O que querem indígenas e negros do Brasil na COP27
Lideranças dos dois movimentos falam a Gama sobre a importância da inclusão nas discussões a respeito das mudanças climáticas, da proteção das florestas e do racismo ambiental
Quilombolas, representantes do movimento negro e lideranças dos povos indígenas estão no Egito para discutir o futuro: do planeta, das florestas, dos seus povos, das suas comunidades. Esses grupos, outrora invisibilizados pelas principais autoridades mundiais, foram à Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas se fazerem ouvir.
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“Nunca antes na história houve um número tão grande de ativistas negros numa COP, o que mostra que estamos vivendo um novo paradigma dentro dessa agenda”, diz Sheila de Carvalho, advogada internacional de direitos humanos e diretora do Instituto de Referência Negra Peregum.
Enchentes, alagamentos e mortes afetam de forma quase exclusiva comunidades pobres, periféricas, compostas por maioria negra
Ela conta que a participação negra na COP27 é importante para apresentar o olhar de quem sofre no dia a dia com o racismo ambiental e, ainda, é uma espécie de reparação pela ausência histórica do movimento negro brasileiro dentro desses espaços. “No Brasil, enchentes, alagamentos e mortes afetam de forma quase exclusiva comunidades pobres, periféricas e que são compostas por maioria negra”, ressalta.
A parlamentar Joênia Batista de Carvalho (Rede), primeira mulher indígena eleita deputada federal no país, concorda com a máxima utilizada por Carvalho: “Nada sobre nós sem nós”. Liderança da etnia Wapichana, de Roraima, Joênia Wapichana, como é conhecida, fala que os povos originários têm responsabilidades sobre seus territórios e, por isso, “é fundamental que ouçam as vozes indígenas nos debates, nas discussões e, principalmente, nos encaminhamentos para o combate da crise climática”.
Os indígenas estão enfrentando e sendo impactados por essa crise, desde a Amazônia até os pampas
“Os indígenas também estão enfrentando e sendo impactados por essa crise, desde a Amazônia até os pampas. Além disso, somos parte da sociedade brasileira e, como cidadãs e cidadãos, é de extrema importância ouvirem nossas contribuições a esse debate que interessa a todo o planeta”, conclui.
Para o especial da Gama sobre a COP27, que chega ao fim na sexta-feira (18), conversamos com Sheila de Carvalho e Joênia Wapichana, que falaram sobre as causas que as levaram ao evento egípcio. Leia abaixo.
“É fundamental que ouçam as vozes indígenas nos debates, nas discussões e, principalmente, nos encaminhamentos para o combate da crise climática”
Joênia Wapichana, advogada e primeira mulher indígena eleita deputada federal. Ela representa Roraima na Câmara pela Rede Sustentabilidade até o fim de 2022
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G |Para o movimento indígena brasileiro, qual é a importância de participar de um evento como a COP27?
Joênia Wapichana |É muito importante, uma vez que esses povos são detentores de direitos relacionados à posse da terra. Eles são responsáveis pelo cuidado com a floresta e pelos principais recursos naturais, como a água e a biodiversidade. Então, se há uma responsabilidade sobre esses territórios, é fundamental que ouçam as vozes indígenas nos debates, nas discussões e, principalmente, nos encaminhamentos para o combate da crise climática. Os indígenas também estão enfrentando e sendo impactados por essa crise, desde a Amazônia até os pampas. Além disso, somos parte da sociedade brasileira e, como cidadãs e cidadãos, é de extrema importância ouvirem nossas contribuições a esse debate que interessa a todo o planeta.
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G |Quais as agendas prioritárias que os indígenas levaram ao Egito?
JW |Primeiro, a inclusão indígena nos temas que estão no centro do debate, como a questão de perdas e danos decorrentes dessa crise climática, as questões das inundações, dos desmatamentos e das queimadas, assim como a necessidade de os indígenas serem incluídos em um possível apoio estabelecido na conferência para o processo de financiamento climático. Porque é necessário reconstruir o Brasil, mas para isso precisamos de investimento e suporte financeiro. Os povos indígenas têm como agenda mostrar não apenas o que passam, mas também buscar soluções e serem incluídos nessas soluções.
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G |Nos últimos anos, não tivemos nenhum avanço (pelo contrário) em torno da discussão a respeito da demarcação das terras indígenas. Por que esse tema é essencial?
JW |Não tivemos avanços porque o [presidente Jair] Bolsonaro [PL] sempre quis excluir os povos indígenas e nunca teve interesse em avançar com os processos de demarcação das terras indígenas. O tema é importante porque as terras indígenas, segundo cientistas, pesquisadores e a própria ONU, ficam em áreas estratégicas, não somente para a conservação da biodiversidade, mas estratégicas para a redução da emissão de gás carbônico, já que os indígenas têm trabalhado para proteger a floresta em pé a partir de conhecimentos tradicionais e da nossa cosmovisão, que é justamente a preocupação com o meio ambiente, com a natureza, com os recursos naturais e com as futuras gerações.
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G |O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que está na COP27, prometeu trazer novamente as pautas ambientais para o centro do debate, além de dar o devido protagonismo aos povos originários. Como o mundo e as lideranças presentes na conferência enxergam o novo momento do Brasil?
