Ciência Pouca É Bobagem, de Christian Dunker e Gilson Iannini — Gama Revista

Trecho de livro

Ciência Pouca É Bobagem

Em novo livro, psicanalistas Christian Dunker e Gilson Iannini se aprofundam na relação entre psicanálise e ciência em tempos incertos

Leonardo Neiva 08 de Dezembro de 2023

Ainda que tenha ganhado cada vez mais popularidade nas últimas décadas, a psicanálise hoje também vem se tornando alvo de constantes questionamentos. Ela é de fato uma ciência? Não passaria tudo de uma grande bobagem? A perguntas na maioria das vezes desinformadas como essas, os psicanalistas e professores Christian Dunker e Gilson Iannini acharam por bem responder em formato de livro. “Ciência Pouca É Bobagem” (Ubu, 2023) é o resultado dessa intensa reflexão e diálogo entre os pensadores.

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A proposta de discutir a relação entre a psicanálise e a prática científica parece cair como uma luva em tempos em que a ciência vem sendo posta em dúvida e até mesmo negada veementemente. “Muitas vezes, nosso sofrimento, quando não nossos sintomas, são apoiados em coisas que, aos olhos dos outros, parecem bobagens, ou tolices, ou esquisitices”, escrevem Dunker e Iannini na introdução da obra. “Não é o psicanalista aquele que se interessa pelos detalhes mais ínfimos, mais sutis, que não parecem nada evidentes?”

Contrariando as “soluções mágicas” que parecem se sobrepor cada vez mais à lógica e ao método, os autores propõem uma análise profunda e cuidadosa dessa relação, que existe desde o nascimento da própria psicanálise. Dialogando com alguns críticos históricos da psicanálise, como Wittgenstein, Popper e Grünbaum, a obra mostra a diferença clara entre questionamentos ponderados e bem fundamentados e os ataques infundados que o campo vem recebendo nos últimos tempos. Em “Ciência Pouca É Bobagem”, Dunker e Iannini constroem não necessariamente um tratado em defesa da psicanálise, mas um argumento original a favor do pensamento autorreflexivo e do debate intelectual sério.


O ditado de que “desgraça pouca é bobagem” foi recentemente atualizado para “doomscrolling”: na linguagem digital, trata-se de nosso impulso para visualizar mais e mais imagens de desgraças, ativado pela exposição a um primeiro caso que nos prende a atenção. Aparentemente a sabedoria popular conseguiu captar com essa máxima nossa tendência a esperar que logo depois de um infortúnio venha outro. É pouco provável que a expressão traduza um fato de ciência, por exemplo uma tendência misteriosa pela qual a positividade atrai a positividade e a negatividade atrai a negatividade. É mais provável que essa sabedoria remeta à nossa maneira de interpretar psicologicamente as mazelas de nosso destino. Como se, diante do azar, a mente humana criasse uma lei que tornasse nossa experiência explicável e compreensível, afastando, dessa maneira, a terrível hipótese alternativa de que “lá em cima definitivamente tem alguém que não gosta de mim”. Como se, diante de uma tragédia que desafia nossa capacidade de atribuir sentido às coisas do mundo, nós produzíssemos um viés de confirmação, pelo qual dominamos o que não pode ser dominado: a contingência, o acaso, a sorte, o indeterminado.

Mas quando dizemos que ciência pouca é bobagem aludimos ao fato de que, se a ciência se multiplicar como nós multiplicamos os acasos infelizes, para melhor nos defendermos deles, chegaremos ao estado em que a própria ciência se tornaria uma bobagem. Não há nenhum negacionismo nessa ideia, mas apenas a ironia de que nossa época frequentemente espera da ciência o que ela não pode dar. E é nesse ponto que “viramos o fio” de nossa confiança rumo ao cientificismo. O cientificismo não é ciência, mas excesso de confiança arrogante da ciência em si mesma.

