Racionalidade
Psicólogo e professor de Harvard Steven Pinker lida com as contradições entre o racional e irracional que habitam os seres humanos
Um dos maiores psicólogos cognitivos do mundo, o célebre linguista e professor de Harvard Steven Pinker se destaca hoje como uma das principais vozes em defesa da razão e da ciência. Assim como em “O Novo Iluminismo” (Companhia das Letras, 2018), seu último livro a chegar por aqui, o novo “Racionalidade” (Intrínseca, 2022) lida com uma das principais contradições de nossos tempos: como é possível sermos capazes de desenvolver vacinas em tempo recorde, como aconteceu na pandemia de covid-19, e ainda assim recorrermos cada vez mais a métodos pouco científicos, teorias da conspiração e notícias falsas?
MAIS SOBRE O ASSUNTO
O que é o verdadeiro e o falso para a ciência
‘No capitalismo, cada um é responsável pela própria saúde mental’
Sobre a Violência
Como o próprio autor admite no prefácio da obra, “entre nossos problemas atuais mais graves está o de convencer as pessoas a aceitar as soluções quando de fato chegarmos a elas”. Então, a partir de uma pergunta que parece insolúvel – como pode um ser racional abraçar com tanta naturalidade a loucura e a irracionalidade? –, o autor perpassa questões relevantes como pensamento crítico, probabilidade e crenças bastante humanas até chegar ao âmago de tudo isso: por que a racionalidade importa realmente?
Duas vezes finalista do Prêmio Pulitzer e já eleito entre as cem pessoas mais influentes do mundo pela revista TIME, Pinker aqui faz mais uma vez seu truque de mágica, enveredando por assuntos complexos de forma clara, fácil de entender e interessante, usando como uma de suas principais armas o bom humor característico. Evitando constantemente os lugares-comuns, ele não cede em nenhum momento ao argumento simplista de que seres humanos são simplesmente irracionais e explora até mesmo o potencial de loucura que habita os extremos da racionalidade no mundo atual.
Racionalidade e irracionalidade
Permitem que eu diga que não apreciei servir com humanos? Considero suas emoções ilógicas e tolas uma irritação constante.
— Sr. Spock
A racionalidade não é nada legal. Descrever uma pessoa com uma gíria relacionada ao uso do cérebro, como nerd, cdf, geek ou gênio, corresponde a insinuar que essa pessoa tem uma deficiência terminal de belos atributos. Há décadas, roteiros de Hollywood e letras de rock equiparam a alegria e a liberdade a uma fuga da razão. “Um homem precisa de um pouco de loucura, ou ele nunca vai ousar cortar a corda e se libertar”, disse Zorba, o grego. “Pare de fazer sentido”, aconselhou a música do Talking Heads. “Vamos enlouquecer”, suplicou o artista anteriormente conhecido como Prince. Movimentos acadêmicos em voga, como o pós-modernismo e a teoria crítica (que não deve ser confundida com o pensamento crítico), afirmam que a razão, a verdade e a objetividade são construções sociais que justificam o privilégio de grupos dominantes. Esses movimentos apresentam um ar de sofisticação, deixando implícito que a filosofia e a ciência do Ocidente são provincianas, antiquadas, ingênuas diante da diversidade de formas de conhecimento encontradas em outros períodos e culturas. Para dizer a verdade, não muito longe de onde moro, no centro de Boston, há um esplêndido mosaico turquesa e dourado que proclama “Siga a razão”. Mas ele está afixado à Grande Loja Maçônica, a fraternidade que usa fez e avental, e é a resposta para a pergunta “Qual é o contrário de antenado?”.
Minha posição diante da racionalidade é “sou a favor”. Apesar de não poder argumentar que a razão é massa, dez, irada, sinistra ou da hora e, a rigor, não poder nem mesmo justificar ou racionalizar a razão, eu defendo a mensagem no mosaico: nós deveríamos seguir a razão.
Minha posição diante da racionalidade é “sou a favor”
Razões para a razão
Para começar do início: o que é a racionalidade? Como ocorre com a maioria das palavras de uso geral, nenhuma definição consegue estabelecer seu significado exato, e os dicionários só nos levam a dar voltas: em sua maioria eles definem racional como “tendo razão, mas o próprio termo razão provém do latim ration, frequentemente definido como “razão”.
Uma definição que é mais ou menos fiel ao uso da palavra é a “capacidade de empregar o conhecimento para atingir objetivos”. O conhecimento, por sua vez, é tipicamente definido como “crença verdadeira justificada”. Nós não daríamos a alguém o crédito de ser racional se essa pessoa agisse com base em crenças reconhecidamente falsas, como, por exemplo, procurar suas chaves num lugar onde soubesse que elas não estariam; ou se essas crenças não pudessem ser justificadas — digamos, se elas viessem de uma visão induzida por drogas ou de uma alucinação, em vez da observação do mundo ou da inferência a partir de alguma outra crença verdadeira.
