O que é racismo ambiental?
Em série especial sobre COP26, Gama entrevista geógrafo e pesquisador Diosmar Filho sobre a desigualdade racial no debate ambiental. ‘Não há como preservar o meio ambiente sem cuidar das populações marginalizadas’
Em um mundo cada vez mais afetado pela crise climática, é comum assumir que o impacto ambiental da emergência climática seja uma preocupação que atinja todos os habitantes do planeta Terra de forma igual. Mas há um desequilíbrio claro: diferentes populações são atingidas de formas variadas quando o assunto é a crise do meio ambiente. Seja na elaboração de políticas ambientais, na exclusão dos movimentos de ativismo ecológico ou no processo de segregação que relegou negros, indígenas e outros grupos para regiões mais poluídas e contaminadas, o termo racismo ambiental se refere à desigualdade que caracteriza como esses grupos sofrem os impactos do aquecimento global.
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Em Benton Harbor, cidade americana do estado de Illinois, o encanamento local foi contaminado por chumbo, tornando a água imprópria para consumo. Com 85% de sua população negra, a cidade se tornou mais um dos casos onde o racismo ambiental é evidente. “Ao olhar para furacões e inundações na história dos EUA, por exemplo, é possível notar que são sempre as populações negras que sofrem os maiores impactos”, afirma Diosmar Filho, geógrafo, doutorando da Universidade Federal Fluminense e pesquisador da IYALETA – Pesquisa, Ciência e Humanidades. “Esses dados referentes à crise climática se repetem década após década, seja nos EUA ou seja no Brasil”, afirma o autor de “A Geopolítica do Estado e o Território Quilombola no Século 21” (Paco Editorial, 2018).
Não há como preservar o meio ambiente sem cuidar das populações marginalizadas
Em Fortaleza, a cena de pessoas revirando um caminhão de lixo à procura de comida viralizou e evidenciou mais um fator do racismo ambiental — a falta de amparo estatal. “O racismo ambiental é uma dimensão do racismo institucionalizado e estatal. O Estado brasileiro só garante o direito de você ser branco.” Para o pesquisador, falar sobre o recorte racial da crise climática é uma maneira de denunciar a injustiça ambiental presente em nossa sociedade e reivindicar o direito da população negra, periférica e dos povos indígenas.
Diosmar Filho, em conjunto com outros pesquisadores brasileiros, está participando da COP26, a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas que acontece em Glasgow, na Escócia. O racismo ambiental será tema central de sua participação no evento e o pesquisador espera alcançar o reconhecimento fundamental, por parte das lideranças mundiais, de que a produção de desigualdade é um problema estrutural. “Nós temos condições de cuidar do planeta e evitar que ele chegue ao colapso ecológico. Mas não há como preservar o meio ambiente sem cuidar das populações marginalizadas.”
Arquivo Pessoal
Como parte da cobertura especial da COP26, realizada com apoio de Nescafé Origens do Brasil, Gama conversou com o geógrafo e pesquisador sobre racismo ambiental e os seus desdobramentos em nossa sociedade.
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G |Como você define o racismo ambiental?
Diosmar Filho |Quando se fala de injustiça ambiental, partimos da ideia de que existe um direito sendo violado, mas essa definição só existe para quem tem o privilégio de estar em um Estado que garante esses direitos, as pessoas brancas. Durante muito tempo, o racismo foi tirado de cena na questão ambiental, era uma questão de justiça ou injustiça ambiental. O racismo ambiental, então, fala sobre como essas injustiças ambientais privam a população negra e os povos indígenas de humanidade e direitos. Trabalho com esse termo há 15 anos e o defino como a estratificação de pessoas por raça, cor, etnia ou condições de trabalho dentro das estruturas ambientais do Estado.
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G |Cada vez mais, movimentos sociais como o BLM colocam a luta climática como algo central em suas reivindicações. Como você enxerga essa cobrança política e social por parte desses movimentos?
DF |O movimento negro não entrou na luta ambiental hoje, mas foi colocado de fora da agenda climática durante muito tempo. Nos últimos 520 anos, a população quilombola brasileira produz a luta pelo direito à terra. A luta por um território sustentável, que não será desmatado, que não será contaminado, que protegerá a flora e a fauna, que protegerá as águas, que não emitirá carbono. Olha o quanto a população negra já reivindicou, mas o território quilombola não é visto como um processo de luta contra o desmatamento. Se o ecologismo brasileiro enxergasse o Quilombo como uma forma de proteção da natureza e de sustentabilidade, hoje teríamos 2 mil terras quilombolas tituladas no Brasil, preservando a Mata Atlântica, o Cerrado, a Caatinga, a Amazônia e o Pantanal. Chico Mendes foi um homem negro, mas não costumamos a pensar nele como tal. A luta ambiental dele foi retirada da dimensão da luta da população negra.
