inesperada chamou a atenção do diretor jurídico, que convidou Mariana para uma entrevista. À época, o museu só contava com assessoria jurídica externa, mas já discutia a possibilidade de contratar um estagiário para a área. A ousadia deu certo: a estudante foi contratada para uma vaga que sequer estava sendo anunciada. “Fiquei encantada com as discussões sobre direitos autorais e políticas de [acesso ao] conhecimento mais justas. Me encontrei profissionalmente no museu.” Mariana trabalhou quatro anos no MAM, onde viu os temas que pesquisava na faculdade ganharem vida. “Eu já havia percebido, desde o meu TCC, que havia uma articulação muito grande entre a discussão do direito autoral e do direito digital. O direito digital nasce, como embrião, na discussão sobre a pirataria no ambiente digital.”
Depois de seu período no MAM, Mariana chegou a trabalhar por alguns meses em um grupo de pesquisas no Rio de Janeiro, mas acabou retornando a São Paulo, onde recebeu uma proposta profissional arriscada: dois colegas a convidaram para abrir um novo centro de pesquisa na capital. A resposta positiva demoraria um mês, mas apesar do medo inicial, decidiu topar o novo desafio. Ali, nascia o InternetLab.
“Foi um momento muito único. Sentávamos nós três e, juntos, pensamos de forma muito aberta como nós queríamos estruturar esse centro de pesquisas.” Os primeiros seis meses, ela lembra, foram de muito planejamento e de coragem, mas à medida que os financiamentos foram entrando, o InternetLab passou a se tornar uma realidade. Hoje, a pesquisadora de 35 anos não se orgulha apenas do trabalho que faz, mas dos profissionais que consegue formar. Ela entende que a iniciativa não só produz conhecimento, como também contribui para uma forma mais saudável e justa da pesquisa feita no Brasil.
Mariana Valente conversou com a Gama sobre as rápidas mudanças em sua área de atuação, a construção de relações profissionais sólidas e a atuação política na internet e no direito.
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G |Quais são os principais desafios da sua área e como lida com eles?
Mariana Valente |Trabalho em uma área em que, antes mesmo de publicar algo, esse algo já está desatualizado. A tecnologia, e as leis e negócios que a acompanham, sofrem mudanças enormes e constantes de mês em mês. O conhecimento, obviamente, é cumulativo, mas há uma necessidade de acompanhar tudo o que está acontecendo e, sempre que necessário, rever questões e conceitos. É necessário um processo de reeducação diária, rever todas as posições e não firmar um compromisso tão forte com o que foi defendido no passado. Fazer essa revisão constante é um desafio intelectual, existencial e político. É fundamental tomar cuidado para não ficar muito imerso nas novidades e deixar de enxergar o todo. A pesquisa traz esse espírito crítico e a perspectiva histórica das questões, a possibilidade de entender como as coisas surgiram e como elas se relacionaram com as demandas da sociedade. O desafio é casar passado, presente e futuro e oferecer respostas razoáveis para a sociedade como um todo.
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G |O que te trouxe até aqui?
MV |Construí muitas relações sólidas em torno de objetivos e princípios, isso criou oportunidades e me abriu portas. No museu, fiz articulações com grupos de museus que discutiam políticas de acervo, digitalização das obras e direitos autorais. Ter acesso a essas discussões e ser capaz de construir relações de confiança foram essenciais para minha carreira. Esses profissionais com quem eu tive contato são pessoas extremamente generosas e, sobretudo, com compromisso com direitos humanos e justiça social. Sem essas pessoas não teria feito meu doutorado. Mas eu não enxergo isso como um trabalho de networking. Não é sobre ir a um evento e distribuir cartões. É um trabalho de dedicação e um pacto baseado em princípios e valores. Há uma fama individualista da academia e da pesquisa, onde tudo é sempre uma disputa. Eu busco criar um espaço diferente, onde a cooperação acadêmica e o espírito colaborativo se sobressaiam.
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G |Você teve um mentor? Qual foi a importância dele?
MV |Não consigo mensurar a importância que ter um orientador generoso teve em minha pesquisa. Não tenho dúvida de que, muitas das portas que se abriram para mim tiveram relação direta com isso. O nome dele é José Eduardo Faria, da Faculdade de Direito da USP, e foi ele quem me deu a oportunidade de ter uma bolsa de pesquisa na graduação. Fiz o mestrado e o doutorado com ele e, nesse processo, vi de tudo — de orientadores muito generosos, como o meu, a orientadores que não tiveram a mesma postura. Ele sempre atuou na lógica de me impulsionar, me incentivando e ajudando de diversas formas. Nunca houve uma relação de disputa, mas sim um orgulho genuíno de ver sua orientanda crescendo. Até hoje ele me ajuda.
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G |Qual a sua missão na sua profissão?
MV |Cursando direito, fiquei muito tempo tentando encontrar o meu lugar. Não enxergava minha atuação em locais tradicionais do curso e a forma como atuo hoje não me foi apresentada no primeiro dia de aula. Ainda assim, é direito e eu estou nesses espaços tradicionais, assim como também estou em espaços criativos e de movimentos sociais. Cada vez mais, tenho visto o meu papel como uma produtora de dissonâncias. Elas podem chocar no começo, mas tendem a provocar mudanças. Procuro, por exemplo, sempre trazer a questão de gênero para espaços onde isso não costuma ser discutido. Promovo gentilmente essas dissonâncias com o objetivo de mover os limites. Hoje, entendo que minha missão é produzir conhecimento que esteja a serviço de políticas mais justas e inclusivas no campo da tecnologia. É necessário, por meio da pesquisa, pensar no papel emancipatório que a tecnologia pode ter na vida das pessoas.
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G |Quais foram seus maiores aprendizados nesses anos?
MV |É sempre difícil ser mulher em um espaço de discussões técnicas. A desigualdade e a falta de inclusão nesses espaços –e não falo só sobre mim– é uma grande dificuldade. Para mim, isso se colocou na questão de gênero, mas há outras questões, como a racial. Além disso, eu tenho o costume de trabalhar com muitos temas. Articular toda essa multiplicidade é um desafio na hora de construir uma carreira. Não consigo pensar em uma fórmula de como fiz tudo o que fiz, mas sei que foi com muita insistência. Sempre foi um esforço enorme, as coisas nunca estiveram dadas. O trabalho no InternetLab só ocorreu porque quebramos barreiras, juntamos áreas e construímos pontes.
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G |O que você diria para alguém que pensa em trilhar um caminho parecido?
MV |No campo de pesquisas e de debates de políticas públicas, o que mais me ajudou foi dar a cara nos espaços. Me envolvi com grupos de pesquisas participando deles, indo nos eventos e falando com as pessoas. Eu sou tímida e não foi fácil ou natural desenvolver essa capacidade de falar em público, mas eu insisti muito porque eu queria estar nesses espaços. Eu sabia que, para fazer parte das discussões, precisava entrar nos lugares onde elas ocorriam . É importante ir, se engajar e se colocar no campo em que você quer trabalhar, mas também é importante falar sobre valorização. Me envolvi em muitos projetos voluntários porque gostava de atuar neles e porque eu podia. É essencial encontrar o equilíbrio entre se jogar e atuar por causas que você acredita e entender que o trabalho tem de ser valorizado, não pode ser só voluntário. Esse equilíbrio é algo muito pessoal, sempre baseado na vida de cada um, mas tem de existir.