Trecho de Livro: Um Romance Russo, de Emmanuel Carrére — Gama Revista

Trecho de livro

Um Romance Russo

Em livro, Emmanuel Carrére lida com os próprios fantasmas e prisões enquanto acompanha a história de um desaparecido de guerra, preso por mais de 50 anos

Leonardo Neiva 14 de Junho de 2024

Assim como no recente “Ioga” (Alfaguara, 2023), o francês Emmanuel Carrére faz da literatura uma forma de desnudar as próprias crises, enganos e dificuldades em “Um Romance Russo” (2024), uma de suas obras mais reconhecidas. Publicado originalmente em 2007 — antes, portanto, de sucessos como “Limonov” (2013) —, a obra ficcionaliza uma passagem marcante da vida e carreira do autor: a viagem que fez à Rússia para relatar a vida de um prisioneiro húngaro, esquecido num hospital psiquiátrico nos confins do país desde a Segunda Guerra Mundial.

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“Mais de oitenta mil soldados húngaros foram declarados desaparecidos depois da guerra, fazia tempo que haviam desistido de esperar por eles, e eis que um deles retorna, cinquenta e seis anos mais tarde”, descreve em certo ponto da obra. Mas o livro não se resume a essa história que pareceria mentira, não fosse real — por isso, um prato ainda mais cheio para qualquer jornalista.

“Um Romance Russo”, que tem tradução de André Telles, lida também com a estafa de Carrére em relação ao ofício de escritor e sua relação com uma nova mulher, que rapidamente começa a ruir devido ao ciúme e à fúria que o próprio autor não faz questão de ocultar. Tudo isso em meio à jornada em direção a uma Rússia profunda e desconhecida, uma viagem cada vez mais caótica em que precisa lidar com segredos de família e desencavar um passado proibido, repleto de dor e traição.

Como em outras de suas melhores obras, Carrére faz aqui o cuidadoso autorretrato de um homem em busca de redenção e paz, e que soa tão sincero quanto incerto em seu caminho.


Li nos livros, depois escrevi livros. Isso me satisfez durante muito tempo. Foi uma delícia sofrer de uma maneira que me era peculiar e fazia de mim um escritor. Hoje não quero mais isso. Não aguento mais ser prisioneiro desse roteiro inócuo e imutável, seja qual for o ponto de partida que eu tome para tecer uma história de loucura, de imobilidade, de confinamento, para desenhar o plano da armadilha que deve me triturar. Há alguns meses, publiquei um livro, O adversário, que me enclausurou durante sete anos e do qual saio exangue. Pensei: agora, acabou, vou fazer outra coisa. Vou para o ar livre, para os outros, para a vida. Para isso, o que seria razoável, pensei em fazer reportagens.

Disse isso à minha volta e não demoraram a me propor uma. Não qualquer uma: a história de um infeliz húngaro, que, feito prisioneiro no fim da Segunda Guerra Mundial, passou mais de cinquenta anos internado num hospital psiquiátrico nos confins da Rússia. Todos acharam que aquele era um assunto para mim, repetia com entusiasmo meu amigo jornalista, e, claro, isso me irritou. Que pensem em mim sempre que se tratar de um tipo amuralhado a vida inteira num hospício, isso é precisamente o que não quero mais. Não quero mais ser aquele a quem a história envolve. O que não me impede de ser por ela envolvido. E depois ela acontece na Rússia, que não é o país da minha mãe, uma vez que ela não nasceu lá, mas o país onde falam a língua da minha mãe, a língua que falei um pouco, criança, e em seguida esqueci completamente.

Foi uma delícia sofrer de uma maneira que me era peculiar e fazia de mim um escritor. Hoje não quero mais isso

Aceitei. E alguns dias após ter aceitado, conheci Sophie, o que por outro lado me deu a impressão de passar para outra coisa. Durante todo o jantar no restaurante tailandês perto de Maubert, contei-lhe a história do húngaro, e esta noite, no trem que me conduz a Kotelnitch, penso novamente no meu sonho, digo-me que ele encerra tudo que me paralisa: o olhar do policial que me flagra fazendo amor, a ameaça, ou melhor, a certeza da prisão, da armadilha se fechando e de que não obstante tudo ali é leve, estimulante, alegre, como a posição de pernas empinadas improvisada com Sophie e a misteriosa sra. Fujimori. Está decidido, vou contar uma última história de confinamento, a qual será também a história da minha libertação.