Ademais, as crenças devem ser mantidas a serviço de um objetivo. Ninguém recebe crédito por racionalidade simplesmente por ter pensamentos verdadeiros, como calcular os dígitos de ? ou se esforçar para extrair as implicações lógicas de uma proposição (“Ou 1 + 1 = 2 ou a lua é feita de queijo”, “Se 1 + 1 = 3, então elefantes voam”). Um agente racional precisa ter um objetivo, seja o de confirmar a veracidade de uma ideia notável, chamado de razão teórica, seja o de produzir um resultado notável no mundo, chamado de razão prática (“o que é verdadeiro” e “o que fazer”). Mesmo a racionalidade trivial de enxergar em vez de ver alucinações está a serviço do objetivo sempre presente embutido em nosso sistema visual de conhecer a realidade que nos cerca.
Além disso, um agente racional deve atingir tal objetivo sem fazer algo que por acaso funcione naquele momento e lugar, e sim ao usar qualquer conhecimento que seja pertinente às circunstâncias. Eis como William James distinguiu uma entidade racional de uma não racional — que, a princípio, pareceria estar fazendo a mesma coisa:
Romeu deseja Julieta como a limalha deseja o ímã; e, se nenhum obstáculo interferir, ele se movimentará na direção dela numa linha tão reta quanto a da limalha. Mas caso um muro seja erguido entre eles, Romeu e Julieta não ficarão ali como patetas forçando o rosto contra os lados opostos do muro, como acontece com ímã e limalha quando separados por um papelão. Romeu logo descobre uma forma alternativa — seja escalando o muro, seja de algum outro modo — para beijar Julieta. Com a limalha, o trajeto é fixo. Se ela vai alcançar o fim depende de acidentes. Com o amante, é o fim que é fixo. O caminho pode sofrer modificações ilimitadas.
Com essa definição, a defesa da racionalidade parece até óbvia demais: você quer as coisas ou não quer? Se quer, é a racionalidade que lhe permite obtê-las.
Ora, esse argumento a favor da racionalidade é aberto a uma objeção. Ele nos aconselha a alicerçar nossas crenças na verdade, a nos certificarmos de que nossa inferência a partir de uma crença rumo a outra é justificada e a fazer planos que tenham a probabilidade de produzir certo resultado. Mas isso apenas levanta outras questões. O que é a “verdade”? O que torna uma inferência “justificada”? Como sabemos que podem ser encontrados meios que de fato produzam um resultado específico? Mas a busca para fornecer a razão final, absoluta, definitiva para a existência da razão está fadada ao insucesso. Exatamente como uma criança de três anos diante de cada resposta a uma pergunta “Por quê ?” retrucará com outro “Por quê?”, a busca pela razão final para a razão sempre poderá ser entravada por uma busca pela razão para a razão da razão. Só porque eu acredito que P implica Q, e acredito em P, por que eu deveria acreditar em Q? Será que é porque eu também acredito que [(P implica Q) e P] implica Q? Mas por que eu deveria acreditar nisso? Será que é porque tenho ainda outra crença, + implica Q?
Ademais, as crenças devem ser mantidas a serviço de um objetivo. Ninguém recebe crédito por racionalidade simplesmente por ter pensamentos verdadeiros
Essa regressão foi a base para o conto de Lewis Carroll de 1895, “O que a tartaruga disse a Aquiles”, que imaginou a conversa que seria entabulada quando o guerreiro dos pés velozes alcançasse (mas jamais ultrapassasse) a tartaruga com sua vantagem inicial, no segundo paradoxo de Zenão. (No tempo que Aquiles levasse para cobrir a distância, a tartaruga continuaria avançando, abrindo assim uma nova distância para Aquiles transpor, ad infinitum.) Além de autor infantil, Carroll era lógico e, nesse artigo publicado na revista de filosofia Mind, ele imagina o guerreiro sentado no dorso da tartaruga e respondendo às exigências cada vez maiores desta para justificar seus argumentos, preenchendo um caderno com milhares de regras para regras para regras. A moral é que o raciocínio com regras lógicas a certa altura deve ser executado por um mecanismo que esteja pré-programado na máquina ou no cérebro e que funcione porque é assim que o circuito opera, não porque ele consulta uma regra que lhe diz o que fazer. Nós programamos aplicativos num computador, mas sua unidade central de processamento não é em si um aplicativo. É uma peça de silício na qual operações elementares como comparar símbolos e somar números foram gravadas. Essas operações foram projetadas (por um engenheiro ou, no caso do cérebro, pela seleção natural) para executar leis da lógica e da matemática que são inerentes ao reino abstrato das ideias.
