Centenário de morte de Lima Barreto — Gama Revista
Retrato Lima Barreto
Divulgação

‘As estruturas sociais racistas que Lima Barreto denunciou ainda estão aqui’

No centenário de morte do autor de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, o crítico literário e pesquisador Jorge Augusto Silva fala sobre o legado de sua obra

Betina Neves 23 de Março de 2022

Em meio às discussões sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, relembramos neste ano também os cem anos da morte do escritor, jornalista e cronista carioca Lima Barreto (1881-1922), criador de uma das obras mais plurais e inovadoras da literatura brasileira.

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Autor de clássicos como “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “Recordações do escrivão Isaías Caminha” e “O Cemitério dos Vivos”, ele está sendo homenageado agora em projetos como o Espalhe Lima, promovido pelo Brazil LAB da Universidade de Princeton (EUA) e a editora Companhia das Letras, também com objetivo de difundir sua obra no exterior. Ao longo do ano, textos do escritor serão lidos por personalidades, artistas e intelectuais negros e negras, a começar por Djamila Ribeiro.

Nascido de pais livres, mas neto de escravizados, Lima Barreto expôs com muita ironia questões como o racismo, o nacionalismo ufanista, a corrupção política e moral das elites e a desigualdade social. A oralidade em sua obra representava o cotidiano que vivia pelas ruas do Rio de Janeiro, do subúrbio ao centro.

Lima Barreto pode ser considerado o fundador da literatura periférica no país

“Lima Barreto trouxe um repertório cultural negro para a literatura brasileira e pode ser considerado o fundador da literatura periférica no país”, diz Jorge Augusto Silva, doutor em literatura e crítica da cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Parte do robusto campo intelectual negro que hoje contribui para expandir as leituras sobre o modernismo no Brasil, o pesquisador passou os últimos seis anos debruçado sobre a obra de Lima Barreto. Em 2021, produziu ensaio crítico e notas inéditas para edição especial de “Triste Fim de Policarmo Quaresma” publicada pela Editora Antofágica.

Edição de “Triste Fim de Policarmo Quaresma” da Editora Antofágica  Divulgação

Em seu trabalho, ele defende a existência de um “modernismo negro”, do qual Lima Barreto faz parte, que incorpora a herança negra e se opõe ao eurocentrismo na cultura e no projeto de nação brasileira. Ele explica mais em conversa a Gama.

  • G |O que torna Lima Barreto tão atual nesse centenário de sua morte?

    Jorge Augusto Silva |

    As estruturas racistas que ele denunciava obviamente ainda estão presentes nas mais diversas esferas da sociedade; sua obra é uma “prova” dessa engrenagem excludente. Ele trazia discursos articulados e complexos sobre a realidade brasileira em sua produção ficcional. Ele percebia o racismo impregnado mesmo em novidades da época como o futebol e o movimento feminista branco, que ele já percebia não incluir as mulheres negras. Fora a crítica ao eurocentrismo, central em sua obra. Mas é importante entender que sua importância não reside exclusivamente na denúncia do racismo, mas também na resposta que se dá a esse racismo no plano estético (e, portanto, político) na arte negra no Brasil.

  • G |Qual a importância dele como intérprete do país?

    JAS |

    Ele via, por exemplo, que a gente não ia encontrar uma saída para o racismo brasileiro usando as ferramentas que essa “modernidade” nos deu, que hoje estão postas como neoliberalismo econômico, encarceramento em massa da população negra, racialização da sociedade, etc. Ele entendia que precisávamos de outras bases para fazer um novo Brasil. Mas tenho ressalvas a essa postura de ver Lima Barreto sempre como um documentador do Brasil, acho que dá para avançar um pouco nisso. Ele foi um grande romancista, um ficcionista. Ninguém chama, sei lá, Jorge Amado, que também falou muito do seu tempo, de documentador. Acho que é incontestável a importância que ele tem como intérprete do Brasil, mas isso não deve obliterar sua importância no campo das artes. Ele não só interpretou o social, mas também propôs uma nova formatação para ele, com grandes rupturas na literatura.

