Bela Gil: “A alimentação saudável é um direito, está na Constituição”
Nutricionista, autora e chef do restaurante Camélia Òdòdó, em São Paulo, ela defende que devemos comer “comida de panela”, usar o máximo possível de ingredientes naturais, desembalar menos e descascar mais
Bela Gil estreou na TV em 2014, mesmo ano em que era lançado o Guia Alimentar para a População Brasileira. Criado pelo Ministério da Saúde para promover educação alimentar e nortear políticas públicas, o documento traz orientações que têm muito a ver com o que a nutricionista e chef do restaurante Camélia Òdòdó, em São Paulo, defende em seus programas, livros e posts: de que devemos comer “comida de panela”, usar o máximo possível de ingredientes naturais, desembalar menos e descascar mais.
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A visão de alimentação de Bela, porém, foi considerada radical por muita gente. Dos memes com sua receita de churrasco de melancia a ataques à lancheira saudável que preparava para a filha, ela foi motivo de piada nas redes sociais por um bom tempo. Enquanto isso, o guia também sofria questionamentos e ataques, especialmente por propor uma classificação dos alimentos de acordo com seu grau de processamento industrial, recomendando preferir os in natura e evitar os ultraprocessados — como refrigerantes, biscoitos recheados, salgadinhos de pacote e macarrão instantâneo
Dez anos depois, esse cenário está mudando. Pesquisas mundiais, feitas com metodologias científicas rigorosas, vêm trazendo evidências dos males de uma dieta rica em ultraprocessados. O guia nacional serviu de modelo para documentos semelhantes em vários países, e um de seus autores, Carlos Monteiro, professor da USP, tornou-se o pesquisador brasileiro mais citado em periódicos científicos no mundo.
“A sociedade entende um pouco melhor a gravidade dos ultraprocessados, já não é mais uma besteirinha”, diz Bela, que já saiu em defesa pública do guia em momentos em que o documento foi questionado e tem feito campanhas pelo aumento dos impostos dos ultraprocessados e pelo veto a esses produtos na merenda escolar.
Em entrevista a Gama, ela também afirmou perceber uma maior aceitação ao conteúdo que produz. “Eu era aquela menina esquisita falando de cará, de inhame, de cúrcuma. Hoje, isso já está mais disseminado, não é mais motivo de chacota. É curioso o quanto eu escuto de gente dizendo: nossa, naquela época eu não entendia direito o que você falava, te achava muito radical, mas hoje eu te agradeço.”
Estudos mostram que 57 mil pessoas morrem por ano no Brasil por causa do consumo de ultraprocessados. É um número maior do que o de mortes por homicídios
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G |Como você reagiu ao lançamento do Guia Alimentar para a População Brasileira, em 2014?
Bela Gil |Eu falei: “Uau, agora a saúde e a nutrição estão falando a mesma língua do público”. Ele facilitou muito o entendimento porque saiu daqueles jargões acadêmicos, dos macronutrientes, de que cenoura é bom para isso, de que tem que comer um tanto de proteína, um tanto de carboidrato, um tanto de gordura. Eles dizem: vamos comer arroz com feijão, vamos comer comida de verdade, o que eu chamo de comida de panela.
Estudei fora do Brasil e esse conceito de comida de verdade, o tal do “clean label” [rótulo limpo], “real food” [comida real], tudo isso era muito presente e já estava imbuído na minha prática como nutricionista e culinarista. Acho que uma das grandes contribuições do guia foi essa transferência do mundo dos micronutrientes e dos benefícios funcionais dos alimentos para uma alimentação um pouco mais abrangente, mais real. É aquela máxima de desembalar menos e descascar mais, de trocar o supermercado pela feira e por aí vai — que é o oposto do que trazem os ultraprocessados. -
G |Você já disse que os ultraprocessados vêm causando um genocídio silencioso. Por quê?
BG |Estudos mostram que 57 mil pessoas morrem por ano no Brasil por causa do consumo de ultraprocessados. É um número maior, inclusive, do que o de mortes por homicídios. A gente se assusta muito quando fala de homicídio, de arma de fogo, traz uma sensação de perigo, mas não se tem o mesmo apelo em relação aos ultraprocessados, que causam tantas mortes. As pessoas não enxergam como uma ameaça à saúde, à qualidade de vida e à segurança.
Eu digo que é um genocídio silencioso porque, apesar de termos todas as informações e as possibilidades de mudar esse quadro, ninguém faz nada. O consumo de ultraprocessados só aumenta. A gente precisaria de campanhas que limitassem o acesso e o consumo, mas isso não acontece. -
G |O que falta para reduzir o consumo?