O que sei a respeito do meu húngaro resume-se a alguns despachos da AFP, datando de agosto e setembro de 2000. Esse camponezinho de dezenove anos foi arrastado pela Wehrmacht em sua retirada, depois capturado pelo Exército Vermelho em 1944. Inicialmente recluso num campo de prisioneiros, foi transferido em 1947 para o hospital psiquiátrico de Kotelnitch, cidadezinha a oitocentos quilômetros ao norte de Moscou. Passou ali cinquenta e três anos, esquecido de todos, quase sem falar, pois ninguém à sua volta entendia húngaro, e ele, por sua vez, por estranho que pareça, não aprendeu russo. Foi encontrado este verão, completamente por acaso, e o governo húngaro patrocinou seu repatriamento.

Ele sofre de uma certa amnésia, até o seu nome é um enigma

Vi algumas imagens de sua chegada, matéria de trinta segundos na televisão. As portas envidraçadas do aeroporto de Budapeste abrem-se diante da cadeira de rodas na qual se encolhe um pobre velho amedrontado. As pessoas que o cercam estão de camiseta, mas ele usa um gorro de lã grossa, tirita sob uma manta. Uma perna de calça está vazia, presa com um alfinete de fralda. Os flashes dos fotógrafos espocam, o cegam. Em volta do carro em que o fazem entrar, mulheres idosas se acotovelam fazendo um estardalhaço e gritando prenomes diferentes: Sándor! Ferenc! András! Mais de oitenta mil soldados húngaros foram declarados desaparecidos depois da guerra, fazia tempo que haviam desistido de esperar por eles, e eis que um deles retorna, cinquenta e seis anos mais tarde. Ele sofre de uma certa amnésia, até o seu nome é um enigma. Os registros do hospital russo, que constituem seus únicos documentos de identidade, o apontam indiferentemente como András Tamas, András Tomas ou ainda Tomas András, mas ele balança a cabeça quando essas palavras são pronunciadas diante dele. Não quer ou não pode dizer seu nome. Isso explica por que, no momento do seu repatriamento, coberto pela imprensa húngara como uma efeméride nacional, dezenas de famílias tivessem julgado reconhecer nele o tio ou o irmão desaparecido. Nas semanas que se seguem ao seu retorno, a imprensa dá notícias a
seu respeito e sobre a investigação quase diariamente. De um lado, recebem e entrevistam as famílias que o reivindicam, de outro, o interrogam, tentando despertar suas recordações. Repetem-lhe nomes de aldeias e pessoas. Uma notícia relata que, no Instituto Psiquiátrico de Budapeste, onde ele é mantido em observação, antiquários e colecionadores desfilam, convocados pelos médicos dele, para lhe mostrar quepes de uniformes, insígnias, moedas antigas, objetos supostamente evocativos da Hungria da época que ele conheceu. Ele pouco reage, resmunga mais que fala. O que ele usa como língua não é efetivamente húngaro, mas uma espécie de dialeto particular, o do monólogo interior que ele repisou ao longo do seu meio século de solidão. Nos fins de frases vêm à tona, quando o assunto é a travessia do Dniepr, sapatos que lhe roubaram ou que teme que lhe roubem, e sobretudo a perna que lhe deceparam, lá na Rússia. Gostaria que a devolvessem para ele ou lhe dessem outra. Manchete: “O último prisioneiro da Segunda Guerra reivindica uma perna de pau”.

Um dia, leem para ele Chapeuzinho vermelho, e ele chora.

O último prisioneiro da Segunda Guerra reivindica uma perna de pau

Decorrido um mês, sai o resultado da investigação, confirmado por testes de DNA. O fantasma chama-se András Toma — mas na Hungria dizem Toma András, Bartók Béla, o sobrenome antes do prenome, como no Japão. Tem um irmão e uma irmã mais jovens que ele, que moram numa aldeia na extremidade oriental do país, a mesma que ele deixou cinquenta e seis anos antes ao partir para a guerra. Estão dispostos a recebê-lo em sua casa. Enquanto tento checar as informações, fico sabendo por um lado que sua transferência de Budapeste para sua aldeia natal só se dará dentro de algumas semanas, por outro que no dia 27 de outubro o hospital psiquiátrico de Kotelnitch irá comemorar o jubileu dos seus noventa anos. É por lá que convém começar.

Produto

  • Um Romance Russo
  • Emmanuel Carrère (trad. André Telles)
  • Alfaguara
  • 248 páginas

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