Trecho de Livro: Sobre a Violência, de Hannah Arendt — Gama Revista

Trecho de livro

Sobre a Violência

Nova edição de uma das obras mais relevantes da filósofa Hannah Arendt vem de encontro a um mundo em suspensão devido à guerra na Ucrânia

Leonardo Neiva 04 de Março de 2022

Uma das principais pensadoras do século 20, a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt (1906-1975) até hoje nunca deixou de ser lida e relida. Uma prova de sua contínua relevância é o fato de que o livro “Sobre a Violência” (Civilização Brasileira, 2022), um dos mais importantes de sua vasta obra, ganha nova edição justamente num momento em que os olhos do mundo todo estão voltados para os atos crescentemente violentos que caracterizam o conflito entre Rússia e Ucrânia.

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Conhecida, entre várias outras coisas, por cunhar a expressão “banalidade do mal”, aqui Arendt aborda questões importantes, como a relevância da violência para o desenvolvimento da sociedade e a impossibilidade da guerra no mundo contemporâneo, quando o potencial destrutivo dos arsenais é capaz de causar não apenas baixas, mas uma devastação a níveis apocalípticos.

Escrito entre os anos de 1968 e 1969, quando a pensadora esteve em exílio nos Estados Unidos, o volume faz parte de uma tentativa da autora de compreender um período de extremos e contradições, em que o mundo ainda se recuperava dos impactos da Segunda Guerra e procurava um caminho fora da violência, mas ao mesmo tempo ainda abrigava conflitos como a Guerra do Vietnã. Buscando aprofundar suas reflexões sobre o tema, Arendt não ignora a ironia de que, ao aperfeiçoar quase ao máximo nossos meios de destruição, acabamos por tornar a guerra praticamente inviável, “um irônico lembrete da imprevisibilidade onipotente que encontramos no momento em que nos aproximamos do domínio da violência”.


Estas reflexões foram provocadas pelos eventos e pelos debates dos últimos anos vistos contra o pano de fundo do século XX, que, como Lênin previu, tornou-se de fato um século de guerras e revoluções e, portanto, um século daquela violência que comumente se acredita ser o seu denominador comum. Há, entretanto, outro fator na situação presente que, mesmo imprevisto, tem pelo menos importância igual. O desenvolvimento técnico dos implementos da violência alcançou agora o ponto em que nenhum objetivo político poderia presumivelmente corresponder ao seu potencial de destruição ou justificar seu uso efetivo no conflito armado. Assim, a guerra — desde tempos imemoriais, árbitro último e implacável em disputas internacionais — perdeu muito de sua eficácia e quase todo o seu fascínio. O jogo de xadrez “apocalíptico” entre as superpotências, quer dizer, entre aqueles que manobram no mais alto plano de nossa civilização, está sendo jogado de acordo com a regra de que “se alguém ‘vencer’ é o fim para ambos”; trata-se de um jogo que não apresenta semelhança alguma com nenhum jogo de guerra que o precedeu. O seu objetivo “racional” é a dissuasão, não a vitória, e a corrida armamentista, como não é mais uma preparação para a guerra, agora só pode ser justificada pelo princípio de que mais e mais dissuasão é a melhor garantia para a paz. Não há resposta à questão de como poderemos nos desembaraçar da óbvia insanidade dessa posição.

Posto que a violência — distintamente do poder, da força ou do vigor — sempre necessita de implementos (como Engels observou há muito tempo), a revolução da tecnologia, uma revolução na fabricação dos instrumentos, foi especialmente notada na guerra. A própria substância da ação violenta é regida pela categoria meio-fim, cuja principal característica, quando aplicada aos negócios humanos, foi sempre a de que o fim corre o perigo de ser suplantado pelos meios que ele justifica e que são necessários para alcançá-lo. Visto que o fim da ação humana, distintamente dos produtos finais da fabricação, nunca pode ser previsto de maneira confiável, os meios utilizados para alcançar os objetivos políticos são muito frequentemente de mais relevância para o mundo futuro do que os objetivos pretendidos.

