O Almanaque de Fran Lebowitz
Conhecida por aqui pelo documentário do amigo Martin Scorsese, a comediante tem seus textos publicados pela primeira vez no Brasil
Até pouco antes de o cineasta Martin Scorsese lançar a série documental “Faz de Conta que NY É uma Cidade”, que ela estrela com brilhantismo, Fran Lebowitz talvez pudesse ser condecorada com o título de maior comediante norte-americana a ser ainda uma ilustre desconhecida no Brasil. A forma como o diretor retrata em tela a amiga de longa data, no entanto, despertou um interesse por aqui não só na interessantíssima persona da escritora e atriz, mas também em sua arte, desembocando no lançamento de um livro como “O Almanaque de Fran Lebowitz” (Todavia, 2022).
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Ler a obra da artista, porém, não é tarefa fácil, principalmente porque não há muito para ler. Tendo lançado apenas três livros na vida, Lebowitz nunca tinha sido publicada antes no Brasil. Um dos motivos para essa tímida escrita da comediante é o bloqueio criativo que a acompanha há quase três décadas, o que, em suas palavras, transforma o trabalho de seu editor no “mais fácil da cidade”. A escritora que não escreve, apelido dado pelo admirador Gregorio Duvivier, até chegou a iniciar vários livros, mas não concluiu nenhum desde 1994, ano em que publicou pela última vez – um volume infantil sobre um panda gigante nova-iorquinho que sonha viver em Paris.
Este autodeclarado almanaque se incumbe de introduzir o leitor brasileiro ao trabalho da autora, reunindo textos de seus primeiros livros “Metropolitan Life” (1978) e “Social Studies” (1981). Conhecida por um humor ácido e extremamente observador, Lebowitz não tem só Scorsese como amigo ilustre. Os textos que aparecem no livro foram originalmente publicados na revista Interview, de Andy Warhol, de quem ela também era próxima. Desde um estudo sobre os prós e contras de aguentar crianças até uma ode à sua soneca de lei – passando por uma contundente reclamação contra o fato de que um escritor precisa de fato escrever –, a comediante folheia os dilemas que rondam a raça humana de forma bem-humorada e ligeiramente amarga, em doses muitas vezes cavalares de realidade.
Crianças: A favor ou contra?
Circulando como eu faço no que podem ser considerados, com muito boa vontade, círculos artísticos, vejo a presença de crianças como uma casualidade pouco frequente. Entretanto, mesmo no mais artístico dos circuitos estão presentes em suas periferias edições limitadas dos tenazmente domésticos.
Como eu, em geral, gosto bastante de crianças, aceito essa condição com muito menos sofrimento do que meus amigos mais refinados. Isso não quer dizer que eu me deixe seduzir por qualquer sorrisinho, mas apenas que me coloco numa posição de inquestionável objetividade e, portanto, eminentemente qualificada para lidar com a questão como uma autoridade.
Pelo extraordinário número de crianças que vemos por aí, fica a impressão de que as pessoas as geram por qualquer motivo, sem pensar duas vezes — já que se elas dessem a devida atenção a essa questão, certamente agiriam com maior decoro. É claro que, até agora, os pais e as mães em potencial nunca haviam tido a oportunidade de analisar os fatos com total clareza e, portanto, não podiam ser responsabilizados por completo por seus atos. Com esse objetivo, compilei cuidadosamente todas as informações pertinentes ao assunto com a esperança fervorosa de que isso resulte num futuro populado por um grupo de crianças muito mais interessantes do que as que conheci até então.
Pelo extraordinário número de crianças que vemos por aí, fica a impressão de que as pessoas as geram por qualquer motivo, sem pensar duas vezes
A favor
Preciso questionar a expressão “apenas uma criança”, uma vez que, na minha experiência, a companhia de apenas uma criança é invariavelmente preferível à companhia de apenas um adulto.
Crianças costumam ter uma estatura pequena, o que as torna muito úteis para alcançar lugares de difícil acesso.
Crianças não sentam umas ao lado das outras nos restaurantes para discutirem seus planos ridículos para o futuro num tom de voz elevado.
Crianças fazem perguntas melhores que as dos adultos. “Posso comer um biscoito?”, “Por que o céu é azul?” e “Como é que faz a vaca?” são muito mais propensas a arrancar uma resposta entusiasmada do que “Cadê o seu manuscrito?”, “Por que você não me ligou?” ou “Quem é o seu advogado?”.
Crianças personificam o conceito de imaturidade.
Crianças são os melhores adversários para jogar Scrabble, pois são, ao mesmo tempo, fáceis de vencer e divertidas de enganar.
Ainda é muito possível estar em uma multidão de crianças e não detectar no ar o menor traço de loção pós-barba ou colônia viril e excitante.
Nunca um membro do grupo dos menores de idade propôs a criação da palavra CEOzinho.
Crianças dormem ou sozinhas ou com pequenos animaizinhos de pelúcia. A genialidade por trás desse comportamento é inquestionável, uma vez que ele as priva do aborrecimento colossal que é se tornar o guardião das confissões sussurradas de outra pessoa. Ainda não me deparei com um ursinho que escondesse um desejo secreto de usar um uniforme de empregada.
Crianças não sentam umas ao lado das outras nos restaurantes para discutirem seus planos ridículos para o futuro num tom de voz elevado
Contra
Mesmo logo após se lavar e afastadas das guloseimas mais populares, crianças têm uma tendência a serem grudentas. A única conclusão possível é que isso tem alguma coisa a ver com o fato de elas não fumarem o suficiente.
Crianças definitivamente não têm muito bom gosto para moda e, quando deixadas à sua própria sorte, muitas vezes escolhem peças de roupa de péssimo caimento. Nesse sentido, elas não diferem tanto assim da maioria dos adultos, mas, por algum motivo, é mais fácil acusá-las.
Crianças respondem de forma inadequada a um humor sardônico e a ameaças veladas.
Notoriamente alheias a mudanças sutis de humor, crianças costumam insistir em debater a cor de uma betoneira recém-avistada muito tempo depois que o interesse de qualquer outra pessoa no assunto esfriou.
Crianças raras vezes se encontram numa posição em que possam emprestar uma quantia realmente interessante de dinheiro. Há, entretanto, exceções, e tais crianças dão excelentes convidados para qualquer festa.
Crianças acordam em horários indecorosos e, em geral, querendo colocar comida num estômago vazio.
Crianças não ficam bem na maioria dos vestidos de festa.
Com muita frequência, crianças estão acompanhadas por adultos.
Crianças raras vezes se encontram numa posição em que possam emprestar uma quantia realmente interessante de dinheiro. Há, entretanto, exceções
- O Almanaque de Fran Lebowitz
- Fran Lebowitz
- Todavia
- 288 páginas
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