Agora, apesar do sr. Spock, a lógica não é a mesma coisa que o raciocínio, e no próximo capítulo vamos examinar as diferenças. No entanto, os dois são intimamente relacionados; e as razões pelas quais as regras da lógica não podem ser executadas por ainda mais regras da lógica (ad infinitum) também se aplicam à justificação da razão por ainda mais razão. Em cada caso, a regra definitiva tem de ser simplesmente faça. No fim da história, os debatedores não têm escolha a não ser a de se entregar à razão, porque foi a ela que se entregaram no início da história, quando começaram uma discussão sobre o motivo pelo qual devemos seguir a razão. Desde que os envolvidos estejam debatendo, se persuadindo e então avaliando e aceitando ou rejeitando os argumentos — em contraste com, digamos, subornando ou ameaçando uns aos outros para formular palavras vazias –, já será tarde para fazer perguntas sobre o valor da razão. Eles estão recorrendo à razão para debater; e já tinham aceitado tacitamente seu valor.
Quando se trata de argumentar contra a razão, você já sai perdendo assim que se manifesta. Digamos que você afirme que a racionalidade é desnecessária. Essa afirmação é racional? Se você admitir que não é, não há nenhuma razão para eu acreditar nela — foi você mesmo que disse isso. Mas, se insistir que devo acreditar nela porque a afirmação é racionalmente indiscutível, você acabou de admitir que a racionalidade é a medida pela qual deveríamos aceitar crenças. Sendo esse o caso, essa afirmação em particular deve ser falsa. De modo semelhante, se você quisesse alegar que tudo é subjetivo, eu poderia perguntar: “Essa afirmação é subjetiva?” Se for, você pode ficar à vontade para acreditar nela, mas eu não preciso. Ou suponha que você alegue que tudo é relativo. Será que essa afirmação é relativa? Se for, ela pode ser verdadeira para você aqui e agora, mas não para qualquer outra pessoa ou mesmo para você depois que tiver parado de falar. É por isso que o recente lugar-comum de que estamos vivendo numa “era da pós-verdade” não pode ser verdadeiro. Se fosse verdadeiro, não seria verdadeiro porque estaria afirmando algo verdadeiro sobre a era em que estamos vivendo.
Admite-se que esse argumento, exposto pelo filósofo Thomas Nagel em A última palavra, é não convencional, como qualquer argumento sobre argumentos em si teria de ser. Nagel comparou-o ao argumento de Descartes de que nossa existência é a única coisa de que não podemos duvidar, porque o próprio fato de nos perguntarmos se existimos pressupõe a existência de alguém que pergunta. O próprio fato de investigar o conceito de razão usando a razão pressupõe a validade da razão. Por causa dessa inconvencionalidade, não é de fato correto dizer que deveríamos “acreditar na” razão ou “ter fé na” razão. Como Nagel ressalta, “está sobrando um pensamento aí”. Os pedreiros (e os maçons) entenderam certo: nós deveríamos seguir a razão.
Como diz o ditado, quanto mais discordamos, maior a chance de que pelo menos um de nós esteja certo
Ora, argumentos a favor da verdade, da objetividade e da razão podem ficar entalados na garganta por parecerem perigosamente arrogantes: “Quem você pensa que é para afirmar ter a verdade absoluta?” Mas não é esse o caso na defesa da racionalidade. O psicólogo David Myers disse que a essência da crença monoteísta é: (1) Existe um Deus e (2) não sou eu (e também não é você). O equivalente secular é: (1) Existe a verdade objetiva e (2) eu não a conheço (e você também não). A mesma humildade epistêmica aplica-se à racionalidade que conduz à verdade. A perfeita racionalidade e a verdade objetiva são aspirações que nenhum mortal pode jamais alegar ter alcançado. Mas a convicção de que elas existem nos concede a licença de desenvolver regras que todos podemos cumprir ao nos permitir abordar a verdade em termos coletivos de formas impossíveis para qualquer um de nós como indivíduo.
As regras são projetadas para afastar os vieses que atrapalham a racionalidade: as ilusões cognitivas embutidas na natureza humana, as intolerâncias, os preconceitos, as fobias e os “ismos” que contaminam os membros de uma raça, uma classe, um gênero, uma sexualidade ou uma civilização. Essas regras incluem os princípios do pensamento crítico e os sistemas normativos da lógica, da probabilidade e do raciocínio empírico que serão explicados nos próximos capítulos. Elas são implementadas entre as pessoas de carne e osso por instituições sociais que impedem alguns de impor seu ego, vieses ou delírios sobre todos os outros. “É preciso fazer com que a ambição se contraponha à ambição”, escreveu James Madison a respeito dos critérios de separação de poderes num governo democrático; e é assim que outras instituições orientam comunidades de pessoas preconceituosas e afetadas pela ambição na direção da verdade desinteressada. Entre os exemplos estão o contraditório na justiça, a revisão pelos pares na ciência, a correção e verificação de fatos no jornalismo, a liberdade acadêmica nas universidades e a liberdade de expressão no âmbito público. A discordância é necessária nas deliberações entre mortais. Como diz o ditado, quanto mais discordamos, maior a chance de que pelo menos um de nós esteja certo.
- Racionalidade
- Steven Pinker
- Intrínseca
- 464 páginas
Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos da Gama, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo.