As missões evangélicas e o contágio de covid nas comunidades indígenas — Gama Revista
De quem é a causa indígena?
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© Denilson Baniwa

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Reportagem

Missões contemporâneas elevam risco de contágio

Em meio à pandemia, missionários evangélicos tentam entrar em comunidades indígenas isoladas. Para lideranças, além de contaminação, fake news são preocupação

Leonardo Neiva 01 de Agosto de 2021
© Denilson Baniwa

Missões contemporâneas elevam risco de contágio

Em meio à pandemia, missionários evangélicos tentam entrar em comunidades indígenas isoladas. Para lideranças, além de contaminação, fake news são preocupação

Leonardo Neiva 01 de Agosto de 2021

Em meio a uma multidão de indígenas sentados no chão ou no alto de árvores, amamentando crianças, apontando ou aparentemente atônitos com o que estão vendo, um padre levanta um cálice em frente a uma grande cruz de madeira. Se a descrição parece familiar, é porque é. Corresponde à pintura “Primeira Missa no Brasil”, do artista caterinense Victor Meirelles (1832-1903), obra que marca presença em apostilas escolares e acabou se tornando um símbolo do processo de catequização dos indígenas brasileiros por padres jesuítas.

Séculos depois, todo esse processo de conversão dos povos tradicionais à religião católica costuma ser visto por antropólogos e estudiosos como um triste apagamento da cultura e da religiosidade indígena, que condiz com sua dizimação no território nacional. O que não significa que hoje a realidade tenha mudado tanto assim.

Até hoje, são 57 mil casos de covid-19 entre os indígenas e 1,1 mil mortos, segundo dados do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena

São cada vez mais comuns, inclusive, os relatos de aldeias sob a influência de grupos evangélicos. No atual período de pandemia, têm chamado ainda mais a atenção tentativas de religiosos de estabelecer contato com comunidades isoladas, principalmente devido ao risco elevado de contágio. E relatos apontam até mesmo para missionários que tentam convencer famílias indígenas a não se vacinarem contra a covid-19.

Até hoje, são 57.415 casos confirmados de covid-19 entre os indígenas do país e 1.144 mortos, segundo dados do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena. Para o cálculo, a organização, formada por lideranças do campo indígena, leva em conta informações coletadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde e o Ministério Público Federal. O comitê contesta a contagem feita pela Sesai, que considera apenas aqueles que vivem em aldeias — oficialmente, até hoje são 749 óbitos.

Victor Meirelles / Museu Nacional de Belas Artes

A lei ou a Bíblia

O que regula a ação dos missionários não é a Constituição Federal, mas a Bíblia, diz Paulo Dollis Barbosa, indígena da etnia Marubo. “A falta de respeito desses missionários com a nossa organização, pregando suas ações doutrinárias nas aldeias, vai contra nossos princípios culturais, nossa organização social e inclusive interfere nos modos de vida do nosso povo”, afirma Paulo, que é coordenador-geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), na Amazônia, onde existe a maior concentração de povos isolados no mundo.

Segundo ele, a atuação de evangélicos entre as comunidades da região vem de longa data e só foi interrompida após denúncia ao Ministério Público. Uma das principais estratégias para converter povos se dá por meio dos jovens, conta. Na maioria dos casos, prometem bolsas de estudo e trabalho remunerado na aldeia, o que ajuda a trazer as famílias para o seu lado.

Quando essas pessoas têm acesso aos territórios, falam coisas absurdas para dificultar que os indígenas aceitem as vacinas

Invasões desse tipo, diz Paulo, têm crescido na esteira da frágil fiscalização institucional na região. Também há uma carência de dados que torna difícil saber se há infectados pela covid-19 devido a esses contatos.

O coordenador da Univaja confirma também que a presença de missionários tem levado a uma disseminação de fake news entre as comunidades. Uma das principais é a exercida para que não tome vacina. Segundo Nilcélio Rodrigues, do povo Jiahui e coordenador-secretário da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a ameaça de virar jacaré não é apenas meme, mas uma forma real usada pelos missionários para amedrontar as populações tradicionais.

“Quando essas pessoas têm acesso aos territórios indígenas, falam coisas absurdas, dificultando que os mesmos aceitem as vacinas disponibilizadas pelo sistema de saúde nas aldeias.”

“Durante o período de pandemia, eles continuam induzindo lideranças e recrutando jovens”, afirma Paulo, da Univaja. “Não desistirão porque precisam chegar aos isolados com sua missão de libertação.”