“Pouca ciência é bobagem” apoia-se na ideia de que ciência é o principal antídoto para nossa ignorância, mas que se resolvermos usar tal antídoto em demasia ele se volta contra si mesmo, tornando-se um veneno. É assim com a palavra pharmakon, que quer dizer ao mesmo tempo remédio, quando aplicado na dose exata e com bons propósitos, e veneno, quando usado em demasia. A overdose de ciência transforma uma atitude justa, crítica e emancipatória em franca asneira. O termo “asneira” vem do latim asinus, “asno” e do preconceito aristotélico – que, aliás, foi a ciência da moda por quase vinte séculos! – de que os bípedes deveriam ser mais inteligentes do que os quadrúpedes, exceto se tivessem penas. Ademais, a ideia de burrada deriva do fato de que esse animal era chamado na Roma antiga de asinum burrum, “asno de cor avermelhada, castanha”. Burrum designava essa cor, vindo do grego “fogo”. Suspeita-se que “besteira” advém da generalização desse princípio para o animal selvagem, o animal em geral, a bestia. Surgia assim um problema. Os animais, sejam eles burros, asnos ou bestas, não falam, de tal maneira que não podem dizer tolices. Surgiu assim a noção de “baboseira”, ou seja, uma forma de nos referirmos àquele que baba como uma criança pequena, que ainda não consegue controlar a própria fala, ou como o estrangeiro e o bárbaro que não aprenderam a se comunicar na nossa língua. Como as crianças nascem apartadas do mundo dos adultos, diz-se que elas falam disparates, do espanhol despauterio e do latim disparatus, ou seja, separado, afastado, talvez no sentido de distante do senso comum. “Despautério” é sinônimo de absurdo ou tolice; respectivamente, desobediência às regras da lógica ou da sabedoria.

Nossa época frequentemente espera da ciência o que ela não pode dar

Chegamos assim à conjunção entre a ausência de fala dos animais e o começo da fala infantil dos humanos. Essa é a nascente do termo “bobagem”, ou seja, fala que balbucia, que ensaia, que é incipiente e iniciante, talvez repetitiva. Fala que deve ser excluída do debate público. Era assim que o paciente de Sigmund Freud conhecido como pequeno Hans se referia a seu sintoma, a fobia a cavalos, “meiner Blödsinn” (minha bobagem). Na história clínica de Hans, o termo “bobagem”, referindo-se ao seu sintoma, ocorre pelo menos uma dúzia de vezes: “foi assim que peguei minha bobagem”, dizia o menino. Ele sabia perfeitamente que cavalos, como burros, asnos e galinhas, esses bípedes emplumados, são seres pacíficos, que raramente mordem e que trabalham para os humanos carregando carroças e transportando pessoas. Ele sabia que não havia nenhuma razão, motivo ou causa razoável para sentir um medo apavorante daqueles animais. Mas ele sentia medo assim mesmo, da sua bobagem. Por mais absurda, despropositada e estúpida, a bobagem cavalar atrapalhava muito a vida de Hans. Ele não conseguia mais sair de casa, sonhava com cavalos, desenhava cavalos e imaginava se cavalos podiam ter bigodes. Tudo certo, tudo resolvido, tudo acabado na ciência dos cavalos, mas na hora de sair de casa, nada feito: há cavalos lá fora. Quase todos na família de Hans disseram que aquilo era um absurdo e um desatino, ou seja, uma falta de discernimento, sagacidade ou tino. Outros argumentaram que Hans sofria de uma mera tolice moral, ou seja, algo que havia destruído seu juízo, sua cognição e sua capacidade de pensar. Mas Hans sabia tudo sobre cavalos e era muito inteligente, apesar da sua bobagem. Ele estava se tornando inepto e inadequado porque uma vez que não conseguia sair de casa não ia mais à escola e assim foi perdendo outras aptidões. Hans não havia ficado louco, estulto ou parvo, ele apenas tinha sido dominado por um pensamento e por um sentimento que ele mesmo achava uma bobagem.

Cem anos depois da bobagem do pequeno Hans é a psicanálise que é chamada de bobagem, e posta ao lado de outros “absurdos que não merecem ser levados a sério”. Assim como a psicanálise levou a bobagem do pequeno Hans a sério, hoje se trata de não recuar diante das bobagens de pseudoepistemólogos. O presente livro se aproveita dessa bobagem para mostrar como são construídos juízos desse tipo e por que a noção de pseudociência não se aplica à psicanálise. Ainda que não se possa dizer com segurança se a psicanálise é uma ciência e em que termos — até mesmo porque não há consenso sobre o que definiria, afinal de contas, uma ciência —, nos esforçaremos, num primeiro momento, para falar a língua de nossos críticos. Isso a fim de mostrar que a atribuição irresponsável de absurdos e bobagens a outros saberes, longe de contribuir para um debate racional consequente, responde muito mais a uma agenda moral e a uma disputa mercadológica, mal disfarçada em discussão epistemológica. Ao colocar-se na divina posição de tribunal da ciência do outro, é muito fácil escorregar para o caminho perigoso que desqualifica o saber de crianças, estúpidos, estrangeiros, burros, loucos, tolos – que deveriam ser excluídos da conversa dos adultos ou perseguidos como uma ameaça à saúde pública e privados de suas verbas públicas para pesquisa e atuação.