  • G |Que tipo de rupturas?

    JAS |

    Uma ruptura importante foi em relação à linguagem, se desvinculando da norma culta e fazendo um registro de língua popular do cotidiano da população urbana periférica do Rio de Janeiro. Mas, diferente do que se vê na obra de alguns modernistas, em que a oralidade aparece como representação ou figuração, a oralidade em Lima Barreto é estruturante na constituição do romance e carrega um repertório cultural negro que estava nos terreiros, no congado, nas línguas que os povos negros trouxeram da África. É uma literatura atravessada por outra concepção de tempo, por outros léxicos. Nas primeiras linhas de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, por exemplo, aparece o verbo “bongar”, que é da língua africana quimbundo. Então Lima Barreto sabia exatamente o que ele estava fazendo, trazendo o repertório cultural negro oral para dentro da literatura, ou seja, afirmando a centralidade da presença negra na cultura brasileira.

A oralidade em Lima Barreto carrega um repertório cultural negro que estava nos terreiros, no congado, nas línguas que os povos negros trouxeram de África

  • G |Hoje está se fazendo um movimento de chamá-lo de modernista e dizer que ele foi “deixado de fora” da Semana de Arte Moderna de 1922. O que você acha?

    Jorge Augusto Silva |

    Lima Barreto não passou despercebido pelo grupo paulista da semana de 1922, pelo contrário, eles inclusive leram e gostaram muito de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Eles até chegaram a mandar para ele um exemplar da revista Klaxon [veículo dedicado à propagação das ideias lançadas pelos modernistas paulistas durante a Semana de 1922] – que ele inclusive ironizou em um artigo, dizendo que o nome parecia de carro americano. A relação para por aí, porque ele vem a falecer pouco depois. Mas não sairia muita coisa dali, porque não era o mesmo projeto. Ele não poderia ser um modernista nos moldes de 22 porque não corroborava com a estrutura discursiva que alicerçava o movimento. O modernismo é base, por exemplo, para o fundamento do mito da democracia racial, uma ideia de mestiçagem harmônica que esmaecia a desigualdade social entre negros, brancos e indígenas. Lima Barreto nunca caiu nessa. Ele nunca iria dizer “somos todos iguais” porque ele denunciava justamente a antinegritude como propulsora da desigualdade. Por isso eu defendo que ele propôs um outro modernismo, que eu venho chamando de modernismo negro.

  • G |E como se dá o modernismo negro?

    JAS |

    Na literatura negra, podemos pensar em um caminho da que começa lá em Maria Firmina e Luiz Gama, chega a Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus e desagua até no rap e na Semana de Arte Moderna da Periferia, realizada em 2007 em São Paulo, com o poeta paulistano Sérgio Vaz. Esse modernismo parte do repertório cultural negro para pensar um caminho para outra modernidade. E critica justamente o pensamento ocidental no Brasil, que considerava o negro como inferior na escala da humanidade e assumia que, para sermos civilizados, tínhamos que copiar as grandes nações europeias. Lima dizia, por exemplo, que não aguentava mais ver as casas da periferia copiando as casas do centro – ele denunciava que essa cópia só poderia criar uma caricatura.

  • G |Quem bebe da influência de Lima Barreto na literatura negra?

    JAS |

    Lima Barreto é uma das influências mais importantes do campo negro na literatura brasileira. O descrevo, também, como grande articulador do que veio a se chamar de literatura periférica no Brasil. Mas não gosto de pensar assim em influência direta, como a tradição canônica da literatura. O tempo negro se move por dobramento, por circularidade, então gosto de pensar em redes que se conectam: dos diários de Lima Barreto aos de Carolina Maria de Jesus e à música “Diário de um Detento” [1997] dos Racionais MC’s.

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