JW |O mundo está vendo o Brasil com bons olhos, principalmente após a eleição do presidente Lula, que tem como proposta retomar a agenda socioambiental. Ele também prometeu dialogar com os povos indígenas e, ainda, retirar os garimpos ilegais. Como essas são motivações dos participantes da COP, a credibilidade no Brasil aumenta. Além disso, a presença de Lula no evento só engrandece, não somente a esperança, mas também as possibilidades de retomada de uma série de parcerias e apoios para o país.
“Nada sobre nós sem nós. Nenhuma negociação sem nós. Nenhuma ação em relação às mudanças climáticas que nos afeta sem nós”
Sheila de Carvalho, advogada internacional de direitos humanos, professora e ativista. É diretora do Instituto de Referência Negra Peregum
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G |Qual é a importância para o movimento negro brasileiro a participação em um evento global como a COP27?
Sheila de Carvalho |A nossa participação na COP segue a lógica do “nada sobre nós sem nós”. Temos visto muitos estudos e análises sobre as mudanças climáticas e como elas impactam de forma desproporcional grupos vulneráveis, dentre eles a população negra, as pessoas que vivem em favelas. Isso não é exclusivo do Brasil, é um fenômeno global. Então, é fundamental, para reivindicar o nosso lugar, tentar influenciar as mesas de negociação sobre o tema, além de ser uma reparação pela ausência histórica do movimento negro brasileiro dentro desses espaços. Foi bastante significativo ir ao Egito com um número expressivo de pessoas ligadas ao movimento negro, o maior da história para uma COP, o que mostra que a gente está vivendo um novo paradigma. Nada sobre nós sem nós, nenhuma negociação sem nós, nenhuma ação em relação às mudanças climáticas que nos afeta sem nós.
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G |Quais as principais agendas que o movimento negro do país levou à COP27?
SC |Nossa agenda prioritária foi colocar em debate o racismo ambiental, mostrar uma situação estrutural de exclusão, de falta de políticas, de ausências de percepção fundadas no racismo, que faz com que populações negras sejam um alvo certeiro das mudanças climáticas e da crise ecológica na qual nós vivemos. Foi fundamental a interseccionalidade, com a participação de quilombolas e de pessoas negras das favelas, por exemplo.
Na COP, o Brasil tem um papel importante de apontar as mudanças climáticas dentro de três lógicas: as comunidades quilombolas, que ainda sofrem invisibilidade mas são tão importantes para o cuidado e a proteção do meio ambiente, agindo junto às comunidades indígenas, como guardiões da terra; a proteção de todos os nossos biomas, dos seis biomas, não focando somente a Amazônia; e o impacto das cidades. Em um país com um nível de desigualdade tão grande quanto o Brasil, a gente vê com maior evidência como as mudanças climáticas impactam os meios urbanos. No Brasil, enchentes, alagamentos e mortes afetam de forma quase exclusiva comunidades pobres, periféricas e que são compostas por maioria negra.
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G |Qual sua avalição do tipo de abordagem e atenção que o racismo ambiental tem recebido?
SC |Tem um termo que a E. Tendayi Achiume, relatora especial das Nações Unidas sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Relacionada, utilizou no último relatório sobre justiça racial e mudanças climáticas que é importante reforçar. E, ainda, foi um ponto muito defendido por nós nos debates da COP. São as chamadas zonas de sacrifício globais. Na terminologia da agenda ambiental mundial, zonas de sacrifício eram aqueles locais colocados em uma situação nuclear. Então, no pós-guerra, por exemplo, havia bastante dessas áreas, quase inabitáveis e que traziam consequências desastrosas para a vida humana que ali se instalava.
A Tendayi faz uma leitura mais ampla dessas zonas de sacrifícios globais. Ela diz que são lugares onde a presença humana é insustentável, por terem chegado a um cenário de grande degradação ambiental, ou seja, são mais propensos a violações de direitos humanos. Nessa leitura, a relatora aponta que hoje existem zonas de sacrifício globais racializadas. Então, outra agenda que trouxemos foi olhar para essas zonas e para as comunidades que vivem ali e ao redor numa situação constante de vulnerabilidade ambiental, impactadas pelo alto nível de poluição, pelo excesso de carbono, pelas mudanças climáticas e pelas enchentes.
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G |Como as mulheres, principalmente as negras, são afetadas pelo racismo ambiental?
SC |Há várias formas e já temos estudos que mostram que elas são mais afetadas. As mudanças climáticas geram um aumento de temperatura. Essa alta para mulheres gestantes é extremamente perigosa porque pode provocar parto prematuro, o que pode levar tanto à mortalidade materna quanto à mortalidade infantil. E, nos índices de pessoas que tiveram complicações no parto em decorrência do aumento da temperatura, constatamos que as mulheres negras são duas vezes mais afetadas do que as brancas. Há muitas violações possíveis dentro da lógica do racismo ambiental e das questões da crise ecológica que vivemos, e tudo impacta principalmente as mulheres porque elas, muitas vezes, ocupam posições de chefes de família dentro da agricultura, são aquelas que vivem mais vulneráveis à exposição de tóxicos em grandes indústria – elas são mais impactadas do que outros seres humanos. Por isso, a ONU tem adotado nos últimos anos a centralidade das mulheres dentro da questão das mudanças climáticas.
Este conteúdo é parte da cobertura especial sobre a COP27, que pretende estimular uma reflexão coletiva sobre o clima, realizada em parceria com o Instituto de Referência Negra Peregum e com apoio do Instituto Clima e Sociedade.
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