Trecho de Livro: Uma Tristeza Infinita, de Antônio Xerxenesky - Gama Revista

Trecho de livro

Uma Tristeza Infinita

Novo livro do escritor gaúcho Antônio Xerxenesky explora os traumas da Segunda Guerra entre os pacientes de um hospital psiquiátrico na Suíça

Leonardo Neiva 27 de Agosto de 2021

“Há um consenso de que o método da terapia pela fala logo suplantará estes outros obscurantistas que ainda praticamos e que muitas vezes reduzem nossos pacientes a criaturas sem mente ou alma”, diz em determinado momento um psiquiatra, personagem do romance “Uma Tristeza Infinita” (Companhia das Letras, 2021), de Antônio Xerxenesky. O primeiro método citado por ele se refere à psicanálise de Freud, enquanto as práticas obscurantistas seriam os temidos eletrochoques e a lobotomia, ainda muito em voga no pós-Segunda Guerra Mundial, período em que a história se passa.

Numa narrativa dividida entre os traumas de um passado recente e o medo do futuro, o livro estabelece um drama psicológico em meio às ruínas físicas e mentais deixadas por um dos eventos mais avassaladores que o mundo já viu. No centro da história, está o jovem psiquiatra francês Nicolas, convidado a trabalhar em um hospital suíço conhecido por seus métodos humanizados de tratamento, pouco após o fim da guerra. Também dividido entre técnicas que considera ultrapassadas e as novas portas abertas por Freud na psicanálise, ele vai estabelecendo conversas para descobrir o que se esconde no inconsciente, tanto dos pacientes quanto em seu próprio.

Autor de livros como “As Perguntas” (Companhia das Letras, 2017) e “F” (Rocco, 2014), o escritor gaúcho aproveita a premissa para entrar a fundo na psicologia de personagens complexos, traçando ao mesmo tempo o panorama de um momento em que começavam a ser desenvolvidas as primeiras drogas para doenças psiquiátricas como depressão. Apesar do título aparentemente desanimador da obra e dos variados traumas causados por uma guerra que não deixou vencedores, ao menos a nível individual, o livro acaba apontando também a possibilidade da felicidade em meio ao sofrimento.


O paciente, que será chamado de L., tinha sido internado havia uma semana. Desde então, Nicolas tentara conversar com ele todos os dias, sem recorrer a drogas poderosas, seguindo a intuição de que o problema não era tão grave. Uma colega sugerira que Nicolas o visitasse à tarde. Durante as manhãs, L. mal tinha força para abrir os olhos.

À tarde, com o auxílio de duas enfermeiras, era capaz de se sentar sobre o colchão. O sujeito era corpulento, enorme até. Media pelo menos vinte centímetros a mais que Nicolas, e mesmo se alimentando de modo tão frugal, mastigando uma batata com lentidão nos almoços que era forçado a frequentar, ainda pesava mais de cento e dez quilos. Seu corpo não parecia ter nada de gordura, era um mapa topográfico de morros sulcados por músculos.

Quando chegou à clínica, ou ao Centro, como Nicolas insistia em chamar o local, L. implorou para manter as medalhas, as sete que recebera, consigo. Nicolas, junto com o resto da equipe que apareceu para receber o paciente, avisou que todos os internos vestiam aquele uniforme padrão branco. L. suplicou para que deixassem as medalhas, ainda que no uniforme de paciente; eram importantes demais para ele. Uma enfermeira se solidarizou com aquele brutamontes tão abalado, que parecia um javali ferido. O diretor estava lá e reiterou que as regras existiam por um motivo e que o paciente não poderia usar as medalhas.

E não teriam tido nenhum problema se não fosse pela enfermeira caridosa. Ser simpático pode ser perigoso nesse mundo, disse Nicolas à sua esposa, mastigando o queijo. Na primeira noite na clínica, L. começou a gritar no meio da madrugada, um urro gutural que perturbava não apenas os outros pacientes como toda a equipe médica. A enfermeira simpática estava de plantão e foi até lá, armada de uma seringa com um calmante capaz de tranquilizar um urso. Ao aproximar a agulha do paciente, ele parou de gritar, antes mesmo de ter sua pele fisgada, e perguntou, fitando os olhos da enfermeira, se não poderia receber as suas medalhas, por apenas alguns minutos, só queria contemplá-las, lembrar-se das vidas que salvou.

