O Que os Psiquiatras Não te Contam
Em novo livro, a psiquiatra e neurocientista Juliana Belo Diniz desafia noção de que remédios podem substituir o poder da escuta para tratar transtornos mentais
Se você sofre com ansiedade, depressão, estresse, síndrome do pânico ou algum outro distúrbio dentre uma série de transtornos psicológicos existentes hoje, é bem possível que esteja tomando alguma medicação que ajude a aliviar os sintomas no seu dia a dia. Com a explosão de casos especialmente desde a pandemia, vem se tornando cada vez mais comum a visão de que transtornos mentais devem ser tratados da mesma forma que doenças físicas: exclusivamente com remédios. E é justamente essa noção crescente que a psiquiatra, psicoterapeuta e neurocientista Juliana Belo Diniz busca combater no livro “O Que os Psiquiatras Não te Contam” (Fósforo, 2025).
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“Neste livro, pretendo desmistificar o senso comum de que psiquiatras servem exclusivamente para receitar medicamentos e de que transtornos psiquiátricos são, por óbvio, doenças do cérebro”, ela aponta logo na primeira frase do texto introdutório da obra. Em vez disso, Diniz propõe, a partir da escuta, uma psiquiatria que seja mais humanizada, adensando a discussão em torno da saúde mental e ressaltando a importância das transformações sociais.
A psiquiatra, é claro, não descarta a importância dos remédios para o tratamento de transtornos mentais que seguem em alta na sociedade contemporânea. O que ela rejeita é a ideia de que a atuação do profissional deverá ser inteiramente substituída por fármacos — uma noção que já vem sendo inclusive internalizada por muitos pacientes, que chegam ao consultório esperando no máximo sair com uma receita em mãos.
Diniz destaca no livro a relevância de se criar um vínculo de confiança entre psiquiatra e paciente. Além disso, aponta que os medicamentos jamais serão capazes de resolver os fatores que geram certos distúrbios, com origem em contextos pessoais e até sociais que dificilmente vão embora de uma hora para outra. “Uma experiência como a perda de um ente querido, a consciência da finitude, ou então a percepção de limites antes ignorados”, exemplifica no trecho que Gama seleciona abaixo.
Na maior parte dos casos, não precisamos de grandes considerações teóricas ou exames sofisticados para determinar qual será nossa conduta em relação aos remédios. Em alguns casos, não precisamos de mais que dez minutos para saber qual remédio indicar.
No entanto, não conheço casos de tratamentos psiquiátricos eficazes baseados em consultas de dez minutos. Nenhuma consulta é igual a outra, toda história é singular. Eventualmente, temos que encaixar a singularidade do paciente no que conhecemos sobre o efeito dos remédios na população, mas isso, apesar de importante, não é o grosso do nosso trabalho. Ninguém vai tomar remédio para a cabeça se não confiar em quem prescreve; e se tornar confiável é muito mais desafiador do que decorar protocolos de tratamento. Modos de se tornar confiável não estão descritos, inclusive, em nenhum manual.
Para além de se tornar confiável, o ato da escuta tem um papel terapêutico que o remédio não pode substituir. O maior objetivo de uma consulta não é descobrir o que prescrever, é escutar. Escutar, deixando claro que estamos ali, nos esforçando para entender. Com isso, e com algumas perguntas pontuais, ajudamos quem nos procura a encadear a própria história, a se dar conta de que isso parece com aquilo e que o medo tem a ver com aquela outra coisa. Precisamos saber o que se espera e o que se teme, deixando claro que não vendemos milagres. Nem venenos. A meu ver, essa escuta, que permite ao paciente entender melhor o contexto dos seus sintomas, é tão importante para o sucesso do tratamento quanto a medicação — se não for mais.
