O que é o verdadeiro e o falso para a ciência — Gama Revista
Qual o papel da ciência?
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Guilherme Falcão

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Semana

Hora da verdade

Em tempos de pós-verdade, negacionismo científico e antiintelectualismo, qual é a diferença entre ‘verdadeiro’ e ‘falso’ no campo da ciência – e o que mudou com a pandemia

Juliana Sayuri 31 de Janeiro de 2021

Hora da verdade

Juliana Sayuri 31 de Janeiro de 2021
Guilherme Falcão

Em tempos de pós-verdade, negacionismo científico e antiintelectualismo, qual é a diferença entre ‘verdadeiro’ e ‘falso’ no campo da ciência – e o que mudou com a pandemia

Foi diante de mais de 600 cientistas e um punhado de jornalistas que um prestigiado astrofísico subiu ao palco para dizer que, depois de décadas de estudos, sua própria tese sobre buracos negros estava errada. Era julho de 2004 e, de um disputado auditório da 17ª Conferência Internacional de Relatividade Geral e Gravidade, em Dublin (Irlanda), saiu a manchete para diversas revistas científicas e agências de notícias: Stephen Hawking admite que estava errado.

“Lamento desapontar os fãs de ficção científica, mas não há possibilidade de usar buracos negros para viajar para outros universos. […] É ótimo resolver um problema que tem me perturbado por quase 30 anos, mesmo que a resposta seja menos interessante que a alternativa que sugeri a princípio”, disse o físico britânico, professor emérito da Universidade de Cambridge (Inglaterra) e autor de best-sellers como “Uma Breve História do Tempo” (1988) e “A Teoria de Tudo” (2002).

“A humildade de Hawking já seria rara em qualquer época, mas o é ainda mais em tempos em que admitir o menor dos erros é visto como uma fraqueza a ser zombada. Enquanto campos-chave como os de mudança climática e vacina são politizados, esse tipo de rigidez também infecta como discutimos e não discutimos a ciência. Cientistas ficam relutantes em reconhecer incertezas […]. O resultado: intelectuais bem-intencionados se sentem obrigados a expor a ciência como uma série de verdades que não devem ser discutidas ou duvidadas”, escreveu o jornalista Adam Minter, colunista da Bloomberg, ao lembrar o legado de Hawking, morto por complicações de uma doença degenerativa em março de 2018.

Errar é humano, afinal. Deveria ser uma obviedade, mas não é. Em tempos de negacionismo científico e antiintelectualismo, quando polarização política e tresloucadas teorias da conspiração tentam deslegitimar a ciência, as noções de acerto e erro, verdade, pós-verdade e mentira, verdadeiro e falso vão se embaralhando tão rápido quanto um disparo de fake news no WhatsApp. Mais ainda na pandemia de Covid-19, quando mais de 100 laboratórios ao redor do mundo buscam desenvolver uma vacina contra o novo coronavírus e nas bibliotecas digitais proliferam milhares de artigos científicos em tempo recorde.

Pressa é a palavra. Em agosto de 2020, foi na pressa que Steven Salzberg, professor de engenharia biomédica e bioestatística da Universidade Johns Hopkins (Estados Unidos), publicou um post defendendo deixar de lado a fase 3 de testes das vacinas e já injetar imunizantes para não perder tempo. “Eu estava errado: nós não podemos pular a fase 3”, o acadêmico americano escreveu dias depois na revista Forbes.

A ciência pode errar e ajustar a rota com a descoberta de dado. Ela não é perfeita, nem infalível, mas é o melhor guia para a tomada de decisões

Em janeiro de 2021, foi a vez do médico francês Didier Raoult vir a público para admitir erros no estudo estrelado pela cloroquina, remédio antimalária que foi alardeado pelo presidente Jair Bolsonaro como tratamento eficaz contra Covid-19 – não é. Entre outras críticas e acusações de infringir recomendações das autoridades francesas de saúde, o estudo de Raoult também foi alvo de questionamentos no Retraction Watch, que reúne artigos cancelados por erros ou por má conduta.

Se errar é humano, insistir em um erro dessa dimensão é, digamos, político. “Ciência é feita de evidências. Dizer que um remédio tal trata a doença X pode ser feito de forma responsável ou irresponsável. Responsável se há evidências; irresponsável se não há nenhum fiapo de evidência para sustentar a tese”, diz o filósofo Alexandre Meyer Luz, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

“A ciência pode errar e ajustar a rota com a descoberta de dados, o desenvolvimento de ferramentas. Ela não é perfeita, nem infalível, mas é o melhor guia para a tomada de decisões. Jogar deliberadamente contra ela não é só intelectualmente irresponsável, é moralmente condenável”, acrescenta o autor do livro “Conhecimento e Justificação: problemas de epistemologia contemporânea” (2013) e do podcast Pensando sobre o conhecimento.