O jogo de xadrez “apocalíptico” entre as superpotências (…) está sendo jogado de acordo com a regra de que “se alguém ‘vencer’ é o fim para ambos”

Ademais, posto que os resultados das ações dos homens estão além do controle dos atores, a violência abriga em si mesma um elemento adicional de arbitrariedade; em nenhum outro lugar a Fortuna, a boa ou a má sorte, representa um papel mais fatídico nos negócios humanos do que no campo de batalha, e essa intrusão do totalmente inesperado não desaparece quando as pessoas o chamam de um “evento casual” e tomam-no por cientificamente suspeito; e o totalmente inesperado não pode ser eliminado por simulações, roteiros, teorias dos jogos e coisas assim. Não há certeza nesses assuntos, nem mesmo a certeza derradeira da mútua destruição sob certas circunstâncias calculadas. O próprio fato de os que se engajam no aperfeiçoamento dos meios de destruição terem finalmente atingido o grau de desenvolvimento técnico em que a sua própria meta, isto é, a guerra, está a ponto de desaparecer totalmente em virtude dos meios à sua disposição é como um irônico lembrete da imprevisibilidade onipotente que encontramos no momento em que nos aproximamos do domínio da violência. A principal razão em função da qual a guerra ainda está entre nós não é um secreto desejo de morte da espécie humana, nem um instinto irreprimível de agressão ou tampouco e por fim, de forma mais plausível, os sérios perigos econômicos e sociais inerentes ao desarmamento, mas o simples fato de que nenhum substituto para esse árbitro último nos negócios internacionais apareceu na cena política. Não estaria Hobbes certo quando disse: “Pactos sem a espada são meras palavras”?

Nem é provável que um substituto venha a aparecer enquanto estiverem identificadas a independência nacional, quer dizer, o estar livre da dominação estrangeira, e a soberania do Estado, isto é, a reivindicação de um poder ilimitado e irrestrito em assuntos externos. (Os Estados Unidos da América estão entre os poucos países em que uma separação adequada entre liberdade e soberania é ao menos teoricamente possível, na medida em que as próprias bases da república americana não seriam ameaçadas por ela. Tratados externos, de acordo com a Constituição, são parte integrante da lei do país, e, como observou o juiz James Wilson, em 1793, “o termo soberania é totalmente estranho à Constituição dos Estados Unidos”. Mas os tempos dessa separação lúcida e altiva em relação à linguagem tradicional e à estrutura política conceitual do Estado-nação europeu passaram-se há muito; a herança da Revolução Americana está esquecida e o governo americano, para o melhor e para o pior, incorporou-se à herança da Europa como se ela fora seu patrimônio — inconsciente do fato de que o declínio do poder da Europa foi precedido e acompanhado pela falência política, a falência do Estado-nação e de seu conceito de soberania.) Que a guerra ainda seja a ultima ratio, a velha continuação da política por meio da violência nos negócios externos dos países subdesenvolvidos, não constitui argumento contra a sua caducidade; e o fato de que apenas pequenos países sem armas nucleares ou biológicas possam ainda realizá-la não é nenhum consolo. Não é segredo para ninguém que o famoso evento casual pode mais provavelmente aparecer naquelas partes do mundo em que o velho adágio “não há alternativa à vitória” guarda alto grau de plausibilidade.

Não estaria Hobbes certo quando disse: “Pactos sem a espada são meras palavras”?

Em tais circunstâncias, nada pode ser mais assustador do que o constante crescimento do prestígio dos assessores de mentalidade científica nos conselhos do governo nas últimas décadas. O problema não é que eles tenham sangue-frio suficiente para “pensar o impensável”, mas, sim, que eles não pensem. Em vez de entregarem-se a essa atividade antiquada e improcessável, calculam as consequências de certas suposições hipoteticamente assumidas, sem, contudo, ser capazes de testar suas hipóteses contra as ocorrências reais. A falha lógica nessas construções hipotéticas dos eventos futuros é sempre a mesma: aquilo que antes aparece como uma hipótese — com ou sem as suas consequentes alternativas, conforme o grau de sofisticação — torna-se imediatamente, em geral após uns poucos parágrafos, um “fato”, o qual, então, origina toda uma corrente de não fatos similares, daí resultando que o caráter puramente especulativo de toda a empreitada é esquecido. Não é preciso dizer que isso não é ciência, mas pseudociência, “a desesperada tentativa das ciências sociais e comportamentais”, nas palavras de Noam Chomsky, “de imitar as características superficiais das ciências que realmente têm um conteúdo intelectual significativo”. E a mais óbvia e “mais profunda objeção a esse tipo de teoria estratégica não é a sua utilidade limitada, mas o seu perigo, pois ela pode nos levar a acreditar que temos um entendimento a respeito desses eventos e um controle sobre o seu fluxo, o que não temos”, como indicou recentemente Richard N. Goodwin em um artigo de revista que tinha a rara virtude de detectar o característico “humor inconsciente” de muitas dessas pomposas teorias pseudocientíficas.