Certa vez, fui procurada por um rapaz jovem, que havia sido diagnosticado com transtorno de pânico depois de ter ido parar no pronto-socorro jurando estar sofrendo um ataque cardíaco. Seu coração e sua saúde física, no entanto, estavam ótimos. No auge da carreira, tendo alcançado reconhecimento profissional e estabilidade financeira, fora tomado de intenso pavor e, sem entender por que, sentiu uma forte pressão no peito acompanhada de falta de ar e tontura; então concluiu que isso só poderia significar uma doença muito grave, possivelmente letal.
O ato da escuta tem um papel terapêutico que o remédio não pode substituir. O maior objetivo de uma consulta não é descobrir o que prescrever, é escutar.
Esse medo sem desencadeantes físicos ou emocionais evidentes é o que a psiquiatria convencionou chamar de ataque de pânico. Para quem sofre desse mal, a impressão é que os ataques vêm “do nada”. Não reconhecer imediatamente o desencadeante, no entanto, não significa que ele não exista, que não haja um gatilho. O trabalho de psiquiatras inclui tentar desvendar os desencadeantes.
Mas isso não era o que esse paciente tinha imaginado a partir da sua busca na internet por uma explicação. Havia chegado a ele a informação de que o coração poderia estar assim por conta do transtorno de pânico, uma doença da cabeça, e que era preciso ir ao psiquiatra e relatar seus sintomas para receber um remédio que resolveria o problema. Foi com essa expectativa que ele chegou ao meu consultório. Em dez minutos ele me contou os seus sintomas e ficou me olhando, aguardando ansiosamente por uma prescrição. No entanto, eu lhe pedi para me contar um pouco sobre sua vida. Ele estranhou a pergunta. Eu não queria mesmo saber o resultado dos seus exames ou qual era a sua frequência cardíaca?
Insisti que era importante que ele me contasse um pouco de sua história e o que estava se passando em sua vida. Aos poucos ele foi revelando ter crescido numa família em que a precariedade financeira e a insegurança emocional eram constantes, e que a partir dessa experiência havia acreditado que o sucesso material resolveria todos os seus problemas afetivos. Ele vinha tentando superar o drama familiar por meio dos estudos, do trabalho árduo e de inúmeros sacrifícios pessoais. Conforme relatava, ele se dava conta de que tinha criado a fantasia de que, alcançando a segurança financeira e profissional, “tudo” estaria resolvido. Mas, chegando lá, ele não encontrou as soluções que imaginara. Pelo contrário, realizar seus sonhos o pôs frente a frente com seus maiores medos: tudo que ele havia conquistado poderia ser perdido.
Mas essa história que parecia ser lugar-comum tinha algo de peculiar. Perto do final da consulta percebi que ele me contou sobre a mãe, a irmã, o chefe, colegas de trabalho etc., mas nada sobre o pai. Perguntei então diretamente a respeito desse personagem ausente. O pai havia abandonado a família quando ele era adolescente, o que foi um alívio, dada sua violência quando intoxicado pelo álcool e sua inépcia financeira, que sempre deixava as contas domésticas à beira do colapso. Uma semana antes do primeiro ataque de pânico, o pai desse paciente reapareceu na vida dele. Simplesmente ressurgiu, pedindo dinheiro emprestado.
Enxergar pacientes como listas de sintomas que devem ser encaixadas em alguma síndrome que nos indique qual o remédio adequado é não só raso, mas também brutal
O paciente havia acatado o pedido do pai e, mesmo assim, se sentia profundamente culpado por ter conseguido uma vida melhor que a daquele homem que o apresentou ao mundo. Desde o retorno do pai, vinha se sentindo esquisito, e foi a piora dessa sensação que ele associou ao primeiro ataque de pânico. A relação temporal era inegável, havíamos encontrado o gatilho. Esse rapaz não precisou de remédio para as crises: ele concluiu que não estava à beira da morte e que a melhor coisa a fazer era lidar com os fantasmas do passado.
É claro que esse é um caso raro, no qual uma única consulta consegue produzir um efeito terapêutico. Na maior parte das vezes, precisamos de muito mais tempo, e abdicar do remédio não é sempre uma opção. Pode até ser que esse mesmo paciente retorne pedindo pela medicação em algum momento, e dessa
vez talvez caiba de fato incluí-la, pois crises de pânico muito frequentes podem deixar a pessoa num estado tal que ela sequer consegue refletir a respeito da própria vida.
O que essa situação ilustra, no entanto, é o quanto a consulta psiquiátrica vai além do cérebro, e o quanto é prejudicial para o tratamento do sofrimento humano perder a escuta como ferramenta de trabalho. Enxergar pacientes como listas de sintomas que devem ser encaixadas em alguma síndrome que nos indique qual o remédio adequado é não só raso, mas também brutal. É operacionalizar algo que não é da ordem prática, é transformar médicos em técnicos e pacientes em cérebros ambulantes. É entender nosso sofrimento como um simples problema de engrenagem que precisa de um pouco de óleo para voltar a funcionar.
Essa forma de conceber os sintomas emocionais que acusa a estrutura ou o funcionamento do cérebro de ser o único responsável é partilhada por algumas das linhas atuais da psiquiatria, mais biologizantes. Elas alimentam essa expectativa com a qual esse rapaz me procurou, de apaziguar por completo estados de humor difíceis exclusivamente por meio de substâncias químicas ou manipulações cerebrais, do mesmo modo que se aplica insulina para um diabético ou se usam eletrodos para controlar os tremores da doença de Parkinson. Acreditam que se se restringirem ao estudo da bioquímica e da fisiologia do cérebro, encontrarão remédios e equipamentos para sanar o medo excessivo, a angústia, a tristeza fora de lugar e outros sentimentos desagradáveis que parecem não ter sentido.
Será que o problema está na ineficácia do remédio inicial ou será que há uma experiência humana pedindo para ser escutada e elaborada?
Para esses psiquiatras, tais alternativas terapêuticas ainda não existem apenas porque ainda não atingimos a compreensão completa do funcionamento cerebral. Eles sonham em poder culpar as células que compõem o cérebro pelo nosso mau comportamento; afinal, elas devem ter defeitos se alguma coisa está errada. Acham que, se existe um desequilíbrio de humor, ele só pode ser explicado por algum desequilíbrio químico, sem qualquer relação com o que se passa ao redor. E se há um desequilíbrio químico, ele pode ser consertado. De acordo com essa perspectiva, o incômodo exagerado irá desaparecer, dando lugar a uma vida plena de realizações. No extremo dessa linha de pensamento, se estamos infelizes, a culpa é exclusivamente do nosso cérebro, que seria uma entidade independente, separada de nós mesmos. Como se fosse essa maldita natureza imperfeita que nos torna seres tão limitados — portanto, precisamos aprimorá-la ou acabar com ela.
Mas esse é um desejo inalcançável. Há casos de síndrome do pânico, por exemplo, em que os remédios eliminam as crises, o paciente sente-se bem de início, mas continua carregando um desespero pela possibilidade de ter uma doença grave, ou então permanece uma sensação de que qualquer perda seria insuportável. Será que o problema está na ineficácia do remédio inicial ou será que há uma experiência humana pedindo para ser escutada e elaborada (e que, independentemente da ação dos remédios, sempre irá migrar para outro tipo de sintoma)? Uma experiência como a perda de um ente querido, a consciência da finitude, ou então a percepção de limites antes ignorados, o retorno de memórias difíceis que haviam sido recalcadas, ou ainda a sensação de desamparo diante do imprevisível… Experiências que historicamente permitiram que os seres humanos evoluíssem e motivaram as civilizações a erigirem deuses, templos, práticas de autoconhecimento, rituais mágicos, canções líricas, meios de comunicação com os mortos, epopeias, romances, tragédias, comédias…

- O que os Psiquiatras Não te Contam
- Juliana Belo Diniz
- Fósforo
- 256 páginas
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