Sempre Repórter
Coletânea reúne alguns dos melhores textos da lendária jornalista Lillian Ross, em perfis de personalidades como Chaplin e Hemingway
Charlie Chaplin numa versão mais velha, reclamando casualmente da falta de dinheiro. Uma deslumbrada Julie Andrews com apenas 19 anos, percebendo que está às portas do estrelato. Robin Williams ainda no início da carreira fazendo aparições aleatórias e extremamente divertidas em clubes de comédia. Esses são alguns dos perfis que a lendária norte-americana Lillian Ross (1918-2017) publicou na revista New Yorker ao longo de sua carreira, reunidos no livro que preserva até em seu título o espírito da jornalista: “Sempre Repórter” (Carambaia, 2024) — que inclui ainda um posfácio do jornalista e editor Paulo Roberto Pires.
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Quase centenária, Ross trabalhou durante seis décadas na publicação, ajudando a inovar a forma de contar histórias e fazer reportagens. Hoje considerada uma das grandes precursoras do jornalismo literário, a jornalista recusava a posição de invisibilidade em que o repórter geralmente se coloca, que por vezes dá a estranha impressão de que as matérias se escrevem sozinhas. Pelo contrário, ela optava por narrar em detalhes tudo aquilo que via e tinha participação ativa como um dos personagens centrais das cenas que descrevia.
Ross é bastante celebrada pelos perfis que escreveu de personalidades famosas do cinema e da literatura, como Fellini, Al Pacino e Ernest Hemingway. No livro, no entanto, que tem tradução de Jayme da Costa Pinto, eles dividem espaço com uma série de figuras anônimas e pitorescas, a exemplo da jovem enfermeira que disputa o concurso de Miss América e de uma editora-assistente melhor amiga de Oprah. Admitida na revista em 1945 com uma certa má vontade, para ocupar o lugar de repórteres homens que tinham partido para a guerra, a jornalista no início teve que ocultar nos textos sua identidade como mulher. Mas a estratégia não durou muito. Em pouco tempo, o estilo e assinatura da repórter se tornariam inconfundíveis.
Nos últimos dez anos, Robin Williams, o ator cômico de 34 anos que parece se conectar com seu público em um nível alucinado e profundo, e que faz as pessoas rirem de um jeito diferente, a um só tempo histérico, verdadeiro e feliz, participou de dois programas de televisão (Mork & Mindy e o revival de Laugh-In, em 1977), seis filmes (Popeye, O mundo segundo Garp, O negócio é sobreviver, Moscou em Nova York, A última chance e Clube Paraíso — este ainda não lançado), dois shows em videocassete e dois álbuns (Reality… What a Concept e Throbbing Python of Love). Mas há um tipo de performance que Williams tem feito sem parar — antes, durante e depois de suas atividades na televisão, no cinema, em shows e gravações — que consiste em aparições-surpresa em pequenos clubes noturnos de comédia: no Comedy Store, em Los Angeles; no Yuk-Yuk’s, em Toronto; no Second City, em Chicago; no Holy City Zoo, em São Francisco; no Catch a Rising Star, em Nova York; e em outros palcos parecidos, que se instalaram em dezenas de cidades pelos Estados Unidos a partir dos anos 1970. E antes de seguir rumo à Costa Oeste, na semana passada, para assumir o papel de fenomenal apresentador do Oscar, Williams passou por Nova York, onde ajudou na organização do programa Comic Relief [Alívio cômico] da televisão a cabo — um evento beneficente que arrecada dinheiro para os sem-teto — e nós o acompanhamos em algumas dessas escapadas à meia-noite.
