Pança de Burro
Primeiro romance da escritora Andrea Abreu resiste a comparações com Elena Ferrante e narra com estilo único a complexa relação entre duas jovens amigas
A amizade inevitável e uma admiração quase obsessiva na juventude. A receita que ronda a criação de duas jovens personagens femininas na literatura não tardou a gerar comparações entre o romance de estreia da escritora espanhola Andrea Abreu, “Pança de Burro” (Companhia das Letras, 2022), e a tetralogia napolitana da italiana Elena Ferrante.
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O cenário não é o de um bairro da periferia de Nápoles nos anos 1950, mas do interior de Tenerife no início dos anos 2000, numa região distante da sofisticação e dos hotéis que pontilham a orla da maior das Ilhas Canárias espanholas. Também longe da genialidade e fascínio literário que marcaram a amizade entre Lila e Lenu, o que a protagonista sem nome de “Pança de Burro” mais admira e inveja na amiga Isora é seu atrevimento, a precoce maturidade, sua capacidade de falar com pessoas velhas e a coragem de experimentar um tiquinho de tudo – “e depois, se fosse necessário, vomitava”.
É dessa relação próxima e complexa que nasce uma atração praticamente impossível de resistir. “Eu teria seguido ela ao banheiro, à boca do vulcão, com ela eu teria subido até ver o fogo adormecido, até sentir o fogo adormecido do vulcão dentro do corpo”, descreve a protagonista em determinado ponto da obra. O título dúbio descreve um fenômeno meteorológico característico da região, em que nuvens pesadas e baixas formam uma espessa camada sobre a terra.
Com uma narrativa centrada numa comunidade pobre e altamente conservadora, Abreu vai enfileirando temas como bulimia, menstruação, desigualdade, descoberta sexual e homofobia numa prosa marcada pela oralidade, pelas repetições e pelo feliz encontro de uma poética cotidiana que desafia as comparações fáceis, mostrando que um mero ponto de partida semelhante não é capaz de contê-la no quadrado de “nova Ferrante” que querem reservar a ela.
Tão atrevidinha, tão sem medo
Feito um gato. Isora vomitava feito um gato. Hurgh hurgh hurgh, e o vômito se precipitava na privada para ser absorvido pela imensidão do subsolo da ilha. Isso acontecia duas, três, quatro vezes por semana. Ela me dizia sinto muita dor aqui, e apontava para o meio do tronco, bem no estômago, com o seu dedo gordo e moreno, com a sua unha como se tivesse sido mascada por uma cabra, e vomitava como quem escova os dentes. Puxava a descarga, abaixava a tampa e com a manga da blusa, uma blusa quase sempre branca com estampa de melancia com sementes pretas, enxugava os lábios e continuava. Ela sempre continuava.
Antes, nunca fazia isso na minha frente. Me lembro do dia em que vi Isora vomitar pela primeira vez. Era a festa do encerramento do ano na escola e havia muita comida. De manhã, pusemos a comida em cima das mesas da sala de aula, todas grudadas umas nas outras, com bandeirinhas de festinha de aniversário em cima. Havia xitos, fandangos, palitinhos, amendoins doces, charutinhos de chocolate, sanduichinhos de pão de forma, rosquinhas de limão, suspiros, refrigerantes, fanta, clipper, sevenãpe, suquinho de caixinha de abacaxi e de maçã. Fingimos estar bêbadas dentro da sala de aula e íamos, Isora e eu, caindo pra lá e pra cá, agarradas uma no ombro da outra, como dois maridos que tivessem posto chifres nas suas mulheres e agora estavam arrependidos.
A festa acabou e chegamos ao refeitório e lá tinha ainda mais comida. As cozinheiras nos prepararam batatas com costela, pinhão e molho, a comida preferida da Isora. E quando passamos com a nossa bandejinha de metal, com o nosso guardanapinho, o nosso copinho de água (que suspeitávamos ser da torneira, embora na ilha não se pudesse beber) e os nossos talheres e os nossos iogurtes Celgán, as professoras no refeitório nos perguntaram se molho picante ou molho verde e Isora respondeu que molho picante, e eu pensei que atrevidinha, molho picante, e ela não tem medo de que seja apimentado, não tem medo de comer coisas de gente grande, e que eu queria ser como ela, tão atrevidinha, tão sem medo.
Nos sentamos à mesa e começamos a comer na velocidade com que as crianças se jogavam com as tábuas de San Andrés.* Não tinha pneus de borracha no fim da ladeira. Os jorros de molho deslizando pelo nosso queixo, as tranças engorduradas de tanto enfiar os cabelos dentro do prato, os dentes cheios de pedaços de milho e orégano, cacas de pomba branca, como Isora chamava a comida nos dentes. E enquanto engolíamos, eu já sentia uma tristeza como um estampido, uma agonia na boca do estômago, a boca seca como depois de ter comido leite em pó misturado com gofio** e açúcar. No verão, a gente não podia sair do bairro, a praia ficava longe. Não éramos como as outras meninas que viviam no centro da cidade, morávamos em meio à mata.
