Trecho de Livro: Império da Dor, Patrick Radden Keefe — Gama Revista

Trecho de livro

Império da Dor

Jornalista Patrick Radden Keefe investiga em livro a história de uma família pioneira na publicidade de remédios, cujas táticas geraram efeitos trágicos

Leonardo Neiva 03 de Abril de 2023

Quantos remédios você conhece pelo nome? E quais já viraram na sua cabeça sinônimos de tratamento para um determinado sintoma ou doença? Interessado em como os medicamentos chegam e, ainda mais importante, são divulgados e vendidos para nós, o repórter da reviste New Yorker, Patrick Radden Keefe, mergulhou fundo nesse universo para investigar a história da publicidade de remédios. Uma narrativa que acaba coincidindo com a ascensão de três irmãos médicos no período pós-Segunda Guerra Mundial: Raymond, Mortimer e Arthur Sackler.

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No livro “Império da Dor” (Intrínseca, 2023), Keefe conta como Arthur foi o principal responsável pela estratégia comercial e de publicidade do tranquilizante Valium, que acabou fazendo a fortuna da família Sackler. Antes disso, como aponta o autor, as campanhas de medicamentos controlados costumavam ser bastante genéricas, sem exibir detalhes como a marca do produto e com pouca diferenciação entre um remédio e outro. “Então, para vender medicamentos, ele criou campanhas que chamavam a atenção diretamente dos clínicos, pondo anúncios atraentes em revistas especializadas e distribuindo materiais impressos em consultórios”, narra em determinado ponto da obra.

O maior problema ocorreu quando, 40 anos depois, Richard, filho de Raymond, aplicou a mesma estratégia na hora de lançar no mercado o OxyContin, um analgésico com potência superior à da morfina. Apesar dos lucros bilionários da droga, ela também gerou uma crise de saúde pública, conhecida como a epidemia dos opioides, que causou a morte de centenas de milhares de pessoas. É essa história, entremeada às complicadas relações familiares dos Sackler e suas práticas corporativas no mínimo duvidosas, que o jornalista explora nas mais de 500 páginas do livro-reportagem, em tradução de Bruno Casotti e Natalie Gerhardt. “A saga de suas vidas e a dinastia que estabeleceriam era também a história de um século do capitalismo americano”, escreve Keefe.


Med Man

Em 1949, um anúncio incomum apareceu em várias revistas médicas. “Terra bona”, dizia em letras marrons grossas sobre um fundo verde. Não estava claro o que Terra bona significava — nem, aliás, se havia algum produto específico a ser vendido. “A boa terra dá mais ao homem do que apenas pão”, dizia a legenda, observando que novos antibióticos descobertos no solo tinham tido sucesso em prolongar a vida humana. “No isolamento, na seleção e na produção desses agentes vitais, um papel notável tem sido desempenhado pela… Pfizer.”

Durante quase um século, a Chas. Pfizer & Company, sediada no Brooklyn, foi uma modesta fornecedora de substâncias químicas. Até a Segunda Guerra Mundial, empresas como a Pfizer vendiam seus produtos a granel, sem o nome da marca, quer para outras companhias, quer para farmacêuticos (que misturavam as substâncias). Então, no início dos anos 1940, a introdução da penicilina iniciou uma nova era dos antibióticos — medicações fortes que podem interromper infecções causadas por bactérias. Quando a guerra estourou, as tropas americanas precisaram de grandes quantidades de penicilina para administrar nos soldados, e empresas como a Pfizer foram recrutadas para produzir o medicamento. A guerra mudou para sempre o modelo de negócio dessas empresas químicas: elas passaram a produzir em massa não apenas substâncias químicas, mas também medicamentos finalizados, prontos para serem vendidos. A penicilina era um remédio revolucionário, mas não era patenteada, o que significava que qualquer um podia produzi-la. Como nenhuma empresa tinha o monopólio, o medicamento permaneceu barato e, portanto, não particularmente lucrativo. Então a Pfizer, encorajada, começou a procurar outros remédios que pudesse patentear e vender a um preço maior.