BG |São cinco passos fundamentais para que a gente consiga democratizar a comida saudável. O primeiro é o conhecimento: é importante que as pessoas tenham informação, educação alimentar sobre por que comer bem, o que o ultraprocessado causa na saúde, no meio ambiente. O segundo passo é o acesso: as pessoas precisam achar esse alimento. Temos muita gente morando em desertos alimentares, com grande oferta de ultraprocessados e redes de fast-food e pouco acesso a frutas e verduras. Depois vem o dinheiro: é preciso ter poder aquisitivo para comprar os produtos saudáveis. Os ultraprocessados estão cada vez mais baratos, enquanto legumes, verduras e frutas vêm aumentando de preço. E o dinheiro pesa muito na escolha: quando você tem pouco dinheiro para se alimentar, você vai no mais barato. Também é importante ter acesso às ferramentas. Milhões de pessoas ainda vivem sem saneamento básico, sem água. Não dá para falar de cozinhar se a pessoa não tem acesso à água. Como ela vai fazer um feijão, um arroz?
E por último, é preciso tempo. Se a gente não tem tempo para cozinhar e para comer bem, fica muito difícil.
Vivemos num ambiente intoxicado de uma oferta de produtos nocivos, que muitas vezes é só o que grande parcela da população consegue consumir
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G |Os ultraprocessados são vistos como opções convenientes e práticas. A comida de panela é compatível com a vida moderna?
BG |Ela pode ser compatível se a gente planejar direitinho, redistribuir tudo direitinho. E eu não falo só no âmbito privado, mas coletivo. É verdade que os afazeres domésticos têm que ser mais bem distribuídos, mas a redistribuição tem que partir também do Estado, porque a comida de panela não precisa ser necessariamente consumida por quem fez. Precisamos de mais cozinhas solidárias, restaurantes comunitários e populares. Temos que dar mais atenção ao trabalho das merendeiras, que alimentam 50 milhões de crianças no Brasil. Posso não conseguir cozinhar para o meu filho em casa, mas se ele está sendo bem alimentado na escola, já é um grande alívio para a saúde mental de uma mãe, de um pai.
Para alguns, a solução pode ser contratar alguém pagando um valor digno, dando boas condições de trabalho. No caso dos aplicativos de delivery, se a gente desse melhores condições de trabalho para os entregadores, seria uma opção digna de ofertar comida de verdade. É preciso que haja redução da jornada de trabalho, derrubar o 6 para 1 e por aí vai.
A comida de panela só será possível se o tempo for redistribuído, se processos mais coletivos de alimentação forem construídos, para não pesar para ninguém. Se não, ela vai continuar sendo um privilégio de quem tem tempo para fazer a própria comida ou dinheiro para comprar o tempo de alguém que cozinhe. -
G |Falar em soluções coletivas é uma forma de não culpar as pessoas pelas escolhas alimentares individuais?
BG |Um dos defeitos do ativismo pela alimentação saudável é culpabilizar o indivíduo por um problema que não foi ele que criou. Se você trabalha na escala de 6 para 1, como é que vai cozinhar a própria comida? Se você mora longe do trabalho, pega duas conduções, três horas de trânsito, como vai conseguir cozinhar quando chega em casa? A pessoa às vezes come mal porque é só o que ela consegue, é só o que o dinheiro dela pode comprar ou é só o que ela consegue preparar com o tempo que tem.
O estado ainda peca por não tornar o ambiente mais propício a escolhas mais saudáveis. A gente vive num ambiente intoxicado de uma oferta de produtos nocivos, que muitas vezes é só o que grande parcela da população consegue consumir. E aí você ainda vai falar para essa pessoa: é culpa sua? Você ficou doente, ficou obeso, morreu do coração ou de câncer porque quis? -
G |Há quem compare com a indústria do cigarro. Você vê semelhanças?
BG |Sim, tanto que a campanha antitabagismo é uma grande referência para que a gente consiga uma aceitação maior da população em relação à campanha contra os ultraprocessados. A academia já sabe que mata, o Ministério da Saúde já diz que faz mal. O Estado precisa limitar a indústria, produzir advertências, taxar os ultraprocessados, limitar a quantidade de certos ingredientes nocivos. Como a gente pode ter esse tipo de alimento nas escolas? Da mesma forma que não tem bebida alcoólica, não tem cigarro, não deveria ter ultraprocessado nas escolas.
