Lélia Gonzalez
Uma das maiores pensadoras da atualidade, Sueli Carneiro resgata a trajetória da escritora e ativista, cuja obra vem sendo cada vez mais estudada
Um dos retratos mais completos de uma das grandes ativistas e escritoras brasileiras do século 20, feito por uma das grandes ativistas e escritoras brasileiras da atualidade. Assim pode ser descrito “Lélia Gonzalez: Um retrato” (Zahar, 2024), livro em que a também filósofa e doutora em educação Sueli Carneiro explora a fundo a história de vida, a obra e o legado de Gonzalez (1935-1994), autora cuja relevância vem se tornando cada vez mais central para os debates sobre raça, gênero e classe no Brasil.
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Carneiro lança mão de uma extensa pesquisa, baseada em livros, cartas e documentos, para resgatar a biografia da escritora — uma mulher cuja trajetória se torna ainda mais impressionante por se passar numa época em que não havia ações afirmativas no país e o mito da “democracia racial” ainda era aceito como formador da nossa sociedade. Filha da classe trabalhadora em Belo Horizonte, foi no Rio de Janeiro que Gonzalez acabou se tornando um verdadeiro norte dentro do movimento negro e feminista a partir do século passado. “Para uma mulher negra, era uma experiência catártica estar diante de Lélia Gonzalez”, descreve Carneiro.
Desafiando a noção de que os problemas enfrentados pelas pessoas negras no Brasil era apenas de responsabilidade delas, reforçado pela mídia de então, a ativista lutou a vida inteira contra o discurso de apagamento do racismo existente no país. Com uma história que reflete a de muitas outras mulheres brasileiras até hoje, a obra mostra como seu engajamento no movimento negro e feminista traduziu o anseio por uma transformação social pautada na garantia de direitos à população negra. O livro traz também uma carta inédita escrita aos 18 anos por Gonzalez, autora cada vez mais lida, discutida e homenageada, com novas gerações de ativistas e pensadoras que, sobre seus ombros, prosseguem a mesma luta — incluindo a autora desta bela biografia.
Em busca de si mesma
Com coragem e integridade para se expor, Lélia relatou o difícil processo de construção de sua identidade racial, sobretudo num contexto em que a negritude padecia — e ainda padece — de toda sorte de interdições e rejeições e o embranquecimento se colocava — e se coloca — como imposição estética ou estratégia de defesa para evitar a discriminação. Conta-nos ela:
Eu tive oportunidade de estudar […] e passei por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico brasileiro, porque, à medida que eu aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra.
Essa capacidade de Lélia falar, na primeira pessoa, sobre as dores e a rejeição social que o racismo provocava tinha um efeito libertador para as mulheres negras. Facilitava a compreensão a respeito da influência de uma ideologia perversa sobre seus corpos e mentes que valorizava esteticamente a brancura e estigmatizava a negritude e todas as características que lhe são próprias:
Não quero dizer que eu não passei por isso, porque eu usava peruca, esticava cabelo, gostava de andar vestida como uma lady. Desnecessário dizer que a divisão interna da mulher negra na universidade é tão grande que, no momento em que você se choca com a realidade de uma ideologia preconceituosa e discriminadora que aí está, a sua cabeça dá uma dançada incrível. […] A partir daí fui transar o meu povo mesmo, ou seja, fui transar candomblé, macumba, essas coisas que eu achava que eram primitivas.
Essa capacidade de Lélia falar, na primeira pessoa, sobre as dores e a rejeição social que o racismo provocava tinha um efeito libertador para as mulheres negras
O encontro com a psicanálise lacaniana e o candomblé, religião de matriz africana, representou a reconciliação de Lélia com suas origens, sua ancestralidade e sua condição de mulher negra. Segundo seu amigo e massagista Luiz Dias:
Ela era muito curiosa, queria explicações para tudo. Parece que ela tinha uma inquietação interior. Tinha uma força mediúnica, estabelecia contato com “energias que a gente não vê”. Nessa época, ela estava metida com essa história de regressão.
Seu filho Rubens Rufino relatou que a regressão era uma forma de compreender melhor sobre vidas passadas. Lélia buscava respostas para suas indagações, aflições e contradições, por isso lia sobre tudo: Allan Kardec, candomblé, astrologia. Sua inquietação inclinou-a à espiritualidade.
Revelava-se, assim, outro lado da grandeza de Lélia Gonzalez: o de colaborar com sua própria experiência para desconstruir o imaginário sobre os negros considerados “bem-sucedidos”, frequentemente utilizados pela mídia para referendar e justificar o mito da democracia racial, uma vez que são apresentados como pessoas sem qualquer vestígio de terem enfrentado situações de racismo ou de terem sido afetadas se, vez por outra, se defrontaram com situações desse tipo.
O discurso de Lélia causava um efeito pedagógico em um contexto de exaltação da “democracia racial”
Desconstrução do branqueamento
O discurso de Lélia causava um efeito pedagógico em um contexto de exaltação da “democracia racial” que, ao reiterar sistematicamente a ausência de racismo e preconceito no Brasil, trazia como subtexto a mensagem de que as dificuldades enfrentadas pelos negros seriam de sua própria responsabilidade, decorrentes de suas próprias características, ou de sua “natural” inferioridade, como sustenta o pensamento racista. A esses jogos característicos do racismo “à brasileira”, Lélia Gonzalez jamais se prestou!
Para uma mulher negra, era uma experiência catártica estar diante de Lélia Gonzalez e ouvir essa outra mulher negra que era capaz de escutar nossa própria mente e nosso coração e verbalizar, sem medo, todas as angústias e sequelas produzidas pelo racismo. Se uma intelectual negra poderosa como aquela podia dizer todas aquelas coisas sem pejo, então todas poderiam! Mais ainda, ao tornar público seu processo pessoal de desconstrução do branqueamento que o racismo impunha, Lélia arrastava consigo legiões de mulheres negras que, como ela, haviam assumido suas cabeleiras black, usavam roupas coloridas que valorizavam a negritude e aceitavam suas características físicas e sua peculiar expressão de sexualidade.
Se uma intelectual negra poderosa como aquela podia dizer todas aquelas coisas sem pejo, então todas poderiam!
No início dos anos 1980, Lélia sofreu um acidente de carro ao retornar do evento de inauguração da rua Nelson Mandela, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, em homenagem ao líder negro sul-africano. A lesão causada pelo acidente a levou a usar uma faixa na testa para esconder a cicatriz. Esse novo acessório — que ela nunca mais abandonou — ditou uma tendência de moda e um estilo peculiar de Lélia, que o combinava com suas roupas coloridas e exuberantes.
- Lélia Gonzalez: um retrato
- Sueli Carneiro
- Zahar
- 128 páginas
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