Essa foi a era da “droga milagrosa”: os anos pós-guerra foram marcados pelo boom da indústria farmacêutica, e havia um otimismo generalizado quanto ao potencial das inovações científicas em desenvolver formulações químicas inéditas que iriam conter mortes e doenças e gerar lucros incalculáveis para os fabricantes. A mesma promessa utópica que os Sackler vinham pregando no Creedmoor — a ideia de que qualquer enfermidade humana poderia, um dia, ser curada com uma pílula — estava começando a se disseminar pela cultura em geral. Nos anos 1950, a indústria farmacêutica americana lançava um novo medicamento quase toda semana.

Esses novos tratamentos eram conhecidos como “drogas éticas”, uma designação reconfortante, que significava que não eram uma poção de bruxa comprada numa caçamba; eram medicamentos vendidos apenas para médicos — e receitados por eles. Mas, como havia muitos produtos novos, as empresas farmacêuticas recorriam a anunciantes a fim de encontrar maneiras criativas de fazer com que médicos e pacientes conhecessem suas inovações. O presidente da Pfizer era um executivo jovem e dinâmico chamado John McKeen. Sua empresa acabara de desenvolver um novo antibiótico registrado como Terramicina, em homenagem ao nome da cidade de Terre Haute, Indiana, onde os cientistas da Pfizer haviam supostamente isolado a substância química em uma amostra de solo. McKeen acreditava que, se o medicamento fosse bem comercializado, poderia decolar de verdade. Ele queria fazer uma distribuição massiva a atacadistas e hospitais, então recorreu a uma agência pequena de Nova York especializada em publicidade farmacêutica. A agência se chamava William Douglas McAdams. Mas seu proprietário — e quem lidou com a conta da Pfizer — era Arthur Sackler. “Se me derem dinheiro, tornarei famosos o nome Terramicina e o de sua empresa”, disse Arthur a McKeen e seus colegas.

Nos anos 1950, a indústria farmacêutica americana lançava um novo medicamento quase toda semana

William Douglas McAdams era um ex-jornalista de Winnetka, Illinois, que trabalhou para o St. Louis Post-Dispatch antes de abandonar a carreira em 1917 para se dedicar à publicidade. De início, ele teve uma agência tradicional, anunciando uma série de produtos, de aveia Mother’s a feijão Van Camp’s. Mas uma de suas contas era a do óleo de fígado de bacalhau fabricado por uma empresa farmacêutica, a E. R. Squibb. McAdams teve uma ideia: a Squibb poderia vender mais se o produto fosse comercializado diretamente para médicos. Então ele pôs um anúncio numa revista médica. Funcionou. As vendas aumentaram e, no fim dos anos 1930, McAdams decidiu focar exclusivamente no setor farmacêutico. Em 1942, ele contratou Arthur Sackler.

Arthur ainda não tinha trinta anos na época, mas já passara metade de sua vida no mercado publicitário quando McAdams o contratou — Arthur fora lançado à maturidade pela Grande Depressão, vendendo e redigindo anúncios para custear o ensino médio, a faculdade e a escola de medicina. Além da formação médica, ele tinha uma forte sensibilidade visual e habilidade com a linguagem. Tinha também o dom de cultivar mentores. Assim como se tornara aprendiz de Van O. na psiquiatria, fez o mesmo com McAdams (ou “Mac”, como o chamava) na publicidade. Arthur podia ser o candidato ideal à vaga de emprego, mas agradeceu a Mac por contratá-lo, porque considerava a indústria de publicidade na Madison Avenue “um clube proibido” para judeus. Com olhos claros e cabelo louro, Arthur podia se passar por gentio, o que acontecia ocasionalmente. Mas era sensível ao antissemitismo, que era difundido, mesmo em Nova York.

