Trecho de Livro -- Luxúria - Gama Revista

Trecho de livro

Luxúria

Elogiado livro de estreia de Raven Leilani aborda numa linguagem ácida temas como relacionamentos, racismo e a busca por um lugar no mundo

Leonardo Neiva 24 de Setembro de 2021

Do alto de seus vinte e poucos anos, a jovem Edie tenta lidar da melhor forma que consegue com as grandes questões da sua vida: o trabalho editando livros infantis, que paga muito pouco; o apê em petição de miséria que divide com uma amiga; e o tesão que sente por Eric, um homem 23 anos mais velho, envolvido em um relacionamento aberto e com quem Edie tem saído há semanas — semanas que, para sua frustração, foram livres de sexo.

Essa é a receita inicial de “Luxúria” (Companhia das Letras, 2021), romance de estreia da escritora americana Raven Leilani, que aborda numa linguagem ácida, inteligente e divertida temas amplos como a juventude, relacionamentos amorosos modernos e a busca por um lugar no mundo, além de assuntos como identitarismo, racismo e política. Elogiado por autoras como Zadie Smith e Carmen Maria Machado, e eleito um dos melhores livros de 2020 pelos jornais New York Times e The Guardian, o livro representou para a autora de apenas 31 anos uma verdadeira entrada com os dois pés na porta na cena literária.

Apesar de ter publicado anteriormente alguns contos em revistas, foi em “Luxúria” que ficou claro o poder da prosa da escritora. Em meio às várias discussões que surgem ao longo das páginas, Leilani destaca o desejo sexual da protagonista, assim como o desequilíbrio de poder em uma relação com enormes diferenças de idade e situação financeira. Conforme Edie — que, assim como a autora, é negra — vai se aproximando do seio familiar de Eric, também começam a emergir tensões raciais, sociais e políticas.

Com trechos que por vezes soam irônicos e engraçados, por vezes dolorosamente reais e, em muitos casos, tudo isso misturado, “Luxúria” pode ser uma experiência difícil, por trazer à tona assuntos que batem muito próximo de casa, mas é também uma leitura praticamente impossível de abandonar.


Da primeira vez que transamos, ambos estamos de roupa, sentados diante das nossas mesas em horário comercial, mergulhados na luz azul da tela dos computadores. Ele está em Uptown Manhattan processando um novo lote de microfichas, e eu estou em Downtown batendo as emendas de um novo livro sobre um labrador detetive. Ele me conta o que comeu no almoço e pergunta se consigo tirar a calcinha na minha baia sem ninguém perceber. As mensagens que ele me manda têm pontuação impecável. Ele tem um carinho especial por palavras como sabor e revelar. O campo de texto vazio oferece inúmeras possibilidades. É óbvio que tenho medo de o pessoal da TI entrar no meu computador pelo acesso remoto, ou de o histórico do navegador acabar me rendendo mais uma conversa séria com o RH. Mas é que o risco. O frisson de um terceiro par de olhos ocultos. A possibilidade de alguém da empresa, em pleno otimismo pós-almoço, dar de cara com essas mensagens e ver a ternura com que eu e Eric construímos esse universo íntimo.

Na primeira mensagem, ele comenta que meu perfil tem alguns erros de digitação e me conta que o casamento dele é aberto. Suas fotos são desprendidas e espontâneas — uma meio pixelada dele dormindo na areia, outra, tirada por trás, enquanto faz a barba. É esta última que mexe comigo. O azulejo sujo e o desfoque delicado do vapor. O rosto sério no espelho em concentração silenciosa. Eu salvo a foto no meu celular para olhar depois no metrô. Mulheres espiam por cima do meu ombro e sorriem, e eu deixo acreditarem que ele é meu.

Ele me conta o que comeu no almoço e pergunta se consigo tirar a calcinha na minha baia sem ninguém perceber. As mensagens que ele me manda têm pontuação impecável

Fora isso, não tive muito sucesso com os homens. Não se trata de autocomiseração. São apenas fatos. Eis um fato: tenho peitos ótimos, que inclusive entortaram a minha coluna. Mais fatos: meu salário é muito baixo. Tenho dificuldade para fazer amigos, e os homens perdem o interesse por mim quando abro a boca. No começo tudo sempre vai bem, depois eu falo da minha torção ovariana ou do valor do meu aluguel de um jeito explícito demais. Eric é diferente. Duas semanas depois de começarmos a conversar, ele me conta do câncer que destruiu metade da sua família materna. Ele me conta de uma tia que ele amava e que fazia poções com pelo de raposa e cânhamo. Que ela foi enterrada com uma boneca de palha de milho que tinha feito inspirada em si própria. Apesar disso, ele descreve com um tom carinhoso a casa onde cresceu, as terras agrícolas que pipocam entre Milwaukee e Appleton, os piscos-de-papo-amarelo e os cisnes-pequenos que apareciam no quintal da casa dele procurando alpiste. Quando falo da minha infância, só falo da parte boa. A fita VHS de O mundo das Spice Girls que ganhei no meu aniversário de cinco anos, a Barbie que derreti no micro-ondas quando não tinha ninguém em casa. O contexto da minha infância — as boy bands, os lanches industrializados no recreio, o impeachment de Bill Clinton — só serve para realçar o abismo geracional entre nós, disso não há dúvida. Eric não gosta muito de falar da própria idade e da minha, e faz um esforço considerável para lidar com a diferença de vinte e três anos. Ele me segue no Instagram e deixa comentários verborrágicos nos meus posts. Uma mistura de gírias de internet que ninguém usa mais com observações sinceras sobre a forma como a luz bate no meu rosto. Em comparação às cantadas incompreensíveis dos homens mais novos, é um alívio.

Passamos um mês conversando até nossas agendas baterem. Tentamos nos encontrar antes, mas sempre acontece algum imprevisto. Esse é só um dos aspectos em que a minha vida é diferente da dele. Existem pessoas que dependem e às vezes precisam dele com urgência. Entre uma e outra ocasião em que ele cancela o encontro do nada, eu percebo que também preciso dele. Tanto que meus sonhos acabam se transformando em expressões delirantes de sede — um imenso deserto amarelo, catedrais cingidas de musgo pendente. Quando enfim conseguimos marcar o primeiro encontro, eu teria topado qualquer coisa. Ele quis ir ao parque Six Flags.

Decidimos sair numa terça-feira. Quando ele chega dirigindo o Volvo branco, eu ainda estou no meio do meu ritual pré-encontro, na parte em que tento descobrir a risada mais adequada. Experimento três vestidos antes de escolher o ideal. Amarro minhas tranças num rabo e passo delineador nos olhos. Tem louça na pia e um cheiro de peixe impregnado no apartamento, e não quero que ele pense que eu tenho alguma coisa a ver com isso. Coloco um conjunto de lingerie que está mais para um monte de fios do que para calcinha e sutiã e fico em pé diante do espelho. Penso comigo mesma: Você é uma mulher interessante. Você não é um punhado de hamsters embrulhados num invólucro de pele.

Quando enfim conseguimos marcar o primeiro encontro, eu teria topado qualquer coisa. Ele quis ir ao parque Six Flags

***

Lá fora, ele estaciona em fila dupla. Ele se apoia no carro e continua na mesma posição quando eu saio de casa; os olhos brilham e não se mexem. O cabelo dele é mais escuro do que eu imaginava, um tom de preto tão opaco que parece azul. O rosto é simétrico de um jeito quase assustador, apesar de uma das sobrancelhas ser mais alta que a outra, o que faz seu sorriso parecer um pouco metido. Estamos no segundo dia do verão, e nenhum dos poderes da cidade o atinge. Procuro a mão dele, tentando não engolir a língua, e sinto alguma coisa estranha. Sem dúvida o nervosismo pesa. Ao vivo ele é um coroa gostoso, com uma expressão atenta e rígida que só as leves entradas na testa suavizam um pouco. Mas essa sensação estranha não tem nada a ver com isso, não tem nada a ver com minha tentativa de ignorar a boca sensual e o nariz levemente torto dele para procurar algum sinal de que ele está tão nervoso quanto eu. É só que são oito e quinze e eu estou feliz. Não estou na linha L sentindo o cheiro da marmita azeda de alguém e querendo morrer.

