Trecho de Livro: O Púlpito, de Anna Virginia Balloussier — Gama Revista

Trecho de livro

O Púlpito

Mesclando entrevistas e experiências pessoais, a jornalista Anna Virginia Balloussier mergulha na ascensão dos evangélicos em novo livro

Leonardo Neiva 05 de Abril de 2024

Como colocar numa única definição, explicar de forma simples, o fenômeno que representam as igrejas evangélicas em suas inúmeras denominações no Brasil? Uma fatia dos brasileiros, aliás, que saltou de 2,6% em 1940 para 26% em 2022, segundo o Datafolha. Em seu novo livro, “O Púlpito” (Todavia, 2024), a jornalista especializada em religião, política e direitos humanos Anna Virginia Balloussier vai no caminho contrário dos reducionismos e explicações falsamente simplificadas para falar do fenômeno evangélico. Pelo contrário, reconhece que qualquer abordagem limitada ou preconceituosa seria incapaz de representar na totalidade uma religião cuja presença de templos no território nacional aumentou mais de 228% nas últimas décadas.

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Embora tenha convivido com evangélicos boa parte da vida, a autora deixa claro que não faz parte de suas fileiras. Isso, no entanto, não a impede de lançar um olhar lúcido sobre os crentes e a sua fé. Por meio de entrevistas com personalidades do movimento, das lideranças ao anonimato dos fiéis, Balloussier traça um panorama da religiosidade muito mais rico do que o habitual, dando voz a um segmento social historicamente menosprezado, mas que vem cada vez mais ganhando atenção e impondo sua presença na sociedade.

O que a obra deixa claro é que é impossível — e até inoportuno — ignorar ou diminuir a crescente influência do segmento religioso que mais avança no país, com forte impacto em temas como casamento, sexualidade, aborto e prosperidade financeira. Esse efeito ideológico e social sobre os brasileiros a autora de “Talvez Ela Não Precise de Mim” (Todavia, 2020) descortina por meio de uma visão muitas vezes interna e emocional mas também panorâmica, apresentando uma narrativa histórica da fé evangélica no país que explora a fundo suas convicções religiosas, morais e políticas.


Empreendedorismo

Silas Bitencourt não quer ninguém para baixo nesta noite. “O Levanta Varão é um estimulante sexual que fiz voltado para o público gospel”, diz sobre o produto que anuncia como o principal patrocinador do espetáculo.

O frasco acomoda sessenta cápsulas tingidas de corante azul, para lhes garantir a mesma coloração do Viagra. A fórmula contém cafeína, taurina, guaraná e maca peruana. Assemelha-se a outros suplementos alimentares que prometem elevar a disposição do público consumidor, e, nesse caso, a de um membro bem específico dele. “Eu precisava lançar, porque muitos crentes não iam de repente entrar numa sex shop e comprar produtos assim”, Silas explica.

Entre evangélicos, “varão” é um termo de lastro bíblico comumente empregado para se referir ao homem temente a Deus. A contrapartida feminina é “varoa”. Ambos viraram pronomes de tratamento nas igrejas, quase tão populares quanto “irmão” e “irmã”. Quando promete levantar o varão com suas pílulas energéticas, Silas mira muito além do trocadilho. Ele sabe que o mercado gospel é uma terra de oportunidades, e está decidido a não perder nenhuma.

Pergunto se ele já testou o estimulante. “Não, e nem posso”, responde com uma gargalhada que acentua os três grandes sulcos espremidos entre as sobrancelhas, como uma miniatura do Grand Canyon. “Eu sou terrível, Virginia. Misericórdia, Jesus, tenho que me segurar.”

Silas não se segura. Está metido num paletó de cetim preto que combina com o sapato que um amigo lhe trouxe de Boston, um modelo de bico fino coberto de strass, a pedra sintética que emula diamantes para quem não pode pagar por um. É a estreia do Culto da Resistência, que o showrunner vende como o primeiro reality show gospel do Brasil. Transmitido em redes sociais, o programa se desenrola num único dia, numa casa na periferia de Sorocaba (SP), em setembro de 2021. A pandemia ainda é uma realidade, mesmo que ninguém ali pareça muito preocupado com ela. São cem participantes no total.