Povos não alcançados

Entre os grupos religiosos que buscam uma posição de influência nas aldeias indígenas, a principal incidência é de evangélicos neopentecostais, diz Carolina Santana, assessora jurídica do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI). Muitos dentro da religião têm, inclusive, desenvolvido pesquisas e teorias acadêmicas sobre o tema. “São teorias relacionadas com a violação de preceitos básicos da política indigenista, como o não contato”, conta a assessora.

Elas classificam os isolados como povos não alcançados. Hoje vemos missionários usar essa expressão, que ainda alcançados pela palavra de Deus

Ela declara que a criação de métodos acadêmicos vem como forma de tentar justificar o discurso da evangelização. “Elas classificam os isolados como povos não alcançados. Hoje vemos muitos missionários usando essa expressão, dizendo que serão ainda alcançados pela palavra de Deus. A ideia é que, enquanto a última pessoa da Terra não ouvir a palavra, que consideram a verdadeira, ninguém vai se salvar.”

Antes do governo Bolsonaro, o contato com comunidade isoladas costumava ser muito mais restrito, diz Carolina. A autorização para ir à aldeia simplesmente nunca era concedida. No máximo, pesquisadores e jornalistas poderiam adentrar terras compartilhadas com outros povos, sob a condição de não causar nenhum tipo de perturbação às populações isoladas.

Um dos motivos é justamente o epidemiológico. Não porque o organismo do indígena vivendo em isolamento seja diferente do nosso, mas sim porque não tomam vacinas e são muito mais suscetíveis às doenças que podemos levar até eles. Além disso, há também uma questão de autonomia. “Eles preferem permanecer dessa maneira. Podem não estar dialogando diretamente com a gente, mas deixam claro qual é a posição deles.”

Lei e ordem

A principal preocupação hoje, continua a representante da OPI, é a alta presença de evangélicos neopentecostais, que estão dispostos a mudar as regras de convívio com os indígenas, em cargos do Poder Executivo no governo Bolsonaro. O que inclui até instituições como a Funai e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Carolina conta que essa articulação política, junto às bases aliadas do governo no Congresso, tem usado o momento da pandemia para encontrar brechas na atual legislação, que inibe a entrada de pessoas de fora em aldeias isoladas.

Um exemplo seria a lei 14.021, de julho de 2020, que incluiu na política para comunidades indígenas isoladas ou de contato recente um parágrafo que permite às missões religiosas permanecerem presentes em suas terras desde que avaliadas pela equipe de saúde responsável. A legislação também permite o contato com esses povos “em caso de risco iminente”.

“Essa lei é flagrantemente contrária à política indigenista nacional e internacional em relação aos povos isolados”, afirma a representante do OPI. Em parceria com a Apib, a assessora entrou inclusive com uma ação de inconstitucionalidade no STF contra a legislação.

© Denilson Baniwa

Uma nova ameaça

Um projeto de lei que hoje tramita na Câmara pode significar risco ainda maior para os povos isolados, aponta Carolina. O PL 490, que deve tornar mais frágeis os limites dos territórios indígenas caso aprovado, também pode facilitar o caminho para quem pretende se infiltrar no seio de aldeias que têm pouco ou nenhum contato com habitantes externos.

“Na prática, o projeto permite que o Estado terceirize o contato em casos de interesse público”, diz a assessora. E explica: “Durante a construção da usina de Belo Monte, quem mediou o contato entre os povos isolados da região e a empresa Eletronorte foi a Funai. Se o projeto for aprovado, em um caso como esse, a Funai poderia em tese terceirizar a questão para a própria Eletronorte. Assim, a empresa tomaria todas as decisões, inclusive de fazer ou não e como fazer contato com os povos isolados”.

Presumir que os isolados não têm uma religião própria, que é preciso ensinar a eles, é de uma arrogância brutal

Embora o exemplo de Belo Monte já esteja no passado, há outras situações semelhantes envolvendo terras indígenas e grandes empreendimentos no Brasil hoje, lembra Carolina. Todas elas devem ser afetadas de alguma forma caso a legislação seja aprovada.

A representante do OPI diz ainda que o governo costuma usar o argumento de que a religião é uma forma comprovada pela Organização Mundial da Saúde para melhorar o estado de saúde de pessoas doentes. “Mas presumir que os isolados não têm uma religião própria, que é preciso ensinar a eles uma que venha de fora da sua cultura, é de uma arrogância brutal.”