“Edie”, eu digo, esticando a mão.

“Eu sei”, ele diz, acomodando os dedos longos entre os meus com uma delicadeza excessiva. Eu queria ser mais atirada, puxá-lo para um abraço simples e extrovertido. Mas o que acontece é esse aperto de mão flácido, essa fuga dos meus olhos, essa previsível e imediata rendição de poder. E então a pior parte dessa história de encontrar um homem em plena luz do dia, que é vê-lo vendo você, decidindo nesse milésimo de segundo se o provável sexo oral futuro será feito com entusiasmo ou desdém. Ele abre a porta, e há um dado azul de pelúcia pendurado no retrovisor. Um pacote de jujubas Jolly Ranchers pela metade no banco do passageiro. Na internet ele tem sido honesto, sempre com aquela sinceridade hesitante. No entanto, como já contamos as histórias que todo mundo conta num primeiro encontro, é mais difícil começar. Ele comenta sobre o calor e a gente começa a falar do aquecimento global. Depois de um tempo falando basicamente sobre morrer queimados, chegamos ao parque.

É difícil não pensar na diferença de idade quando você se vê rodeada pelos mais extravagantes símbolos da infância. Balões do Piu-Piu, os olhos de plástico e sem alma da pessoa fantasiada de Taz, sorvete em forma de bolinhas. Quando entramos pelo portão, sinto que o sol açucarado do parque é uma afronta. Aqui é lugar de criança. Ele me trouxe para um lugar de criança. Procuro no rosto dele algum sinal de que isso que é piada ou uma manifestação muito reveladora do nervosismo que ele sente quando pensa nos parcos vinte e três anos que eu passei no mundo.

A diferença de idade não me incomoda. Homens mais velhos têm uma vida financeira mais estável e uma percepção diferente do clitóris, mas, para além disso, o desequilíbrio de poder é uma droga muito potente. Assim como se ver no limbo doloroso que separa o desinteresse e a perícia da outra pessoa. O pavor que a pessoa sente da indiferença crescente do mundo. A revolta e o fracasso da vida adulta, canalizados para o esforço de reduzir o corpo de alguém, e nesse caso o seu, a partes brilhantes e elásticas.

Via de regra, eu evito tirar esse cabaço. Eu me recuso a ser a primeira mulher negra com quem um homem branco se relaciona

No caso dele, no entanto, parece que isso é novidade. Não só sair com alguém que não é a mulher dele e que é algumas décadas mais jovem, mas também sair com uma mulher que por acaso é negra. Eu percebo pela extrema cautela com que ele diz afrodescendente. Pela forma como ele jamais fala a palavra negra. Via de regra, eu evito tirar esse cabaço. Eu me recuso a ser a primeira mulher negra com quem um homem branco se relaciona. Não tolero as tentativas trêmulas dos brancos de cantar rap underground, a óbvia insistência na linguagem coloquial, a empáfia do homem cor-de-rosa que usa tecido estampado de Gana. Quando nos dirigimos aos guarda-volumes, vemos um pai e um filho vomitando atrás de um totem do Pernalonga. Abro meu guarda-volumes e tem uma fralda lá dentro. Eric percebe e chama um zelador. Ele se desculpa, e não parece se referir só à questão da fralda, mas muito mais à sua escolha de local e seus desdobramentos. Eu me sinto mal. Eu me sinto mal porque meu instinto inicial é lidar com os sentimentos dele, e não sugerir algum outro lugar. E porque nós dois vamos precisar tolerar, ao longo desse encontro, minhas tentativas de provar que Eu Tô Achando Legal! e que Não É Culpa Sua!

Produto

  • Luxúria
  • Raven Leilani
  • Companhia das Letras
  • 232 páginas

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