Ao chegarmos para o encontro, Williams havia passado quatro horas sentado no Public Theatre assistindo a Hamlet, de onde saiu com cara de esgotado. O ator é um homem atarracado, de aparência leve, com rosto e corpo altamente maleáveis, quase elásticos, que estamos acostumados a ver se transmutar, em questão de segundos, de Barry Fitzgerald a William F. Buckley Jr., passando por Jerry Falwell, Jesse Jackson, Nadia Comaneci e Deus sabe quem ou o que mais — sempre de modo simultaneamente afiado e gentil. Agora, vestindo calças marrons largas nas pernas, apertadas nos tornozelos, botas pretas de caminhada e um casaco de chuva amarelo, estava calmo e sereno. Expressou admiração por Kevin Kline no papel de Hamlet e Harriet Harris como Ofélia, observando que ambos eram, como ele, ex-alunos do Juilliard Theatre Center. Disse ainda que Jeff Weiss, estreante numa produção daquele porte, e que assumiu os papéis do Fantasma, do Ator-Rei e de Osric, o cortesão seboso, esteve impressionante. E aí, de repente, dentro do táxi que nos levava ao Catch a Rising Star (Primeira Avenida perto da rua 77), Williams se transformou num Hamlet com sotaque iídiche, lamentando a “existência não kosher” de Yorick; depois num Hamlet insano, confinado a uma instituição psiquiátrica e interpretando todos os papéis da peça; num Hamlet com George Jessel como o Fantasma; num Hamlet de Woody Allen, soando exatamente como Woody Allen ao dizer “Não sei se devo vingá-lo ou honrá-lo”; num Hamlet de Jack Nicholson, soando exatamente como Jack Nicholson ao dizer “Ser ou não ser, p*rra…”.
Uma noite, no café, sem motivo algum, comecei a imitar um jogador de futebol doidão de lsd. A sensação foi ótima, me diverti demais
Em seguida, Williams se acalmou, e passamos o resto da corrida de táxi pedindo que nos desse uma atualização rápida de sua história pessoal: nascido em Chicago, filho único; pai vice-presidente de uma montadora de automóveis (“Parecia um oficial do Exército britânico”), que se mudou com a família para o condado de Marin, nos arredores de São Francisco, ao se aposentar; e mãe brincalhona e engraçadíssima, originária do Sul e que adora contar piadas. “Eu era bom em idiomas e pensei em trabalhar na área de relações exteriores, ou coisa parecida”, contou. “No colegial, me dediquei muito à corrida de cross-country, atividade que eu adorava, e à luta livre, o que me dava oportunidade de causar algum estrago. Frequentei o Claremont College, onde fiz cursos de ciências políticas e economia, sendo reprovado em ambos. Depois do primeiro ano, saí de Claremont e fui para o College of Marin, perto de casa, que tinha um departamento de teatro incrível, com professores que me falaram da Juilliard. Fiz um teste para a Juilliard, ganhei uma bolsa de estudos integral e por lá fiquei três anos, fazendo Shakespeare e Strindberg. Ao voltar para casa, comecei a frequentar um café chamado Intersection, na Union Street, em São Francisco, à noite. Durante o dia, trabalhava numa sorveteria. Uma noite, no café, sem motivo algum, comecei a imitar um jogador de futebol doidão de lsd. A sensação foi ótima, me diverti demais. E ninguém estava me dizendo o que fazer, gostei daquela liberdade.”
Quando chegamos ao Catch a Rising Star, o local estava lotado: fila de gente em pé no bar da frente; umas 150 pessoas num salão nos fundos, sentadas ao redor de mesinhas, bebendo, de frente para uma pequena plataforma com um microfone de pedestal. Na parede atrás da plataforma, umas placas diziam “Boa sorte” e “Entrada da Monogram Pictures Corp.”. Ao lado, um quadro exibia uma montagem com comediantes famosos — Eddie Cantor, Charlie Chaplin, Milton Berle, Abbott e Costello. Na plataforma, um jovem apresentador — baixinho, rechonchudo, de cabelos cacheados escuros e vestindo camisa de mangas compridas sobre uma camiseta — provocava risadas mecânicas com perguntas e comentários óbvios sobre o público, que consistia sobretudo de jovens solteiros, jovens casais, quartetos de mulheres jovens, trios de homens jovens. O mestre de cerimônias saiu de cena depois de chamar seu substituto, um jovem alto e corpulento, de cabelos ralos, que trajava jeans e um suéter vermelho. O substituto trabalhou por uns quinze minutos, arrancando risadas obedientes com piadas de “família”: “Minha mãe teve quatro filhos. Fui o único vertebrado” e “Temos um cachorro, cruzamento de labrador com urubu. Ele agora está rondando a vovó”.