Minha geração era a da criança fora da cozinha. Isso privou a gente de crescer com uma intimidade na cozinha que facilitaria muito a alimentação saudável
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G |A transmissão da habilidade de cozinhar entre as gerações tornou-se menos comum. Deveríamos ensinar as crianças a cozinhar?
BG |Eu acho que não são todas as pessoas que precisam cozinhar na vida. Vai ter gente que não vai querer cozinhar, às vezes por falta de gosto, às vezes por falta de talento. Mas a aprendizagem deve existir. Assim como as crianças aprendem a fórmula de Pitágoras, elas deveriam aprender a cozinhar, para no futuro fazer a escolha de continuar cozinhando ou não. O conhecimento facilita as escolhas alimentares: ela pode até não querer cozinhar, mas vai saber como aquilo é feito, vai reconhecer a comida de qualidade.
Atualmente, a escolha foi retirada da gente. Minha geração era a da criança fora da cozinha. Isso privou a gente de crescer com uma intimidade na cozinha que facilitaria muito a alimentação saudável. Implementar a educação alimentar nas escolas é uma forma de garantir esse direito — porque a alimentação saudável é um direito, está na Constituição. -
G |Os ultraprocessados têm muito apelo com as crianças, e há uma pressão social para que elas possam comer balas ou chocolates, até como parte das boas lembranças da infância. Como é na sua casa? Seus filhos nunca comem ultraprocessados? Você já se sentiu pressionada por eles ou por pessoas próximas para flexibilizar isso?
BG |Não entra ultraprocessado na minha casa nem nada que não condiz com a educação alimentar que eu quero oferecer aos meus filhos. Desde sempre, minha filha não toma refrigerante, meu filho nunca experimentou um refrigerante, quando oferecem bala eles falam: “Não, obrigado”.
Quando eles estão com amigos, familiares, longe de mim, eles têm escolha. Mas os dois são menores de idade, quando estão comigo, não têm. Se alguém chama para fazer um lanche na rede de fast food, eu sou categórica: não, não vão; isso não é comida de criança. Isso não é para você agora, quando você tiver mais velho, aí você faz o que quiser. Mas eu oriento.
Quando a educação é bem feita, quando a alimentação é gostosa, desejável, atraente, eles não ficam curiosos. Meus filhos nunca tiveram a curiosidade de ir numa rede de fast-food. Não tem essa de: “coitadinho, ele não sabe o que é ser feliz porque ele não come um hambúrguer do McDonald ‘s”. Ele sabe o que é ser feliz, porque ele tem a saúde em dia, ele come super bem, ele ama o que come.
Há 16 anos, quando minha filha nasceu, isso era considerado um exagero. Hoje, já está muito mais aceito. Mas na família todo mundo sempre respeitou a minha escolha, até por não ser aleatória: eu tinha embasamento, dados, então as pessoas respeitavam. -
G |Você foi vista como exagerada por muita gente e chegou a virar meme por causa dessas escolhas. Isso mudou?
BG |Eu sinto que mudou bastante. Hoje, a sociedade entende um pouco melhor a gravidade dos ultraprocessados, já não é mais só uma besteirinha. Não é visto como cigarro, como o álcool, como uma arma, mas as pessoas já enxergam como uma ameaça à saúde, como algo a se evitar.
E acho que o meu trabalho contribuiu para isso, para que as pessoas começassem ao menos a ouvir falar do assunto. Eu era aquela menina esquisita falando de cará, de inhame, de cúrcuma. Hoje, isso já está mais disseminado, não é mais motivo de chacota. Uma mãe talvez não seja tão desrespeitada quanto eu fui quando mostrei a merenda da minha filha nas redes sociais. Fui atacada de uma forma pesada, pejorativa. Mas acho que faz parte também, quando você está, de certa forma, na vanguarda, quando você está abrindo caminhos.
É curioso o quanto eu escuto de gente dizendo: “Nossa, naquela época eu não entendia o que você falava, te achava muito radical, mas hoje eu te agradeço, revejo os seus programas, a minha filha tem intolerância à lactose ou é alérgica a glúten e o seus livros me ajudaram a dar uma alimentação gostosa e criativa para ela”. Recebo esses testemunhos que são a prova de que naquela época, existia uma resistência muito maior. Existe ainda todo um caminho para pavimentar, mas nada como o tempo.
Esse conteúdo faz parte de uma série que tem o apoio institucional do Instituto Ibirapitanga, uma organização dedicada à defesa de liberdades e ao aprofundamento da democracia no Brasil, com dois programas: sistemas alimentares e equidade racial.
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