Quase todos os patrocinadores que o sr. Bitencourt lista são ligados às marcas que criou em torno de si. O Levanta Varão, por exemplo, é da Biten Saúde. Tem também a Biten Records, sua gravadora. Mas veja bem. “Eu digo que o primeiro patrocinador, o primeiro de todos, é o Pai, o Filho e o Espírito Santo de Deus”, diz Mary Hellen Bitencourt, cantora, influencer, empresária, pregadora e, nesta noite, uma das apresentadoras do evento. Silas a apresenta como sua esposa. “Meu bebê.”

O primeiro patrocinador, o primeiro de todos, é o Pai, o Filho e o Espírito Santo de Deus

Sentada num sofá estofado com o derrame cromático de Romero Britto, ela conta como, cinco meses antes, o marido idealizara um reality show inspirado nas provas de resistência do Big Brother Brasil. Nelas, os adversários passam por apertos físicos e psicológicos, muitas vezes durante horas, até surgir um vencedor. Silas propõe assim: uma centena de concorrentes precisa segurar xixi, sentir fome e sede enquanto escuta pregações e louvores oferecidos em rodízio por convidados.

A maratona de provações começa pouco antes da meia-noite de uma sexta-feira, num salão sem ar-condicionado, com uma cadeira colada na outra e um púlpito à frente. A disputa só vai terminar no fim da tarde do dia seguinte, com os finalistas de pé em volta do Renault Kwid prometido para o último resistente — as opções são levar o carro ou receber um Pix no valor de 25 mil reais na hora.

Entre os que disputam o prêmio há um ex-jogador do Palmeiras (Wendel), dois contratados do SBT (a cantora Mara Maravilha e o mágico Ossamá Sato, de A Praça É Nossa), uma pastora que é fenômeno virtual (Patricia, com cinco milhões de seguidores no Facebook) e Chiquinho Homem de Ferro (sósia osasquense do herói da Marvel). Também comparece Mister M, o ilusionista mascarado que revelava segredos do ofício num quadro do Fantástico, no fim dos anos 1990. A presença do personagem interpretado pelo americano Val Valentino “mostrou a força da empresa, que, mesmo sendo gospel, queria trazer um participante conhecido internacionalmente”, segundo Silas. “O povo veio com tudo: os tops, os pops, os bilionários, os famosos do gospel.”

O reality atrasa e alguns competidores, irritados com o calor e com a demora, começam a se estranhar. Mara Maravilha acusa um oponente de transgredir regras ao beber água e ameaça ir embora. Vai, mas volta. Reaparece com uma garrafinha de água e dá goladas em teatral provocação. Rivais se queixam.

Silas não está feliz. Como um professor exasperado com a bagunça em sala de aula, tenta se impor sobre o rebuliço no salão. Gotas de suor escorrem por suas têmporas e empapam o cabelo crespo, com mechas grisalhas que colonizam também o cavanhaque. Passa um sabão no grupo: “Que vergonha, trabalhei tanto por este momento. Acabou a brincadeira. Vamos calar a boca agora, em nome de Jesus”.

Por volta das nove horas da manhã de sábado, ainda há 62 pessoas no páreo. A louvação continua, agora do lado de fora. Os resistentes migram do salão fechado onde vararam a madrugada para um pátio ao ar livre, sob forte sol. Não podem se mexer. Um a um, eles vão abandonando a competição. Mara pede para sair no fim da manhã. No meio da tarde, temos vinte fiéis na luta. Silas sai para dar um cochilo.

Hoje os evangélicos são mais de 60 milhões no país. Um latifúndio de gente que por muito tempo se viu sub-representada na mídia e nos espaços de consumo

Na volta, o pastor fica pasmo com o pessoal que persevera. Já são dezessete horas de resistência. Chega. O mestre de cerimônias propõe que os finalistas dividam o prêmio e acabem logo com a sevícia coletiva. Nada feito. “Vocês vão cair, vão bater a cabeça, vão morrer”, ameaça os que ficam. Silas não aguenta mais. Abaixa, varão. “A direção do evento tentava o tempo todo conscientizar que, fazendo isso [aceitando rachar os 25 mil reais], eles também poderiam sair dali como vencedores”, ele vai me contar depois de tudo terminar. “Era sofrimento demais.”

No fim, catorze obstinados topam a partilha do pão. Levam 2500 reais cada um, quase 130 reais por cada hora que suportaram. Tudo acaba com fogos de artifício, “para não deixar nada a desejar aos realities milionários que passam na TV”, diz o idealizador do programa. “Graças a Deus. Já pensou eu lá até agora? Misericórdia.”

