CV: Celso Athayde
Fundador da Cufa (Central Única das Favelas) e da Favela Holding, o empreendedor social comemora o prêmio que recebe este mês no Fórum Econômico Mundial, e relembra seus pontos de virada
Celso Athayde, 59, movimenta ideias, iniciativas, oportunidades, recursos. Mas, acima de tudo, movimenta pessoas. “Nunca fiz essa conta, mas estimo que hoje tenha uns 20 mil colaboradores com quem eu falo semanalmente. Os grupos de WhatsApp facilitam a vida da gente, claro”, conta.
Fundador da Cufa (Central Única das Favelas), onde atua como uma espécie de presidente do conselho, desde 2015 lidera o Favela Holding, grupo de 22 empresas de diversos setores que desenvolve negócios e gera empregos para moradores de comunidades. Entre elas há, por exemplo, a Favela Vai Voando, agência de viagens com mais de 400 filiais.
Sua rotina anda frenética neste ano especialmente atribulado. Em janeiro, ganhou o Prêmio Schwab de empreendedor social do ano pelo Fórum Econômico Mundial, pouco antes de anunciar o Favela Fundos, com 50 milhões destinados a startups de favelas. Aí, começou a preparar a feira de negócios Favela Expo, realizada entre 15 e 17 de abril no complexo WTC, em São Paulo, com mais de 30 mil pessoas. Ali, reuniu gente como o apresentador e empresário Luciano Huck, a empresária Luiza Trajano e o DJ Alok com empreendedores de favelas.
“É o único lugar onde a favela e o asfalto estão no mesmo lugar discutindo as mesmas coisas sem ser uma ‘cota’. Sem ser um evento em que alguém manda um ônibus buscar 40 favelados para ficarem ali num canto e tirar foto no fim.”
Nascido na Baixada Fluminense, Athayde cresceu na Favela do Sapo, depois de passar um período na rua e em abrigos públicos. Trabalhou de camelô e engraxate, teve envolvimento com o tráfico junto a Rogério Lengruber (1956-1992), um dos fundadores do Comando Vermelho, e depois se aproximou do rap, virou produtor musical – foi praticamente mentor de Kondzilla. Em 1999, criou a Cufa junto ao rapper MV Bill – hoje, a organização está presente em 5 mil favelas no Brasil e 17 países com projetos em diversas áreas para trazer atender a população de baixa renda.
A Gama, ele contou mais sobre seu propósito e sua trajetória.
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G |O que te trouxe até aqui?
Celso Athayde |Primeiro, a minha capacidade de perceber o ponto em que eu estou e as respostas que eu preciso dar para alcançar o próximo ponto. Nunca estou satisfeito com o que eu tenho, sempre tenho a convicção de que preciso olhar para os pontos seguintes. Quando era camelô em Madureira, por exemplo, eu não queria ser quem estava vendendo aquele produto, queria ser o fabricante dele. Eu sempre achava que podia ir além. A outra coisa também foi a sorte que bateu muitas vezes na minha porta e trouxe muitas pessoas para perto. E eu soube ir escolhendo as pessoas que apareciam, porque não apareceram só pessoas legais, muitas tinham comportamentos completamente contrários ao que eu queria. Mas eu soube refletir e renunciar certas relações. Acabei muitas vezes escolhendo o pior caminho para quem queria chegar mais rápido, mas o melhor caminho para quem queria chegar com um grau maior de segurança.
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G |Quais você considera seus grandes pontos de virada?
CA |Acho que o primeiro foi quando eu era criança e morava na rua. Tinha um cara ali chamado seu Zeca, que dizia que era um empresário que perdeu a família em um acidente de avião, abandonou tudo e foi morar na rua. Eu nunca conferi se aquilo era verdade, mas parecia que era, pelo grau de informação que ele tinha. Ele contava pra gente das viagens que tinha feito, ensinava palavras em inglês, a comer de garfo e faca. E tudo aquilo me fazia crer que existia uma vida para além daquela, que eu estava no lugar errado. Hoje dá para ver tudo isso na internet, naquela época, não. As histórias dele abriram uma cortina pra mim, comecei a sonhar mais, foi uma virada nesse sentido de autoestima, de busca pessoal. Outro marco também foi o tráfico. O Rogério Lengruber, que é um dos fundadores do Comando Vermelho, me obrigava a ler, me falava de comunismo, de revolução, de guerrilha urbana. E eu não sabia nada daquilo, mas me levou à ideia de que a revolução era possível. E eu queria fazer parte daquilo sem fazer parte do crime. Tive o crime como referência daquilo que não queria fazer. Eu queria ter aquela rede, mas para criar espaços para que as pessoas pudessem elaborar seu próprio pensamento, sua própria construção, aquilo que veio a ser a Cufa, uma escola de elaboração e de liberdade de pensamento. A gente já fala de empreendedorismo na base da pirâmide e impacto social há mais de 20 anos, só não era com esses termos. Acho que meu espírito empreendedor foi definido lá atrás, nesses momentos.
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G |E a Favela Holding, que você fundou?
CA |Acho que seria meu terceiro ponto de virada, quando eu conheci o Elias Tergilene, empresário mineiro fundador da rede popular “Uai Shopping”, e a gente resolveu fazer uma sociedade na qual ele trazia o discurso das grandes empresas e eu trazia a narrativa da favela. E isso virou a Favela Holding, em 2015. A parceria com esse cara me trouxe uma série de conselhos e percepções que eu usei para dar esse salto no mundo corporativo.