Isora levantou?se da cadeira e me disse shit, vamos até o banheiro.
Eu me levantei e a segui.
Eu teria seguido ela ao banheiro, à boca do vulcão, com ela eu teria subido até ver o fogo adormecido, até sentir o fogo adormecido do vulcão dentro do corpo. E eu a segui, mas não fomos ao banheiro do refeitório, e sim ao do segundo andar, onde não tinha ninguém, onde diziam que morava uma garota fantasma que comia o cocô das meninas que copiavam a lição de casa.
…depois de eu ver a sua perereca peluda feito uma samambaia se abrindo no solo da mata, ela se alongou sobre a louça da privada, esticou o dedo indicador e o do meio e enfiou na boca
Fiz xixi e me afastei para que Isora também fizesse. Ela fez e, depois de erguer a calça, depois de eu ver a sua perereca peluda feito uma samambaia se abrindo no solo da mata, ela se alongou sobre a louça da privada, esticou o dedo indicador e o do meio e enfiou na boca. Eu nunca tinha visto uma coisa assim. Embora na verdade naquela ocasião eu também não tenha visto. Me virei pro espelho. Escutei ela tossindo como um animalzinho miúdo e desnutrido, vi os meus olhos grandes, dois punhos refletidos no vidro. Minha cara assustada, um medo que mordia a minha pele por dentro, a garganta de Isora queimando e eu sem fazer nada.
Escutei o vômito.
Na minha cabeça, imaginei a correntinha de Nossa Senhora da Candelária pendendo do seu pescoço, pendendo sobre a água que depois arrastaria tudo o que ela tinha lançado.
*As tábuas de San Andrés (Las Tablas de San Andrés) são uma tradição da ilha de Tenerife (Canárias), celebrada pouco antes do dia de San Andrés, em 30 de novembro. Os participantes costumam se lançar em cima de tábuas de madeira do topo de ruas inclinadas.
** Gofio é um tipo de farinha das Canárias, feita de milho, trigo ou cevada torrados e, ocasionalmente, misturados com açúcar.
Só um tiquinho
Dona Carmen, a senhora faz sopa maggi, a de pacotinho?, perguntou Isora para a velha. Não, minha filha, por quê? Diz a minha avó que a sopa maggi é sopa de putas. Ah, minha filha, sei lá eu. A sopa que faço eu faço com as galinhas que tenho. Dona Carmen estava meio tantã, mas era boa. Quase todo mundo a menosprezava, porque, como dizia a minha avó, ela fazia coisas que eram o fim da picada. Dona Carmen se esquecia de quase tudo, passava longas horas caminhando e repetindo rezas que ninguém conhecia, tinha um cachorro com os dentes de baixo saltados pra fora, saltados pra fora como os de um camelo. Vira?lata, vira?lata, chispa daqui e que o diabo te carregue, ela dizia. Às vezes pousava a mão na cabeça dele com carinho; outras, gritava fora daqui, cachorro, fora daqui, cão dos infernos. Dona Carmen se esquecia de quase tudo, mas era uma mulher generosa. Gostava que Isora a visitasse. Morava pra baixo da igreja, numa casinha de pedras pintadas de branco com a porta pintada de verde e as telhas velhas e cheias de limo e de lagartos e de lona de sapatos trazidos de Caracas, Venezuela, e de verodes grandes como arvorezinhas. Dona Carmen se esquecia de tudo, menos de descascar as batatas, isso sim ela sabia, descascava em círculos, punha as batatas num canto e com uma faca de cabo de madeira tirava a casca delas como se fosse um enorme colar. Dona Carmen fazia batatas fritas com ovos para lanchar. Isora levava as batatas e os ovos da venda da sua avó e dona Carmen guardava um pouquinho pro lanche de Isora e se eu ia junto, ela também me dava. Ela me dava, mas de mim dona Carmen não gostava tanto quanto gostava da Isora, isso eu já sabia. Isora sabia falar com as pessoas velhas. Eu me limitava a ouvir o que diziam. Vocês querem um tiquinho de café, minhas filhas? Não me deixam beber café, respondi. Eu, sim, um tiquinho, disse Isora. Só um tiquinho. Ela, sempre só um tiquinho. Experimentava tudo. Uma vez comeu comida de cachorro da que havia na venda para saber como era. Ela experimentava tudo e depois, se fosse necessário, vomitava. Eu tinha medo de que os meus pais sentissem na minha boca o cheiro de café e me pusessem de castigo, mas Isora nunca tinha medo. Não tinha medo, embora a avó lhe ameaçasse dar uma surra. Ela pensava que a vida era uma só e que era preciso experimentar um tiquinho sempre que tivesse a chance. E um tiquinho de licor de anis, minha filha? Só um tiquinho. Só um tiquinho. Só um tiquinho, dizia.