Eventos, por definição, são ocorrências que interrompem processos e procedimentos de rotina; apenas em um mundo em que nada de importante acontece poderia tornar-se real o sonho dos futurologistas. Previsões do futuro nunca são mais do que projeções de processos e procedimentos automáticos do presente, isto é, de ocorrências que possivelmente advirão se os homens não agirem e se nada de inesperado acontecer; toda ação, para o melhor e para o pior, e todo acidente destroem, necessariamente, todo o modelo em cuja estrutura move-se a previsão e no qual ela encontra sua evidência. (A observação passageira de Proudhon de que “a fecundidade do inesperado excede muito a prudência do estadista” ainda é, felizmente, verdadeira. Ela excede ainda mais obviamente os cálculos dos especialistas.) Chamar tais acontecimentos inesperados, imprevistos e imprevisíveis de “eventos casuais” ou de “últimos suspiros do passado”, condenando-os à irrelevância ou à famosa “lata de lixo da história”, é o mais velho truque nesse campo. O truque, sem dúvida, ajuda a ordenar a teoria, mas ao preço de afastá-la mais e mais da realidade. O perigo está em que essas teorias são não apenas plausíveis, pois tiram seus indícios de tendências presentes efetivamente discerníveis, mas também possuem um efeito hipnótico em função de sua consistência interna; elas adormecem nosso senso comum, que nada mais é do que nosso órgão espiritual para perceber, entender e lidar com a realidade e com os fatos.

Em vez de a guerra ser “uma extensão da diplomacia”, a paz é a continuação da guerra por outros meios — é o desenvolvimento efetivo das técnicas de combate

Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode permanecer alheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou nos negócios humanos, e, à primeira vista, é surpreendente que a violência tenha sido raramente escolhida como objeto de consideração especial. (Na última edição da Enciclopédia de Ciências Sociais, “violência” nem sequer merece menção.) Isso indica quanto a violência e sua arbitrariedade foram consideradas corriqueiras e, portanto, negligenciadas; ninguém questiona ou examina o que é óbvio para todos. Aqueles que viram apenas violência nos assuntos humanos, convencidos de que eles eram “sempre fortuitos, nem sérios nem precisos” (Renan), ou de que Deus sempre esteve com os maiores batalhões, nada mais tinham a dizer a respeito da violência ou da história. Quem quer que tenha procurado algum sentido nos registros do passado viu-se quase obrigado a enxergar a violência como um fenômeno marginal. Seja Clausewitz denominando a guerra como a “continuação da política por outros meios”, seja Engels definindo a violência como o acelerador do desenvolvimento econômico, a ênfase recai sobre a continuidade política ou econômica, sobre a continuidade de um processo que permanece determinado por aquilo que precedeu a ação violenta. Desse modo, os estudiosos das relações internacionais sustentaram até recentemente “a máxima de que uma resolução militar em desacordo com as mais profundas fontes culturais do poder nacional não poderia ser estável”, ou, nas palavras de Engels, “onde quer que a estrutura de poder de um país contradiga o seu desenvolvimento econômico”, será o poder político, com seus meios de violência, que sofrerá a derrota.

Hoje todas essas antigas verdades sobre a relação entre guerra e política, ou a respeito da violência e do poder, tornaram-se inaplicáveis. À Segunda Guerra Mundial não se seguiu a paz, mas uma guerra fria e o estabelecimento do complexo de trabalho industrial-militar. Falar da “prioridade do potencial para fazer a guerra como a principal força estruturadora na sociedade”, sustentar que os “sistemas econômicos, as filosofias políticas e a corpora juris servem e ampliam o sistema de guerra e não o contrário”, concluir que “a própria guerra é o sistema social básico, dentro do qual outros modos secundários da organização social conflitam ou conspiram” — tudo isso soa muito mais plausível do que as fórmulas do século XIX de Engels ou Clausewitz. Ainda mais conclusivo do que essa simples inversão proposta pelo autor anônimo de Report from Iron Mountain — em vez de a guerra ser “uma extensão da diplomacia” (ou da política, ou ainda da busca de objetivos econômicos), a paz é a continuação da guerra por outros meios — é o desenvolvimento efetivo das técnicas de combate. Nas palavras do físico russo Sakharov, “uma guerra termonuclear não pode ser considerada uma continuação da política por outros meios (de acordo com a fórmula de Clausewitz) — ela seria um meio para o suicídio universal”.

Produto

  • Sobre a Violência
  • Hannah Arendt
  • Civilização Brasileira
  • 154 páginas

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