A enfermeira, desobedecendo às ordens diretas de seu superior, contou Nicolas à esposa Anna, foi até o depósito onde guardavam os objetos pessoais dos pacientes, localizou as sete medalhas e, no silêncio da noite, caminhando sem sapatos pelo assoalho de madeira, voltou e as entregou em um saco de papel pardo. L. puxou uma medalha em forma de estrela e seus olhos se encheram d’água. A enfermeira sorriu. Ele, então, cravou a estrela com toda a força no pescoço. A enfermeira demorou a reagir, de tão estupefata. A estrela girava na pele do paciente, que depois a retirou e voltou a golpear o próprio pescoço, determinado. Ela agarrou o braço dele, mas sua força era ínfima perto daquele soldado. Aos gritos, conseguiu chamar o vigia da clínica, que correu até ela e a ajudou a imobilizar o paciente.

L. puxou uma medalha em forma de estrela e seus olhos se encheram d’água. A enfermeira sorriu. Ele, então, cravou a estrela com toda a força no pescoço

Com uma agilidade impressionante — que o vigia descreveu como inimaginável para aquela pobre enfermeira —, ela pegou a seringa e injetou o sedativo no outro braço de L., que desistiu de reagir, apenas aquietou-se, com lágrimas correndo dos olhos, que pareciam existir à revelia do corpo, como uma entidade separada. Quando o sujeito apagou, ela saiu do quarto, percorreu o Centro até a ala oeste e acordou o médico plantonista, que dormia um sono pesado em uma poltrona na sala de descanso, e este foi analisar o paciente e constatou que o ferimento não tinha sido letal por questão de centímetros. Pediu auxílio da enfermeira para suturar o corte.

Não preciso mencionar que a moça foi demitida na manhã seguinte, assim que o diretor pisou no Centro, contou Nicolas à esposa. Tenho a impressão de que se nosso diretor tivesse sido tolerante, daria no mesmo, pois a própria enfermeira pediria demissão, acrescentou, quando Anna franziu o cenho, solidária à enfermeira.

O sedativo deixou o paciente em um estado letárgico por um ou dois dias. No terceiro dia, Nicolas solicitou que mudassem sua medicação para uma mais leve. Era impossível conversar com ele. Nicolas tinha a impressão de que o ato de falar exigia mais de L. do que levantar uma carruagem com as próprias mãos. Na ronda matinal, visitava-o sempre, fazia perguntas básicas, observava seu ferimento — que parecia pulsar no pescoço devido à proximidade da jugular —, e se não tivesse visto o paciente falando ao chegar à clínica, diria que era mudo por questões biológicas, desprovido de cordas vocais ou com alguma falha neurológica. Às vezes L. abria a boca, mas não saía nenhum som. Só o ato de deslocar o lábio superior do inferior parecia deixá-lo exausto.

“O seu nome é L.?”, Nicolas perguntava.

Os lábios abertos, a cavidade bucal como um abismo, mas um silêncio absoluto. Se Nicolas falasse mais perto de sua boca, seria capaz de ouvir o eco da própria pergunta.

“O senhor serviu na Normandia?”, Nicolas perguntava, mesmo sabendo que não, na verdade ele foi para o front oriental. Talvez a necessidade de corrigir Nicolas servisse de motor para uma conversa.

Os dedos se mexiam minimamente. Quando Nicolas fazia essa pergunta, tinha a impressão de que L. desenhava no ar, com o indicador, a medalha que recebeu, ou quem sabe o mapa de uma ilha no Japão.

“O senhor foi ferido?”, ele perguntava.

L. baixava imperceptivelmente a cabeça.

No sexto dia, Nicolas buscou fazer perguntas mais banais.

“O senhor acha o meu inglês esquisito?”

Nada.

“Você não me responde porque o meu inglês é tão ruim que não dá para compreender?”

Nada.

