É hora de fermentar chuchu, quiabo, caju
Livro ‘Fermentação à Brasileira’ trata ingredientes nativos como protagonistas de conservas, kombuchas e de outros fermentados de técnica milenar
Não é exagero dizer que vivemos o século da fermentação: kombuchas, picles e pães de levain; cervejas artesanais e vinhos naturais; iogurtes do estilo grego ao escandinavo não nos deixam enganar. Ainda que esse processo de transformação e conservação de alimentos não seja exatamente uma novidade — há cerca de dez mil anos vem ajudando o homem a atravessar invernos e intempéries –, ela é uma tendência forte dos nossos tempos.
E agora, o próximo passo pode ser uma espécie de “fermentação de origem”. Em vez de fazer chucrute de repolho, por que não experimentar a técnica com a couve mineira? Em vez de fazer kombuchá com chá verde, por que não usar o mate tão popular no sul do Brasil? Essa é a proposta dos fundadores da Companhia dos Fermentados, misto de escola e indústria especializada no processo. Fernando Goldenstein Carvalhaes e Leonardo Alves de Andrade acabam de lançar o livro “Fermentação à Brasileira” (Ed. Melhoramentos), produzido a partir da curadoria do Instituto Brasil a Gosto. Em 320 páginas, eles dividem o livro em três seções: a primeira em que esmiúçam a técnica a um nível de detalhe da microbiologia mais nerd, e a segunda e a terceira em que trazem receitas (com os devidos pulos do gato) de comidas e bebidas cujos ingredientes base são brasileiros.
As técnicas são milenares. O que propomos é uma adequação para a realidade tropical
“As técnicas são antigas, milenares. O que a gente propõe é uma adequação para realidade tropical. Uma das ideias é que faça sentido em termos de pegada de carbono. Para que trazer coisa de fora? Por que não fazer vinho de jabuticaba? Tem tanino, tem a cor do vinho, tem tudo que é necessário para trazer as características da bebida”, afirma Carvalhaes.
Entre as receitas estão a do kimchi tropical, que entre outros ingredientes, leva jurubeba, capuchinha, caju; um relish de abobrinha e abacaxi; o carimã de mandioca, base de tantos bolos nordestinos. “Foi um jeito que encontramos também de registrar algumas sabedorias orais, que poderiam se perder com o tempo. Nossos grandes professores são os indígenas, com os Tremembé, aprendemos a fazer o mocororó, um fermentado de caju que deve ser enterrado durante seu processo de produção”, afirma.
É uma contradição enorme: estamos obesos e mal nutridos. Grande parte do que vemos nas prateleiras de um supermercado não é alimento
Para os autores, a fermentação, além de trazer o prazer do paladar, é também um ato político. Eles entendem que fermentar seus próprios alimentos é uma maneira de se empoderar e de se defender da industrialização massiva e dos ultraprocessados. “É uma contradição enorme, estamos obesos e mal nutridos. Quando entramos em um supermercado, grande parte do que vemos nas prateleiras não é alimento. Então é um exercício de cidadania entender o processo de fermentação e estar livre para escolher o que se quer comer”, afirma Carvalhaes.
“A nossa resistência já começou a surtir efeito e estamos vendo a indústria voltar atrás em algumas receitas tão modificadas ao perceber que as pessoas não estão aceitando certos produtos”, afirma Andrade.
Fermentação para dummies
Mas o que é a fermentação? O livro explica que é o processo de transformação de um alimento in natura em outro a partir de microrganismos que já estão presentes naturalmente (ou inoculados) nele. A técnica nasceu também como forma de conservação para invernos difíceis quando passamos de um povo nômade para sedentário há milhares de anos, com uma “proteção microbiológica: microrganismos que não são nocivos à saúde irão se reproduzir e tomar conta do meio, impedindo a proliferação dos patógenos”, escrevem os autores de “Fermentação à Brasileira”.