Silas não consegue estar em um só lugar. Tem uma lista extensa de projetos que inclui um serviço de engajamento em redes sociais, que vende pacotes de cinquenta comentários e curtidas por 250 reais, e um canil virtual, o Rei do Lulu, “o maior site especializado em compra e venda de filhotes de lulus-da-pomerânia”. Sua expertise, contudo, reside em cartografar carências no mercado vibrante, mas muitas vezes amador, do gospel.

Não é pouca coisa. Hoje os evangélicos são mais de 60 milhões no país Um latifúndio de gente que por muito tempo se viu sub-representada na mídia e nos espaços de consumo. Não estavam nas novelas, tampouco nas pautas jornalísticas — salvo em reportagens com alguma denúncia embutida. Tinham fome de produtos adaptados para seu paladar evangelizado, mas nenhuma grande marca estava disposta a saciá-los. Pipocavam ali e acolá algumas exceções, mas só para confirmar a regra do fenômeno de massa alijado da esfera pública. O jeito foi criar uma indústria paralela para fabricar oferta para tanta demanda.

É aí que entram empreendedores como Silas. Ele começou analógico no ramo. Tinha em Santo André (SP) uma pequena rede, a Livraria Evangélica Bitencourt, e o jornalzinho impresso BitenNews, que durou de 2002 a 2005. É uma salada gráfica, com várias fontes, cores e efeitos disputando na mesma página o olhar do leitor.

Silas penou na juventude. “Eu era o mais feinho da turma, todo desdentado”, diz, jactando-se das lentes de contato dentais que hoje ostenta. “Quando uma irmã toda torta entrava, os irmãos gritavam: ‘Chegou a bênção do Silas’.” Mas ele não caía na pilha e preconizava que sua bênção “seria branquinha, porque sou negão, e todo negão gosta de branquinha”.

É um povo difícil, um povo que não se ajuda. Se um puder puxar o tapete do outro, puxa

O primeiro contato de Silas e Mary Hellen só aconteceu porque a coisa começou a feder. Uma sobrinha bebê da então adolescente de dezesseis anos precisava trocar a fralda, e ela e a cunhada entraram numa das filiais da Livraria Evangélica Bitencourt, que ficava num shopping. A jovem notou a placa de PRECISA-SE DE VENDEDORA. No dia seguinte já estava no batente.

Quem deu em cima foi ela. Começaram a namorar em 2002 e se casaram três anos depois, na Vivano Steak, uma churrascaria em São Caetano do Sul (SP) com minipalmeiras na entrada. “Interditamos a rua porque eu sempre fui metido.” Ali Silas ainda faria alguns eventos de sua carreira empresarial, como certas edições do prêmio Melhores do Ano Gospel, com a entrega de um fac-símile da estátua do Oscar.

Mary Hellen cantava na igreja, mas ele traçou uma estratégia para alçá-la ao primeiro escalão desse circuito musical. Pôs o plano em ação na mesma época em que sua livraria foi à falência, na rabeira dos anos 2000. Estava sedento por novos desafios, mas sem um tostão no bolso. Ele conta que, certo dia, passou de garganta seca pela orla da Praia Grande, no litoral paulista, e reparou nos ambulantes que vendiam água. Calculou: uma garrafinha comprada por 25 centavos do revendedor podia ser repassada por dois reais nas ruas da cidade praiana. “Para a glória do Senhor, juntei 15 mil reais em um mês.” Uma média de 280 águas por dia, pelas suas contas.

Mary Hellen lançou O relógio de Deus em 2012, e dezenas de outros álbuns na sequência. Colocou megahair e consertou os dentes. Foi aos programas do Ratinho e do Raul Gil. Nunca chegou a ser do primeiro time das cantoras cristãs, mas serviu de laboratório para o marido ir testando as águas do segmento. E elas não são dóceis. “Essa missão do gospel eu encaro como missão mesmo, algo que Deus me chamou para fazer. É um povo difícil, um povo que não se ajuda. Se um puder puxar o tapete do outro, puxa, igualzinho ao secular.”

Produto

  • O Púlpito: Fé, poder e o Brasil dos evangélicos
  • Anna Virginia Balloussier
  • Todavia
  • 208 páginas

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