Hora de Alimentar Serpentes
Em trechos do livro de narrativas breves, escritora Marina Colasanti nos lembra de seu talento para escrever de forma sensível a todas as idades
Um dos grandes nomes da literatura brasileira, com destaque para seus livros dos gêneros infantil e infantojuvenil, a escritora Marina Colasanti (1937-2025), morta nesta terça-feira (28), deixou um legado de mais de 70 obras para crianças, jovens e adultos. Vencedora de nove prêmios Jabuti, a também poeta e tradutora morreu em decorrência de uma pneumonia, desdobramento da doença de Parkinson.
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Autora de clássicos como “Uma Ideia Toda Azul”, “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento” e “A Moça Tecelã” (Global, 1979, 1982 e 2003), Colasanti é reconhecida por um estilo cristalino e enganadoramente simples, em que sempre demonstrou uma grande compreensão da capacidade dos pequenos.
Não à toa ela já se posicionou diversas vezes contra a visão de livros infantis como meros contêineres de lições morais e aprendizados para a vida. Em vez disso, escrevia para crianças e jovens da mesma forma que para adultos: como quem “se dirige à alma humana”, descreveu certa vez a consultora da Unesco Silvia Castrillón, na indicação da autora ao prêmio Hans Christian Andersen, espécie de Nobel da literatura infantojuvenil.
A seguir, Gama reproduz alguns contos breves e brevíssimos da coletânea “Hora de Alimentar Serpentes” (Global, 2013) — alguns com uma pitada de pura fantasia, outros cujo fantástico se encontra na aparente banalidade do cotidiano. A obra evidencia o talento de Colasanti para se aprofundar em reflexões humanas em algumas poucas linhas, num livro que, apesar de oficialmente para adultos, é recomendável para diferentes idades.
Sobre a autoestrada
Durante horas, debruçado no gradil da passarela acima da autoestrada, olhava o fluxo dos carros que, como o rio da sua infância — tão distante e tão próximo — não parava de escorrer. Às vezes, como então, cuspia, sem porém ouvir o leve baque que denunciaria a chegada do cuspe, abafado pelo som cavo e constante daquele avançar sem rodamoinhos.
Havia dias em que, mais cansado, sentava‐se. E balançando de leve os pés pendentes no ar, desejava de forma incompleta um caniço pequeno, um fio de linha que daria outro sentido ao seu estar ali.
Também pensava, só pensava, sem se atrever, como seria libertador tirar a camisa. Sentia os dedos afastando sensualmente as beiradas da casa, passando por elas a curva do botão, forçando de leve até que deslizasse por inteiro, e logo descendo ao botão seguinte, até abrir o peito ao ar, aquele ar que subia de baixo morno como um hálito. Despido o tronco, mergulharia como tantas vezes havia feito, a pele eletrizada pelo choque frio, abrigado em eternos minutos pela escuridão da água e dos olhos fechados, e logo expulso para a luz.
Era um pensamento apaziguador, do qual emergia em braçadas, respirando fundo. O corpo continuava fechado no casulo da camisa, em alguma parte havia ainda um querer. Mas sentia‐se lavado e lasso, já podia voltar para casa. De onde, no dia seguinte, tomaria outra vez o caminho da passarela.
Olhava o fluxo dos carros que, como o rio da sua infância — tão distante e tão próximo — não parava de escorrer
Que nada se desperdice
A mulher que deitada na cama ao lado do marido procura o sono, está imóvel. É nessa imobilidade que o desejo, sem ter sido convocado, lança seu apelo, e se apropria dela lentamente. Sem toque ou gesto que a denuncie, a mulher se acende.
Dessa luz se aproveita o marido para ler um pouco, antes de dormir.
Com o cachorro ao lado
Toda manhã saía levando o cachorro a passear. Era uma boa justificativa o cachorro, para ele que, aposentado, talvez não tivesse outra. Ia caminhando devagar até a avenida junto ao mar, e lá chegando deixava‐se ficar num banco, o olhar posto nos navios fundeados ao largo. Havia sempre muitos navios.
Conduzia os navios como se a água fosse vidro e ele visse o que para os demais era oculto. Os navios entravam no porto como cegos guiados por quem vê
No seu tempo de prático, navios não precisavam esperar. De lancha ou rebocador, em calmaria ou em tempestade, ele cruzava a barra e, no mar aberto, se aproximava do casco tão mais alto do que sua própria embarcação, olhava para cima avaliando a distância, começava a subir pela escadinha ondeante. Havia riscos. Muitas vezes chegara na ponte de comando encharcado. Mas era o que sabia fazer, e o fazia melhor do que outros. Melhor do que outros conhecia as lajes submersas, os bancos de areia, as correntezas todas daquele porto, e nele conduzia os navios como se a água fosse vidro e ele visse o que para os demais era oculto. Os navios entravam no porto como cegos guiados por quem vê.
Havia sido um belo trabalho. Agora sentava‐se no banco junto ao mar, e olhava ao longe os navios. Sabia que não estavam ali à espera do prático. O tráfego marítimo havia aumentado ano a ano, e aos poucos tornara‐se necessário esperar por uma vaga no porto, como em qualquer estacionamento de automóveis. Mas, sentado no banco, com o cachorro deitado a seu lado, gostava de pensar que na névoa da manhã os navios esperavam por ele, esperavam a lancha ou o rebocador que o traria até junto do alto casco, quando então levantaria a cabeça avaliando a distância antes de começar a subir. Um a um, aqueles navios agora cravados na água como se na rocha, sairiam da névoa e, comandados por ele cruzariam a barra entrando no porto. Progressivamente, o horizonte ficaria despovoado.
Seus devaneios chegavam só até esse ponto, só até o horizonte desimpedido. Acrescentava ainda um lamento de sirene, longo. Depois se levantava do banco. O cachorro se levantava do chão. O passeio da manhã estava terminado.
Gostava de pensar que na névoa da manhã os navios esperavam por ele

- Hora de Alimentar Serpentes
- Marina Colasanti
- Global
- 448 páginas
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