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O jogo da justificação

Luz argumenta que, em vez de nos apegarmos à ideia de “verdade”, deveríamos pensar mais em termos de “justificação”. Assim, ciência também é um jogo de apostas, com regras específicas: uma pergunta rende hipóteses, que passam por experimentos, que levam a conclusões, que devem ser publicadas e passar por revisão dos pares, isto é, pelo crivo de outros especialistas da mesma área que vão avaliá-las. Daí vem o conhecimento científico, uma ideia que passou por esse processo público intrincado e ao fim se mostrou uma crença “justificada”, ou seja, há evidências que sejam fortes o bastante para acreditar na afirmação X.

“No mundo real, nossos pressupostos são sempre provisórios, pois a ciência muda para se aprimorar ao longo do tempo. O que separa posições provisórias boas das ruins? O processo de justificação”, diz Alexandre Meyer Luz.

“Se digo ‘há homenzinhos verdes vivendo em Marte’, a afirmação pode ser verdadeira ou falsa, mas nunca estive em Marte e não tenho acesso à verificação direta. Como cientista, o que posso fazer é buscar evidências e indícios, ainda que indiretos, que me apontem o que é mais razoável, racional, provável”, exemplifica. “O problema é tentar justificar uma afirmação sem nenhum vestígio de evidência, o que é típico do antiintelectualismo. Se afirmo que Gisele Bündchen é apaixonada por mim, pois a ideia me agrada, mas não tenho nenhum motivo para sustentar a proposição e, aliás, tenho todas as evidências na direção contrária, isso é mais do que um simples erro. É possível? É, mas é altamente improvável”, ironiza o filósofo.

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É da filosofia também o conceito de ciência citado pela bióloga Natalia Pasternak, diretora-presidente do Instituto Questão de Ciência: primeiro, valorizar evidências; segundo, disposição para mudar de ideia diante de novas evidências. “É a atitude científica, do filósofo Lee McIntyre. Ciência não é um conjunto fixo de informações. É um processo empírico de investigação que busca se aproximar o máximo possível da realidade. Que está sempre aberta a crítica dos pares e que muda de ideia diante de novas evidências, desde que essas evidências sejam robustas”, destaca Pasternak, que é doutora em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e também integra a Equipe Halo, um time de cientistas que promove esclarecimentos sobre vacinas no TikTok.

“Ciência não é verdade absoluta e nem poderia, pois nesse processo vão acontecer erros e mudanças. Mas, graças a esse processo, a gente se aproxima de explicações da realidade que conseguem desenvolver conhecimento e tecnologia. Isso nos garante que as coisas funcionem, que aviões voem, que remédios curem doenças, que vacinas previnam doenças, pois tudo é testado dentro desse processo”, define.

Ciência não é um conjunto fixo de informações. É um processo empírico de investigação que busca se aproximar o máximo possível da realidade

A pandemia alterou os fatores da equação. De um lado, somou-se um contexto de insegurança e a demanda por respostas rápidas. De outro, multiplicaram-se narrativas que seduzem e entregam as respostas as pessoas querem – mais fáceis, mas às vezes falaciosas, pondera a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, doutora em neurociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e idealizadora da Rede Análise Covid-19. “Temos pessoas ávidas por consumir informações para tentar entender e agir nesse contexto, e as redes de desinformação se valeram disso para propagar narrativas desinformativas. Esta é uma das lutas da divulgação científica: divulgar não só dados de forma acessível, mas também como obtemos dados confiáveis e os segregamos daqueles que são problemáticos”, analisa.

“A ciência é dinâmica. À medida que acumulamos conhecimento, vamos observando os rumos que os dados estão nos apontando para a compreensão das questões. Entender isso é parte importante do combate à desinformação”, diz Mellanie Fontes-Dutra.

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Se a ciência é uma bússola, tatear às cegas e apostar errado em um momento desses pode custar caro. “Se discuto no cafezinho da esquina ou na conversa de bar se a Terra é redonda ou não, a implicação prática pode ser muito pequena. Se sou uma autoridade e erro durante uma pandemia, a consequência é muito alta: pode custar a morte desnecessária de milhares de brasileiros”, diz Luz.

Um desafio que perpassa campos como teoria do conhecimento, ciência da informação e ciência de dados é a inclusão dos outros, os não-especialistas (não-pares) no xadrez das informações confiáveis e cientificamente comprovadas. “Talvez para combater fake news seja mais certeiro não simplesmente dizer é assim ou é assado ‘porque sim, porque eu estou dizendo que é e ponto final’, o que é um autoritarismo intelectual, logo inadequado. Mas buscar explicar por que é assim, isto é, expor estratégias para que as pessoas possam repensar seus próprios processos de justificação. É o papel clássico da educação, da ciência, da divulgação científica, da imprensa”, acrescenta. “Todo mundo deveria aprender a jogar o jogo da justificação.”