Acabei muitas vezes escolhendo o pior caminho para quem queria chegar mais rápido, mas o melhor caminho para quem queria chegar com um grau maior de segurança
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G |Você já disse que sempre fez as coisas meio no teste, que levantava voo para depois construir o avião. Ainda é assim?
Celso Athayde |É, o Favela Expo foi assim. A diferença é que hoje eu tenho um networking capaz de me dar suporte para o que eu faço, tenho um nome com o qual sou capaz de me apresentar. Ainda assim, me veem com desconfiança, tenho sempre que provar que consigo fazer aquilo que eu estou dizendo. Estou no meio dos empreendedores, mas não sou um empreendedor convencional. Não falo como eles falam, não reajo como eles reagem e nem tenho o conhecimento que eles têm. Mas, assim, este mês eu vou falar no Fórum Econômico Mundial em Davos, representando o Brasil como empreendedor do ano de impacto social e inovação. Eu também não posso deixar de reconhecer e lembrar que eu estou hoje nesse lugar. Ainda assim, tenho muitos desafios. Quando eu criei o Favela Fundos agora, por exemplo: eu não sou um grande conhecedor disso, eu simplesmente vou lá e faço. E vou recorrendo aos meus parceiros que conhecem mais do que eu e vão ajudando a construir. O avião está no ar.
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G |Qual sua missão nesse trabalho?
CA |Eu só tenho uma missão hoje: democratizar as oportunidades que eu tive. Porque vejo que muita gente na favela com uma baita vocação, mas sem formação. Hoje eu vou pra Harvard, MIT, London School of Economics, Columbia, falar de impacto social, de negócios sociais. E sempre nesses lugares eu estou falando das pessoas que deveriam ser impactadas, das favelas e periferias, mas eles nunca estão lá. Ou seja, eu estou sempre falando em nome ou para um ausente. E, se essa ausência continuar, a desigualdade social vai continuar. Se essas pessoas não estão ali nas nossas escolas e nem dos ambientes onde a gente fala delas, a gente está sempre se colocando com cientistas, a favela como um grande laboratório, e o favelado como um camundongo. E ele assim nunca vai poder elaborar o queijo que ele vai comer, vai sempre comer o queijo que outros produzem pra ele baseados em estudos sobre ele. A Favela Expo é uma tentativa de transformar isso, é a favela fazendo, produzindo, elaborando e dizendo: nós não queremos reproduzir o que vocês fazem necessariamente, mas também não queremos abrir mão do conhecimento que vocês desenvolveram ao longo dos anos. Então não é um evento para o Abílio Diniz mostrar pra quem vende cachorro-quente o que ele deve fazer. É um evento para que os dois contem sobre suas experiências de gestão. E ambos podem ter sucesso. Um que mobiliza 3 mil reais por mês e outro que mobiliza na casa de bilhão.
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G |Como você divide seu tempo hoje?
CA |Tenho sido difícil, porque a cada dia crescem o número de ações. Eu ainda acabo assumindo um monte de responsabilidades na Cufa, sobretudo na pandemia e com as enchentes. E na Favela Holding, por mais que eu tenha sócios em algumas das empresas, quem toca a parte da favela sou eu, então acabo tendo 22 atividades diferentes. E além disso tem os eventos. O tempo é dividido entre as buchas de cada minuto. Tem sido uma loucura, mas eu prometo que vou me aposentar, estou com quase 60 anos, né.
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G |Como é gerir tantas empresas ao mesmo tempo?
CA |É muita coisa, porque são empresas atuando em vários setores com uma rede muito grande de colaboradores. Quando você olha para o Lollapalooza, por exemplo, o Favela Holding esteve lá com várias empresas, como as de conteúdo digital. E assim, quando você é dono de um banco ou de um shopping, você está lidando com um ecossistema muito controlado, convencional, seguro, não muda muito de de uma loja para outra. Quando você está em uma favela, tem uma série de nuances dependendo da gestão, da rede de relacionamentos, da facção. São muitas variáveis, mesmo dentro de uma única favela, que mudam o tempo todo, há tensões, conflitos. É um lugar que tem muito mais códigos do que um espaço tradicional. E aí a minha presença acaba sendo necessária por um tempo muito maior.
Eu não sou um empreendedor convencional, as favelas têm muitas nuances, há tensões, conflitos
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G |O que os prêmios e reconhecimentos como o do Fórum Econômico Mundial te trazem na prática?
Celso Athayde |O reconhecimento não me traz vaidade. Ele me ajuda a diminuir o preconceito contra esse território. Ajuda a mostrar que as pessoas da favela têm dignidade, são empreendedoras, conseguem superar desafios e ascender sem necessariamente ser pelo futebol, pelo samba. Ajuda a mostrar que a gente pode sim estar na agenda econômica como donos de negócios, donos empresas, ganhando prêmios por ter inovado no mundo corporativo. E isso vai abrindo caminhos para que outros possam sair de trás da cortina como eu fiz.
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G |Que aprendizados o período da pandemia te trouxe?
CA |Que não existe novidade em isolamento social para quem é de favela. Quem nasceu ali já nasceu socialmente isolado. A situação foi nova, mas a realidade, não. Além disso, a gente teve oportunidade de perceber que a solidariedade entre nós é muito maior do que se achava. A gente precisou passar por uma tragédia tão grande para ver o quanto isso é relevante e verdadeiro.
Os prêmios e o reconhecimento vão abrindo caminhos para que outros possam sair de trás da cortina como eu fiz
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