O mestre de cerimônias rechonchudo então voltou e anunciou que Robin Williams estava presente. O lugar enlouqueceu. Gritos, berros, assobios, mais gritos
O mestre de cerimônias rechonchudo então voltou e anunciou que Robin Williams estava presente. O lugar enlouqueceu. Gritos, berros, assobios, mais gritos, uivos e aplausos ensurdecedores. Williams pegou o microfone e disse, à moda de um ganhador do Oscar: “Obrigado por tornarem isso possível. [Imitando um frequentador de teatro esnobe] Enquanto eu estiver com meus óculos, o mundo é meu. Acabei de assistir a Hamlet. Quero ver Hamlet interpretado por Sylvester Stallone. [Imitando Stallone] ‘Ser ou… o que mesmo?’ Quem sabe ele e Schwarzenegger fazem um filme juntos. [Imitando Schwarzenegger] ‘Com legendas em inglês’.”
Segundos depois, mais uma vez, Williams se transformava de ser humano em esquilo do Central Park, pombo de Nova York (“Eu até poderia voar pra longe, mas gosto daqui”), em outro ganhador do Oscar (“Gostaria de agradecer a todos que não tentaram me matar”), nele próprio, em modo penitente (“Perdão, meu Deus, por ter tirado sarro de todo mundo”), num fabricante japonês (“A culpa não é minha, isto aqui é feito na América”).
A plateia sugeria assuntos conhecidos de outras apresentações de Williams, deixando-o ainda mais alucinado. O comediante imitou gângsteres, bêbados, Gorbachev, Reagan, Charles Kuralt cobrindo resíduos tóxicos em New Jersey. E depois foi de sra. Marcos a Louis Farrakhan, passando por uma criança que via o pai partir e chorava junto a uma janela. Na sequência, se afastava da janela, olhos já secos, e dizia: “Vamos colocar aquela música do Fisher-Price e pirar!”. (Williams tem um filho de 3 anos, Zachary.)
O ator falou por cerca de meia hora e saiu do palco revigorado, parecia pronto pra outra. Na noite seguinte, no táxi a caminho do Improvisation (rua 44, perto da 8), nos deu um minicurso sobre clubes de comédia. “O público de ontem era formado pelo pessoal ponte-e-túnel. Eles vêm de New Jersey e Connecticut. São um desafio. A recepção pode ser ótima, mas se não estiver funcionando — tentou uma vez, tentou duas — não há o que fazer. Alguns comediantes são muito orgulhosos, se agarram ao material que se propuseram a apresentar não importa o que aconteça. Sou mais camaleônico. Procuro o nível básico do público. Ontem à noite, encaixei um ritmo bom, estava me sentindo à vontade. Gosto de ir aos clubes porque isso elimina a pretensão. Na semana passada, fui ao Comedy Store, em Los Angeles. E falei sobre umas coisas bizarras. Embalei num papo sobre viajar na velocidade da luz e perder a bagagem antes mesmo de embarcar. Fiz o Albert Einstein imitando o sr. Rogers, improvisei mesmo. Foi muito divertido. Como correr num campo aberto.”
Alguns comediantes são muito orgulhosos, se agarram ao material que se propuseram a apresentar não importa o que aconteça. Sou mais camaleônico. Procuro o nível básico do público
No Improvisation, a menção à presença de Robin Williams provocou gritos e uivos ainda mais estridentes. E ele repetiu a abertura como ganhador do Oscar, afetando humildade: “Obrigado pela gentileza. As palavras de vocês significam muito”. Em seguida, fez o político sul-africano Botha, depois transmutou-se no estado de Michigan, na Estátua da Liberdade, em Frank Sinatra, em caçadores judeus (“Vamos para a floresta ver se alguma coisa morreu”), Lee Iacocca, Henry Kissinger e na El Al Airlines.
Então, alguém na plateia gritou: “Dra. Ruth!”.
“Dra. Rufe?”, Williams perguntou, tendo obviamente ouvido mal o nome sugerido. Mas logo entendeu e, de pronto, usou o erro para assumir o papel de uma religiosa negra que dava conselhos sexuais em tom rabugento. “Se oriente!”, disse. “Você tá parecendo o boneco Ken. Vira esses olhos cheios de rímel pra lá! Põe o pé na estrada e não esquece de conferir se a ponte tá aberta.” O comediante esticou o sermão por uns bons quinze minutos. A plateia estava fora de si; Williams, em êxtase. Contou que aquele material era novo, tinha usado pela primeira vez ali. Parecia ter acabado de correr num campo aberto.
(7 de abril de 1986)
- Sempre Repórter – Textos da revista The New Yorker
- Lillan Ross (trad. Jayme da Costa Pinto)
- Carambaia
- 432 páginas
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