“Você preferia que eu falasse francês?”, e interpretou um estereótipo de um francês, falando baguette, escargot, Tour Eiffel etc. Nicolas, ao mesmo tempo que sabia estar se comportando como um completo idiota, esperava detectar um sorriso no canto da boca do paciente. A falta de resposta o levava a pensar que o paciente não duraria muito tempo na clínica. Não cuidavam de casos incuráveis; esses eram mandados para sanatórios infectos, que mais pareciam prisões ou campos de trabalho forçado. Provavelmente, o paciente só estava lá por algum acordo da Suíça com o consulado norte-americano. Talvez as medalhas tenham conferido a esse herói de guerra o presente de um tratamento humano. Seja como for, Nicolas falhara na intuição inicial: era um caso muito mais grave do que pensara. Tanto é que as enfermeiras pediram para que L. fosse atendido no próprio quarto, pois o homenzarrão era pesado demais para ser conduzido até o consultório do doutor.

Não cuidavam de casos incuráveis; esses eram mandados para sanatórios infectos, que mais pareciam prisões ou campos de trabalho forçado

No sétimo dia, Nicolas reorganizou sua agenda: colocou L. como parte da ronda da tarde. Na opinião do diretor, Nicolas já deveria ter recorrido ao eletrochoque nesse caso, mas de todas as terapias oferecidas na clínica, a de choque era a que menos lhe agradava, por causa do pavor expresso no rosto dos pacientes durante o tratamento, que se transfigurava em caretas horripilantes, disformes, e pelos danos conhecidos à memória. Nicolas pediu mais uns dias ao diretor.

“Estou gostando da história”, interrompeu Anna. “Sinto que tem uma reviravolta a caminho.”

“Espero não decepcionar”, disse Nicolas. “A história, enfim, acabou hoje.”

Anna o observou, curiosa.

Nicolas tinha ido visitar o paciente à tarde munido de uma crença renovada no poder da fala. Afinal, tinha recebido uma correspondência de um colega suíço que fora exercer a psiquiatria do outro lado do Atlântico, na costa leste dos Estados Unidos, talvez não tão distante da cidade de origem de L. De acordo com Johannes, este colega, os Estados Unidos haviam abraçado de vez as teorias de Sigmund Freud, e por todos os lados corriam relatos espantosos de pacientes com as psicoses mais diversas sendo curados através da psicanálise. “Há um consenso”, constava na carta, “de que o método da terapia pela fala logo suplantará estes outros obscurantistas que ainda praticamos e que muitas vezes reduzem nossos pacientes a criaturas sem mente ou alma.”

Nicolas, Anna sabia, possuía a mesma crença entusiasmada que o colega nessa linha de terapia, e a carta infundiu nele uma determinação a dar uma última chance a L. antes de disparar raios elétricos em suas têmporas. E Nicolas e Anna sabiam que Johannes, ao mencionar o obscurantismo, referia-se especificamente à lobotomia, algo não praticado na clínica, mas que toda a sua geração precisou aprender na faculdade. Por um momento, Nicolas vislumbrou em sua mente uma cabeça anônima, de costas, que se virava para ele com uma cicatriz no meio da testa, acima dos olhos.

Mais importante do que tudo isso, porém, era que finalmente o estoque de escopolamina havia sido reabastecido. Nicolas portava uma seringa dentro da maleta já carregada com o soro. O medicamento era inofensivo, como um convite à conversa. Não passava de um avanço na hipnose que Freud e Breuer usaram no começo de suas carreiras.

Nicolas entrou no quarto do paciente com um gesto brusco, abrindo a porta com tanto vigor que ela bateu contra a parede do lado de dentro e um sopro de ar passou pelo corredor. “Bom dia, L.”, bradou, em um tom de capitão saudando as tropas.

Como era de esperar, o paciente não reagiu. As enfermeiras tinham feito com que ele se sentasse. O quarto não tinha nada além de um colchão sobre uma cama de metal. Todos os objetos que pudessem ser usados numa tentativa de suicídio foram retirados após a primeira noite de L.

“Que tal olhar para mim?”, pediu Nicolas.

L. não se mexeu.

“Só virar um pouco a cabeça.”

Nada.

“Os olhos. Não peço um movimento de pescoço. Só os olhos.”

Nicolas esperou um pouco e os olhos do paciente, de fato, foram se virando, grau a grau, na sua direção. L. queria se comunicar, Nicolas tinha certeza.

Nicolas esperou um pouco e os olhos do paciente, de fato, foram se virando, grau a grau, na sua direção. L. queria se comunicar, Nicolas tinha certeza

Produto

  • Uma Tristeza Infinita
  • Antônio Xerxenesky
  • Companhia das Letras
  • 256 páginas

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