Uma vez comeu comida de cachorro da que havia na venda para saber como era. Ela experimentava tudo e depois, se fosse necessário, vomitava
Isora bebeu a gotinha de café que restava na xícara da qual dona Carmen estava bebendo e, sem rodeios, esticou o braço para pegar o copinho que a velha tinha servido com Anís del Mono. Isora arrotou, arrotou umas cinco vezes seguidas. E depois bocejou. E nesse momento dona Carmen a segurou pelo queixo e olhou nos olhos dela, aqueles olhos verdes feito uvas verdes. Escavava os seus olhos lacrimosos como quem tira água de uma galeria. A velha ficou assustada: minha filha, você sabe se alguém tem inveja de você? Isora permaneceu imóvel. Por quê, dona Carmen? O que aconteceu? Minha filha, você tem mau?olhado. Vá, pelo amor de Deus, à casa da Eufracia, pra ela te benzer. Conte isso pra sua avó, que ela sabe dessas coisas e que ela te leve pra benzer.
Ao sair pela porta, estava passando a novela das cinco. A essa hora do dia, uma camada enorme de nuvens pousava sobre os telhados das casas do bairro. Não exibiam mais Pasión de Gavilanes, agora exibiam La mujer en el espejo. A protagonista era a mesma mulher que fez Gimena na Pasión, mas Isora e eu não gostávamos muito dela. Era junho, no bairro ainda não tinham posto as bandeirinhas coloridas das festas e ainda demoraria muito para que pusessem. Da janela da entradinha de dona Carmen dava pra ver o mar e o céu. O mar e o céu pareciam a mesma coisa, a mesma massa acinzentada e espessa de sempre. Era junho, mas podia ter sido qualquer outro mês do ano, em qualquer outra parte do mundo. Podia ter sido numa cidadezinha montanhosa do Norte da Inglaterra, um lugar em que quase nunca se visse o céu aberto e azul, azul, um lugar em que o sol fosse na verdade uma recordação distante. Era junho e fazia apenas um dia que as aulas tinham terminado, mas eu já estava sentindo essa exaustão imensa, essa tristeza de nuvens baixas sobre a cabeça. Não parecia verão. O meu pai trabalhava na construção e a minha mãe limpando hotéis. Eles trabalhavam no Sul e às vezes a minha mãe também ia limpar as casas de veraneio dos arredores, a minha casa ficava bem pertinho, em El Paso del Burro. Os meus pais saíam cedo pro Sul e voltavam tarde. Isora e eu ficávamos trancadas num conjunto de casas, pinheiros e ruas íngremes no alto do bairro. Era junho e eu estava sentindo tristeza. E agora, agora também medo.
Quando saímos pela porta da dona Carmen, um verme percorreu a minha garganta. Esse verme preto me dizia que eu já tinha, alguma vez, invejado Isora. Eu gostava da cor dos seus cabelos e dos seus braços. Gostava da sua letra. Ela fazia um g com um rabo gigante, que não permitia que se entendesse o que dizia a linha de baixo. Eu gostava dos seus olhos e de muitas outras coisas. Invejava o seu jeito de falar com as pessoas mais velhas. Ela era capaz de interromper as conversas e dizer não, a Moreiva é filha da Gloria, a da esquina, não da outra Gloria. Invejava os seus peitinhos redondos e macios feito uma jujuba com açucarzinho branco, embora ela mesma não gostasse deles. E porque ela tinha ficado mocinha e porque tinha pelos na perereca. Isora tinha bastante pelo preto, duro e pontudo como o gramado falso das casas de veraneio. Eu invejava ela por causa do seu cartucho de jogos para o gameboi, pirateado por um primo seu de segundo grau que mexia com informática e morava em Santa Cruz. Invejava ela porque o cartucho tinha o jogo do Hamtaro e eu adorava o jogo do Hamtaro.
Isora não tinha mãe. Vivia com a sua tia Chuchi e com a sua avó Chela, a dona da venda do bairro. De ela não ter mãe, disso eu não tinha inveja, pra falar a verdade. De ela não ter mãe e de ser cuidada pela tia e pela avó eu não tinha inveja, pra falar a verdade. Do que eu então tinha medo, na verdade, era de que dissessem a ela que eu lhe joguei mau?olhado. Chela, a avó da Isora, era uma mulher que acreditava muito nessas coisas. Se ficasse sabendo que eu tinha feito isso à neta, ia esmagar a minha cabeça.
Quando saímos pela porta da dona Carmen, um verme percorreu a minha garganta. Esse verme preto me dizia que eu já tinha, alguma vez, invejado Isora
- Pança de Burro
- Andrea Abreu
- Companhia das Letras
- 192 páginas
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