Trecho de Livro -- Lugares de origem — Gama Revista

Trecho de livro

Lugares de origem

Diálogos sobre patrimônio cultural entre o líder indígena Ailton Krenak e o historiador Yussef Campos dão origem a um livro sobre identidade, memória e a vida no planeta

Leonardo Neiva 10 de Dezembro de 2021

O ponto de partida é uma discussão sobre patrimônio cultural no Brasil e a tensão latente no país entre memória e história. Um diálogo com o líder indígena, ambientalista, escritor e filósofo Ailton Krenak, que é autor do livro “Ideias para adiar o fim do mundo” (Companhia das Letras, 2019), para a tese de doutorado do historiador Yussef Campos.

Apesar desse lugar de largada, o ponto de chegada se tornou imprevisível. O diálogo, iniciado a partir de uma análise do conceito de patrimônio cultural estabelecido na Constituição de 1988, envereda por questionamentos mais profundos sobre a própria vida na Terra e a memória subjetiva, o sentido que dorme em determinado objetos. Tão densos, aliás, que viraram até livro: “Lugares de origem” (Jandaíra, 2021). Uma entrevista e uma palestra do líder indígena, culminando em um ensaio de Campos, em que ele parte do gesto de guerra e luto de Krenak ao pintar o rosto de jenipapo diante do Congresso Nacional, como forma de protesto às deturpações daquilo que foi definido durante a Constituinte.

“Um objeto não pode simplesmente ser apanhado numa aldeia, levado para um museu e ganhar uma etiqueta: artefato não sei o que, machadinha de pedra, cocar. Esse tipo de apropriação seria um roubo. Sempre foi um roubo, mas, a partir de um período muito recente, passou a ser denunciado como roubo”, aponta Krenak no segundo texto do livro, uma fala aos estudantes da Universidade Federal de Goiás após o estouro da barragem de Samarco, em Mariana. Na apresentação do volume, Yussef lembra que os textos incluídos na obra, no contexto atual, “podem ser lidos como um libelo em favor dos indígenas e de seus direitos”, em especial aos seus territórios, verdadeiros lugares de origem.


Parte 2: Territórios indígenas como lugares de origem

Palestra de Ailton Krenak mediada por Yussef Campos, proferida em outubro de 2019, quando Ailton esteve em Goiânia para abrir o IV Seminário do NEAP e o I Seminário Lugar e Patrimônio intitulado “Patrimônios Marginalizados e a luta pelo território”, organizado pela Faculdade de História, do Programa de Pós-Graduação em História e o Museu Antropológico e todos da Universidade Federal de Goiás (UFG), com coordenação geral de Yussef Campos.

No começo da década de 1990, tentando fazer valer o princípio que nós tínhamos estabelecido na Constituição de 1998, convidei uns colegas meus da PUC-Goiás e da UFG para criarmos um centro de pesquisas aqui no estado. Acabou por se chamar Centro de Pesquisa e Formação dos Povos Indígenas e reuniu professores da universidade, que formaram o quadro de docentes daquela experiência. Eles transformaram um espaço, que não era exclusivamente campus da UFG, em lugar de intervenção nos biomas do Cerrado e da Amazônia — com territórios indígenas, que eram os lugares de origem de todos os bolsistas desse programa de formação — que nós conseguimos fazer num convênio com a universidade e com algumas outras instituições. Naquela época, a gente conseguiu envolver também a Embrapa, o Fundo Nacional do Meio Ambiente, a Secretaria de Meio Ambiente e a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a ESALQ, lá de Piracicaba.

E o nosso querido e saudoso… aquele professor… não, não é Osis não, foi o nosso engajado orientador para a gente trabalhar com as frutas do cerrado e com a restauração de floresta da Amazônia. E… eu vou me lembrar o nome dele… não, ele foi diretor durante muito tempo daquele programa de florestas lá da ESALQ, depois foi para o Ministério
do Meio Ambiente. Mais tarde, na época em que a Marina já era ministra, ele foi diretor de biodiversidade e… a gente vai lembrar o nome dele… [Krenak se refere a João Paulo Capobianco].

O propósito do nosso encontro é falar sobre patrimônio e memória, essas duas grandes balizas que têm demarcado […] o debate entre os povos originários […] e o sistema de controle que o Estado usa para administrar as relações com os nossos territórios

De qualquer maneira, eu só queria fazer um pouco de sala enquanto o pessoal que está lá no corredor vai chegando, vai caber todo mundo aqui dentro.

O propósito do nosso encontro é falar sobre patrimônio e memória, essas duas grandes balizas que têm demarcado, de certa maneira, o debate entre os povos originários, entre as comunidades tradicionais e o sistema de controle que o Estado usa para administrar as relações com os nossos territórios e com o nosso modo de estar no nosso território.

Se temos uma oportunidade de refletir dentro do campo da memória e do patrimônio cultural, seria interessante observar como, ao longo dos últimos 40 anos, o Estado Nacional tratou ou evoluiu no trato com essas questões relativas aos povos não integrados no sistema da propriedade privada. [E também refletir sobre] a apropriação do conhecimento e da produção intelectual de quem não está dentro do mercado [convencional].

Vejo aqui uma oportunidade de trazer algum exemplo da aplicação daqueles princípios que nós batalhamos para incluir na nossa Constituição e que resultaram depois em regulações, aplicadas pelas agências do Estado, sobre nossos territórios e nossos modos de vida e de produção. Principalmente de produção daquilo que nós passamos a relacionar como patrimônio imaterial.