Cálculo difícil

A entrada de missionários em terras indígenas se tornou mais comum durante a pandemia porque eles costumam ser encarados como prestadores de ajuda humanitária, diz Nilcélio, da Coiab. O problema, em suas palavras, é que muitas vezes trazem consigo influências que não estão de acordo com o modo de vida daqueles povos e acabam por modificar seus costumes e crenças.

A própria falta de informações sobre o que vem acontecendo e a forma de agir dos religiosos dentro das comunidades, segundo ele, é um dos principais pontos de atenção. “Por isso ficamos preocupados e não estamos de acordo com a entrada de qualquer igreja nos territórios e comunidades indígenas.”

Entram sem respeitar o modo de vida de nossos parentes que não querem contato com a sociedade, só viver sem ter invadidas suas terras

Embora hoje seja bastante complexo avaliar o impacto das mudanças promovidas pelo atual governo sobre as comunidades isoladas — afinal, elas não estão disponíveis para que se faça a análise necessária —, Carolina diz estar claro que houve sim contatos, no plural. E não se sabe se houve cuidados com a saúde dos indígenas ou mesmo estudos para se certificar de que não foram infectados.

Outro grande problema é a falta de fiscalização nessas regiões. Segundo a representante do OPI, a Sesai já admitiu em uma reunião recente que não tem pessoal suficiente para cuidar das barreiras sanitárias impostas pelo STF para proteger esses povos. O que pode facilitar e muito a entrada não só de missionários religiosos, mas também de exploradores interessados nas terras indígenas.

“Os impactos aos povos isolados são muitos, ainda mais com o aliciamento das missões de igrejas”, aponta Nilcélio. “Entram sem respeitar o modo de vida de nossos parentes que não querem contato com a sociedade, só viver da forma que vieram ao mundo. Sem doenças e sem ter invadidas suas terras, onde convivem com a natureza.”

A Gama, a assessoria da Missão Novas Tribos do Brasil, organização de missionários religiosos, afirmou não atuar junto a povos isolados. A instituição também disse que todos os seus missionários estavam fora das aldeias desde março de 2020, mas alguns já voltaram ao trabalho a convite de determinadas comunidades, amparados pela lei 14.021. A revista também procurou a Sesai e a Funai para esclarecimentos, mas não teve retorno.

A arte que ilustra a reportagem

Essa reportagem é ilustrada por obras do artista plástico Denilson Baniwa. Indígena do povo Baniwa, Denilson é um dos principais artistas da cena contemporânea brasileira, além de ativista pelos direitos indígenas.  Também um dos principais nomes a abrir caminho para artistas indígenas no cenário nacional.

Na obra “Nativity”, que abre o texto, um jovem indígena é representado como o Messias, nos braços de Maria. A Gama, Denilson fala sobre como era obrigado a ir à igreja contra a vontade quando jovem. “Certa vez, li numa revista que a imagem em que eu acreditara a vida toda era irreal. Jesus era negro.” Ele diz que faz sentido, pois era difícil conceber a imagem eurocêntrica do Jesus branco acabando morto numa cruz. Ao mesmo tempo, afirma que os indígenas brasileiros foram forçados a aceitar religiões dos brancos, hoje presentes no cotidiano da maioria deles. “De repente a gente podia repensar pelo menos as imagens que temos desse Jesus. Quem sabe seria menos doloroso aceitar uma imagem que parecesse mais conosco do que com quem nos colonizou? Que tal um Jesus Indígena?”

Sobre a outra obra, “A Amazônia É uma Invenção”, um texto de livro rasurado e com uma mensagem poderosa, o artista aponta para o fato de que toda história é inventada. “Mas também há um sentimento debochado ao ler estes livros que transformaram nossos territórios em romances idílicos, onde nasceram Iracema e Peri; ou homéricos, só que ao invés de ciclopes temos feras e exércitos de índios canibais que atacam as embarcações dos Ulisses colonizadores.”

Ele ressalta também que a história segue sendo contada pelo ponto de vista branco. “Não os alcançamos antes e a cada dia a distância parece ser maior. Não temos gráficas nem livrarias para contra-atacar, nossos editores amigos estão com eles e, por mais ‘marxistas’ que sejam, não querem ser despejados de suas quitinetes com aluguéis atrasados.”