Oficialmente, o trabalho na McAdams era de meio expediente, pois Arthur já tinha um emprego de período integral no Creedmoor. Então, à noite e nos fins de semana, ele passava longas horas nos escritórios da agência de publicidade no centro de Manhattan. Mas a oportunidade de combinar seus interesses em medicina, marketing e produtos farmacêuticos provou-se irresistível, e Arthur prosperou na McAdams. O marketing de drogas éticas era um negócio sério por tradição, sobretudo quando comparado a outros tipos de publicidade. Enquanto os executivos criavam campanhas alegres para cigarros, carros e cosméticos, as de medicamentos controlados eram em sua maioria genéricas, não exibiam o nome da marca, e havia pouca diferenciação entre os produtos. Além disso, medicamentos não são apelativos. Como vender um comprimido?

A resposta de Arthur foi adotar o entusiasmo sedutor da publicidade tradicional — textos cativantes, imagens chamativas — e vender diretamente para o público de influenciadores: aqueles que receitavam os medicamentos. Arthur herdara dos pais uma reverência pela profissão médica. “Eu preferiria colocar a mim e minha família sob o julgamento e à mercê de um companheiro médico do que do Estado”, gostava de dizer. Então, para vender medicamentos, ele criou campanhas que chamavam a atenção diretamente dos clínicos, pondo anúncios atraentes em revistas especializadas e distribuindo materiais impressos em consultórios. Percebendo que os médicos eram mais influenciados por seus colegas, convocou profissionais proeminentes para endossar os produtos. Para os médicos, era como colocar a foto de uma celebridade na embalagem. Sob a direção de Arthur, empresas de medicamentos citavam estudos científicos (que com frequência haviam sido financiados pelas próprias empresas) como prova da eficácia e da segurança de cada novo remédio. John Kallir, que trabalhou com ele durante dez anos na McAdams, relembrou: “Os anúncios de Sackler tinham um olhar muito sério, clínico — um médico falando para um médico. Mas era publicidade.”

Medicamentos não são apelativos. Como vender um comprimido?

Arthur podia ser arrogante, sobretudo quanto à nobreza da medicina, mas tinha sagacidade e imbuiu seu trabalho de um sentido de brincadeira e descontração. Um anúncio de Terramicina emulava um exame de vista no consultório do oftalmologista.

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A TERRAMICINA
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Dois anos depois de Arthur começar a trabalhar na McAdams, Mac o promoveu a presidente da agência. A Pfizer era um cliente grande, e Arthur lidava diretamente com a conta, indo à sede da empresa, no nº 11 da Bartlett Street, no Brooklyn, para se encontrar com o próprio John McKeen. (Nos bastidores, Arthur se referia a essas excursões como visitas à “cova do leão”). Arthur era, nas palavras de um contemporâneo, “um homem de ideias sem paralelo”. E a Terramicina era um novo tipo de antibiótico — um medicamento de “amplo espectro”. Os primeiros antibióticos eram classificados como de espectro estreito, o que significa que eram feitos para tratar males específicos. Mas então novas drogas foram desenvolvidas para tratar um conjunto cada vez maior de distúrbios. Para uma empresa farmacêutica, essa era uma estratégia lucrativa: um empresário não quer um produto de nicho; quer vendê-lo para o maior número possível de pacientes. O termo “amplo espectro” parece clínico, mas na verdade foi cunhado por publicitários: entrou na literatura médica com a campanha que Arthur fez para a Terramicina.

Aquele primeiro anúncio vermelho e verde com os dizeres “Terra bona” nem sequer mencionava a Terramicina. O que Arthur estava vendendo de fato era a promessa de um novo produto e a informação de que seria fornecido pela Pfizer. Arthur sabia, intuitivamente, que o nome da marca era tão importante quanto o do medicamento e prometera tornar a Pfizer, com seu exótico P mudo, um nome famoso. O teaser — anúncio que dá uma pista, com grande alarde, da iminente chegada de um novo produto — já havia sido empregado em outras áreas do marketing. Mas até Arthur Sackler usar o formato para a Terramicina, isso nunca havia sido feito em publicidade farmacêutica.

Um empresário não quer um produto de nicho; quer vendê-lo para o maior número possível de pacientes. O termo “amplo espectro” parece clínico, mas foi cunhado por publicitários

Produto

  • Império da Dor
  • Patrick Radden Keefe
  • Intrínseca
  • 544 páginas

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