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G |Quando falamos sobre racismo ambiental, estamos falando sobre injustiças ambientais e a exposição desproporcional das populações vulneráveis a riscos. Mas a exclusão dessas pessoas dos processos de tomada de decisão também pode ser considerada racismo ambiental?
DF |Criou-se a ideia de que o movimento negro tem que participar dessa luta agora, mas quem sempre fez ações de luta e enfretamento diário por proteção ambiental no Brasil são pessoas negras e indígenas. Só que quem participa das rodas de negociação ambiental nacional e internacional são as pessoas brancas. Hoje em dia, o mundo está exigindo que as pessoas que tiveram sua participação negada por tanto tempo possam se envolver e atuar nesse âmbito.
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G |Há como falar em luta climática sem o recorte racial?
DF |Quando se trabalha com justiça ambiental, mas não se aborda desigualdades raciais ou de gênero, há algo bem errado. Há poucas semanas, um relatório mostrou quais áreas no mundo serão inundadas se continuarmos no ritmo que estamos. Na cidade de Salvador, o destaque do que seria alagado foi para o Mercado Modelo. O problema é que, para ele estar submerso, uma região chamada Península de Itapagipe também teria que estar. O Mercado Modelo tem cerca de 50 lojas e nenhum morador, Itapagipe tem 180 mil pessoas. Dessa população, cerca de 90% são pessoas negras e 50% são mulheres negras. Se o Mercado Modelo está submerso, Itapagipe não existe mais. Mas qual é a fotografia que interessa? Qual dessas regiões vira motivo de preocupação? Essas são questões essenciais no debate.
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G |Qual é o papel do Estado no racismo ambiental?
DF |A exclusão desses corpos está baseada no racismo institucional. O debate de justiça ambiental é violento porque desconsidera que as instituições negam o direito dos outros. Há uma dimensão racista nas instituições brasileiras que nega o direito à humanidade, a um mar com qualidade, uma terra e um rio sem contaminação. O Estado brasileiro saiu da escravidão sem chorar a tragédia humana cometida, foi uma instituição construida em cima de corpos. Hoje em dia, nenhum presidente fala com tranquilidade que lidera um estado racista. Nossa constituição diz que o racismo existe, mas nenhum presidente, governador ou prefeito reconhece isso. Como é possível falar de democracia quando uma pessoa negra e um território negro não detém direitos? Nossas instituições têm de garantir esses direitos. Vivemos e sobrevivemos, mas essa não é uma condição que o Estado produz.
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G |O racismo ambiental é um produto do capitalismo?
DF |O capitalismo só deu certo por conta da escravidão. Os capitalistas que estruturaram esse sistema econômico só o fizeram graças aos navios de tráfico negreiro. Todas as mudanças, adaptações e mitigações climáticas só são possíveis por meio do neocolonialismo. Para você sair do combustível fóssil e ir para outras matrizes mais sustentáveis, você vai precisar de terra e de minério. Onde estão essas terras? Em lugares como Brasil e o continente africano. O mundo foi estruturado nessas bases e a economia verde faz parte desse ciclo de neocolonialismo.
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G |Quais são suas expectativas para a COP26?
DF |Eu acredito nas possibilidades. A COP é um espaço dessas possibilidades e a agenda do racismo ambiental cresceu bastante nos últimos tempos, teremos uma representação maior neste evento do que tivemos em outros. Isso não quer dizer que os grupos que sempre estiveram lá não vão estar presentes, mas teremos pessoas discutindo e debatendo a temática do racismo ambiental. Não iremos lá fazer apologia ao capitalismo, mas queremos discutir a natureza e a finalidade desses recursos. A economia verde tem de ser questionada, o foco não pode ser o crescimento econômico, mas sim a melhoria da condição humana das populações mundiais. A crise não é climática, ela é humana.
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G |Qual o futuro da luta contra o racismo ambiental?
DF |A luta ambiental no século 21 só tem sentido se for baseada nos corpos que estão em ação direta com a questão ambiental. A luta ambiental deu um salto quando os povos tradicionais se tornaram centrais na cena do ambientalismo. O debate mudou, ele se tornou mais próximo da realidade. É preciso dar espaço às vozes que estão construindo o século 21. Não estamos correndo atrás do capitalismo para humanizá-lo, queremos que a outra parte do mundo vire o mundo. Se você quer frear tudo isso, temos de entregar a terra para quem é de direito. Tire a terra e o subsolo do mercado e aceite viver em outras condições de mundo. Não queremos nos incluir no processo neoliberal, mas sim mudá-lo e criar um novo mundo.
Conteúdo produzido como parte da Cobertura Especial sobre a COP26, realizada em parceria com Nescafé Origens do Brasil.
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