Quando nós deixamos de abordar só aquilo que o Yussef e os colegas dele chamam de “pedra e cal” [patrimônio material edificado], paramos de nos preocupar com aquilo que foi construído pelas mãos dos trabalhadores, que foi o patrimônio que demarcou esse campo de interesse até os anos 1960, 70. Só depois das décadas de 1970 e 80 é que se atinou que existe um vasto campo de criação que é muito importante e talvez, a cada passagem de tempo, se constitui no que poderia mais estar em disputa. Eu me refiro àquilo que é produzido pelo campo da cultura e pelo espaço das nossas subjetividades.

Independentemente de a gente demarcar a especificidade do que é produzido por povos originários, por uma etnia ou por uma dessas comunidades que foram relacionadas como povos tradicionais; independentemente do lugar de produção, todas têm em comum o fato de estarem sempre num fluxo constante de criação, de invenção. E o lugar dessa criação e invenção é a nossa subjetividade.

A nossa subjetividade não é um lugar de produção que o sistema capitalista demarca e a partir do qual opera

A nossa subjetividade não é um lugar de produção que o sistema capitalista demarca e a partir do qual opera. O Estado tem muita facilidade de controle sobre os acervos materiais da cultura. É capaz de fazer a identificação e a classificação desse patrimônio, exatamente por seu caráter material, pela possibilidade de apropriar-se dele e de transformá-lo em mercadoria.

Durante muito tempo, a ideia de patrimônio se confundiu com a ideia da mercadoria. Uma ponte construída no século 19, uma torre construída no século 17, 18 são elementos que têm uma materialidade, uma existência tão óbvia que são facilmente percebidos como um patrimônio e como algo que pode ser objeto de disputa. Isso resulta na produção de regulação de meios, de dizer quem pode mexer naquilo e quem não pode.

A própria restauração desses bens é regulada. É para isso que existe o IPHAN, por exemplo. O IPHAN existe muito mais para fazer regulação do que para atuar no campo de conservação, preservação e mesmo restauração. Então, é como se fosse uma polícia. É isso que o IPHAN, na verdade, acaba sendo: a polícia patrimonialista ou patrimonial que, a partir de um certo momento, se torna uma espécie de banco de dados sobre patrimônio material.

Foi assim até a década de 1970. Da década de 1980 para cá, principalmente com a implementação do capítulo da Constituição de 1988, o artigo 216, que inaugura essa conceituação de patrimônio imaterial e avança na ideia da imaterialidade de alguns campos da criação e da produção cultural, é que a coisa fica mais fluida. Algumas outras ideias e produções passam a se integrar também ao sistema de identificação, regulação e registro que compõe esse complexo patrimônio – material – patrimônio – imaterial. E como uma fronteira quase invisível daquilo que a gente podia chamar de memória.

Vocês já ouviram falar no Santo Sudário? Alguém já pegou nele? Nem vai pegar. Então, ele é o quê? Ele é um patrimônio material ou imaterial da cultura do Ocidente? Hum? Está vendo como o negócio é uma fronteira quase invisível?

A implicação da ideia de que a memória pode estar presente em objetos, como este vaso ou este paninho sobre a mesa [é clara]. Alguém, ou alguma cultura, pode decidir, por exemplo, que [esses objetos] constituem uma memória de algum evento, de modo que, a partir desse momento, eles passam a ser protegidos. Não estou querendo fazer provocação não, tá, gente? Mas existem objetos muito próximos destes aqui que são guardados a sete chaves, pela subjetividade que representam, não pela materialidade.

Vocês já ouviram falar no Santo Sudário? Alguém já pegou nele? Nem vai pegar. Então, ele é o quê? Ele é um patrimônio material ou imaterial da cultura do Ocidente? Hum? Está vendo como o negócio é uma fronteira quase invisível? Ele não era, mas ele virou. Antes era só um pano para enxugar suor.

Nos debates de que nós participamos nos últimos 20 anos, e mesmo com o Yussef e com os colegas dele, a gente vem produzindo uma crítica e uma análise sobre o caminho que esse tipo de regulação acaba produzindo. [Vemos objetos que têm] um estatuto material e passam também a carregar um sentido subjetivo que dá a eles o sentido de imaterial.

Para os povos indígenas, em algum momento a partir da década de 1990, [o conceito de patrimônio imaterial] significou a possibilidade de ampliar o campo da proteção a alguns territórios e à vida das pessoas a partir do inventário das suas subjetividades, das suas narrativas, da pintura do corpo, dos adornos, dos utensílios. Aquele conjunto de objetos deixa de ser só artefato que o museu pode pegar e guardar em algum lugar na vitrine e passa a ter [um] sentido para os seus detentores, para os seus produtores. Esse sentido reivindica um outro lugar.

Um objeto não pode simplesmente ser apanhado numa aldeia, levado para um museu e ganhar uma etiqueta: artefato não sei o que, machadinha de pedra, cocar. Esse tipo de apropriação seria um roubo. Sempre foi um roubo, mas, a partir de um período muito recente, passou a ser denunciado como roubo. É claro que o manto tupinambá foi roubado e levado à Europa [onde está exposto]. Mas ninguém dizia isso antes.

Produto

  • Lugares de Origem
  • Ailton Krenak e Yussef Campos
  • Jandaíra
  • 112 páginas

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