Cem anos depois, é a psicanálise que é chamada de bobagem, e posta ao lado de outros ‘absurdos que não merecem ser levados a sério’

Além do mais, quem se ocupará das “bobagens” que nos fazem sofrer? Muitas vezes, nosso sofrimento, quando não nossos sintomas, são apoiados em coisas que, aos olhos dos outros, parecem bobagens, ou tolices, ou esquisitices. Não é o psicanalista aquele que se interessa pelos detalhes mais ínfimos, mais sutis, que não parecem nada evidentes?

Muitas pessoas entendem que sonhos, atos falhos, sintomas, inibições e demais formações do inconsciente não passam de bobagens. Besteiras cujas causas, motivos ou razões não é preciso investigar, pois eles não passam de epifenômenos do funcionamento cerebral, ainda que não se tenha descrito exatamente como os circuitos de memória, atenção ou pensamento atuam sobre a forma como atribuímos sentido, significação ou significado ao mundo e a nós mesmos. Como erros que não devem ser levados a sério, tais desvios cognitivos poderiam ser corrigidos pelo treinamento do pensamento. Seria possível assim evitar tais bobagens que não merecem interesse da ciência. Diante de tais fenômenos é preciso ativamente não querer saber, negando-lhes relevância, hipóteses ou explicações. Foi pensando dessa forma que nos vimos desprevenidos diante de um fenômeno tão simples como o negacionismo, que em tese deveria ser corrigível pelo esclarecimento, pela informação e pela confiança na ciência. Surgiu assim a necessidade de explicar cientificamente por que as pessoas resistem a acreditar no que deveriam acreditar. Por que desenvolvem um apego prazeroso e obstinado a crenças que por outro lado elas sabem ser falsas? Por que abandonam a própria razão em troca da obediência a um líder carismático? Nosso desprezo pela força das bobagens e nossa desatenção aos processos percebidos como irracionais, tolos e desprovidos de sentido custou caro demais. Isso não significa que seja necessário aderir a qualquer teoria, visão de mundo ou discurso disposto a entender sua natureza, função ou origem.

Em uma época na qual é preciso fazer esforços significativos para convencer parte da população a se vacinar contra a covid-19, que matou mais de 5 milhões de pessoas ao redor do mundo, das quais pelo menos 600 mil no Brasil, é compreensível que queiramos avaliar nossas crenças e rever nossas práticas. Afinal, quando foi que perdemos nossa capacidade de distinguir uma crença provavelmente verdadeira de outra claramente falsa?

Nas últimas décadas a confiança na autoridade de cientistas e especialistas diminuiu de forma considerável. Curiosamente, essa atitude reticente resulta em parte do reconhecimento de que também a ciência é atravessada por interesses, redes de financiamento comportando relativo dissenso e competição nem sempre pautada apenas pela busca da verdade. A imagem do cientista ascético, vestindo avental branco e pronunciando vereditos monológicos sobre como devemos nos comportar, tornou-se obsoleta. Em paralelo a isso, explicações maniqueístas para assuntos complexos cresceram no ritmo de nosso mergulho nas redes sociais. E, de uma hora para outra, parece que as evidências não são mais tão evidentes assim; estão aí os terraplanistas que não nos deixam mentir.

De uma hora para outra, parece que as evidências não são mais tão evidentes assim; estão aí os terraplanistas que não nos deixam mentir

O fato que deveria nos surpreender é que não são pessoas iletradas que se opõem à vacina ou que contestam o caráter antropogênico da mudança climática. Ao contrário, são pessoas que passaram por anos e anos de educação científica, que estudaram matemática desde a mais tenra infância, que receberam doses cavalares de física, química e biologia no ensino médio e que ganham a vida como médicos, advogados, psicólogos, engenheiros, dentistas, economistas e assim por diante. Diante de um quadro desolador como esse, é imprescindível o papel da divulgação científica de qualidade, embora o conhecimento não imunize ninguém contra os interesses afetivos.

Produto

  • Ciência Pouca É Bobagem
  • Christian Dunker e Gilson Iannini
  • 192 páginas
  • https://www.ubueditora.com.br/ciencia-pouca.html

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