Eu tive escolha? — Gama Revista

Jovens e também evangélicos Uma série de quatro textos da jornalista Débora Aleluia. Ela, que é evangélica, ouviu depoimentos de outros jovens para criar os relatos a seguir. Nessa costura de diferentes histórias e experiências, ela mostra um pouco do que é seguir a religião hoje no Brasil

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Eu tive escolha?

Débora Aleluia 11 de Setembro de 2020

Na fé evangélica, há diferentes tipos de gênesis. Onde tudo começa. No descrito na bíblia, o início está em uma família. Não Adão, Eva e seus filhos, como a cultura ocidental gosta de enfatizar; mas um Pai, um Filho e um Espírito Santo, que tudo criaram. É essa trindade que costumamos conhecer nos nossos gênesis pessoais, ou literalmente “começos”, como prefiro traduzir. Há quem comece ouvindo falar primeiro sobre Jesus, mas há uma coisa que se repete nos inícios da fé cristã: a formação de uma família.

Alguns, como eu, são conhecidos como “evangélicos de berço”, aqueles que já nascem inseridos em um lar cristão protestante, onde os limites entre religião e família muitas vezes são difíceis de discernir. As orações, os louvores, as reuniões pastorais e os quizzes sobre versículos na Escola Bíblica Dominical — com perguntas capciosas capazes de definir desde a infância quem são os nerds bíblicos e quem não é capaz de saber o que está escrito em João 3:16 — parecem não estar apenas restritos à igreja, mas se estendem até a mesa de almoço na casa da sua avó.

E uma questão principal nos guia: sou cristão porque eu quero ou porque cresci nesse meio?

Para nós não há muita escolha, já nascemos com uma grande estrutura familiar: os “irmãos” da igreja e os parentes de sangue, todos filhos do Pai — Ele — que gosta de criar famílias. No entanto, a fé evangélica não é hereditária, assim, toda a constituição familiar e sua diversificada formação se torna uma escolha, que na vida dos “evangélicos de berço” é reafirmada, refeita ou simplesmente deixada de lado ao longo dos anos.

Ao contrário do que parece, é preciso tanta coragem para deixar de lado essa família, como para reafirmá-la. Em ambos os caminhos, a fé opera unindo seus principais componentes, o afeto e a razão. E uma questão principal nos guia: sou cristão por que eu quero ou por que cresci nesse meio?

Colocar na balança as dores e os amores da vivência religiosa é um processo que praticamente atinge todos os jovens evangélicos de berço, sendo leve para alguns, pesado demais para outros. Com medo de perder a fé, muitos tentam evitar os motores naturais para essa crise dentro da religião. Novos amigos, estudos, faculdade e diálogos nos levam para fora da bolha religiosa. Contudo, para aqueles que construíram relações sólidas e respeitosas de comunidade, fé e afeto, essa mistura pode ser proveitosa. Seja qual for o caminho decidido, as raízes permanecem.

Em minhas sessões de terapia, frequentemente escuto o psicanalista me perguntar: “Quanto da igreja ainda mora em você?”. Hoje, sem frequentar qualquer instituição, sei que o que permanece em mim é o afeto que me fez voltar às minhas famílias, tanto a de sangue, como a adquirida na fé evangélica. Apesar dos dogmas e instituições, nunca perdemos coisas simples ensinadas a nós.

Colocar na balança as dores e os amores da vivência evangélica é um processo que praticamente atinge todos os jovens evangélicos de berço, sendo leve para alguns, pesado demais para outro

Quando eu era criança, meus pais costumavam ouvir dicas de pastores sobre criação de filhos. Por causa disso, sempre tivemos tempo de lazer juntos, realizávamos pequenos momentos de culto em família antes de dormir e louvávamos nas noites livres em casa. Acredito que boa parte do meu caráter foi moldado nesses simples momentos.

Além de ainda repetir esses rituais, hoje percebo no meu comportamento os traços afetivos que a fé me trouxe, principalmente na construção de relacionamentos. A família sempre me mostrou que os exemplos de Jesus não necessariamente culminam na igreja. Na verdade, qualquer ideia que eu tenho sobre Ele vai além das quatro paredes de um templo porque o vi em outras vidas.

Dizem que é preciso ter um vilarejo inteiro para criar uma criança; a igreja é um. Na sociedade ocidental, dificilmente a criação em uma religião cristã é vista como algo negativo; às vezes como algo equivocado, mas quase nunca repulsivo. Para quem cresceu em periferia, mesmo para aqueles que são únicos cristãos em sua família, as comunidades de fé são bem-vindas, são novos apoios, esperança no meio do caminho, ajuda financeira, cestas básicas, impulso para o estudo, alívio de mães que, ainda que não comunguem da fé evangélica, vêem na igreja a proteção para a violência e o crime ao qual seus filhos estão diariamente expostos.

Embora este vilarejo também possa ser um curral, ser jovem e manter a sua fé evangélica é uma opção consciente que une a mística da crença e a racionalidade da escolha. Diferentemente do que é muitas vezes apresentado, essa comunidade de fé não é feita apenas de homens brancos velhos e conservadores, mas de uma família que já se provou inúmeras vezes ser muito diversa, contando com as novas perspectivas da juventude e com as coisas boas que já nos foram ensinadas para recriar vilarejos abertos a inúmeras possibilidades. Quando a fé permite os gênesis — a juventude, os recomeços, os caminhos com mais esperança, o ingresso na universidade, os apoios mútuos e o afeto — novas famílias são criadas.

As pessoas ouvidas para compor este relato não quiseram ter seus nomes revelados.

Débora Aleluia tem 22 anos, é jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco e “evangélica de berço”. Atualmente ela faz parte da Igreja Mangue, no centro do Recife, e se articula com movimentos sociais ligados à igreja evangélica, como a Escola de Fé e Política Martin Luther King Jr.

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