Uma das explicações para ela ter se tornado tão popular recentemente é que, além de ser um ato de resistência política num certo sentido, ela também é empoderadora psicologicamente: se você já fez levain, sabe o quanto é legal tirar do forno um pão castanho de crostra crocante e miolo cheio de alvéolos.
Além disso, há outra beleza na prática, uma certa generosidade: diferentemente de outros tipos de conservação e de produção de alimentos, a fermentação tolera imprecisões. No livro de Carvalhaes e Andrade, por exemplo, constam receitas com quantidades precisas, mas se há “rebeldia” por parte do leitor ao incluir mais ou menos sal que o recomendado em uma conseva, por exemplo, ninguém vai morrer, literalmente — não há perigo de intoxicação.
Dá para fermentar tudo e qualquer coisa?
Sim, mas o mais seguro, afirmam os autores do livro, é deixar o mundo animal de lado e focar no vegetal. No caso de produtos animais fermentados há mais risco caso algo dê errado, entre eles o botulismo. No caso da fermentação vegetal, se algo der errado vai ficar evidente, um mofo visivel, um cheiro ruim. E aí é só jogar fora a tentativa de fermentação, lidar com a frustração e começar de novo.
“Não há risco de você passar mal, se envenenar”, afirma Carvalhaes, que aponta um estudo da FAO (Organização da Agricultura e da Comida, das ONU), que afirma que, em várias situações e localidades, é mais seguro comer um produto fermentado do que in natura.
Cinco conselhos para quem quer fermentar
Se você quer começar a fazer conservas, kombuchas, seu próprio pão, aqui vão alguns conselhos da turma da Companhia dos Fermentados:
- Saiba o que você quer como produto final. Vai fermentar abóbora, mas para que fim? Um picles firme? Um molho de pimenta? Um mesmo ingrediente pode seguir muitos caminhos e terá etapas diferentes a depender do que se quer.
- Comece simples, pelo básico. Um chucrute é uma boa ideia. Se quer uma bebida, vá para um refrigerando, um gingerbug, por exemplo. A receita, parte do livro “Fermentação à Brasileira”, você lê abaixo.
- Estude e respeite a técnica. Se for necessário meio anaeróbio, se entrar oxigênio a coisa pode desandar. Controle a temperatura — não adianta tentar fazer cerveja se faz um calor de 40 graus.
- Use um kit de fermentação. Ele é feito especificamente para o processo e vai evitar acidentes no meio do caminho.
- Não adicione vegetais a uma conserva já pronta. Vai estragar o produto. A única excessão é se o objetivo for o consumo imediato.
Fermento de gengibre (ginger bug )
Trata-se de um caso específico do procedimento descrito anteriormente para multiplicar os microrganismos presentes nos vegetais. É uma das culturas selvagens mais fáceis de fazer e manter. Deixamos aqui uma sugestão de receita, cujas proporções podem também ser utilizadas em outras escolhas de insumo básico.
Ingredientes
— 100g de gengibre descascado
— 300 ml de água filtrada
— 15 g de açúcar cristal
Preparo
1. Corte o gengibre em lascas ou rale
2. Coloque o dentro da garrafa PET (devidamente limpa e sanitizada).
3. Adicione a água e o açúcar.
4. Misture bem.
5. Abra a tampa da garrafa quatro vezes por dia, apertando diversas vezes para reciclar o ar interno (e repor o oxigênio consumido), feche e chacoalhe vigorosamente.
Você deve repetir o passo 5 até que a garrafa comece a estufar com a formação interna de gases. Quando isso acontecer, é sinal de que já há atividade microbiológica intensa e seu fermento está ativo e pronto para ser utilizado. Se não for usá-lo de imediato, pode ser mantido na geladeira por até um mês.
- Fermentação à Brasileira
- Fernando Goldenstein Carvalhaes e Leonardo Alves de Andrade
- Melhoramentos
- 320 páginas
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