Trecho de Livro: O Ódio pela Poesia, de Ben Lerner — Gama Revista

Trecho de livro

O Ódio pela Poesia

Numa ode às avessas ao gênero literário, Ben Lerner explora a dimensão fracassada do poeta como forma de revelar também suas maiores virtudes

Leonardo Neiva 28 de Fevereiro de 2025

Se puxarmos pela memória, é provável que quase todos tenhamos alguma relação direta com a poesia. Seja o fascínio por um poema, uma letra de música, seja um professor que nos incentivou a estudar o tema ou mesmo algum amor da juventude capaz de nos inspirar alguns versos. Porém, para muitos de nós, também é bem possível que, em algum momento da vida, essa relação tenha degringolado, simplesmente desaparecido ou se transformado num ódio inexplicável. É das raízes desse processo que o poeta, romancista e crítico literário Ben Lerner trata em “O Ódio pela Poesia” (Fósforo, 2025).

“Muito mais gente concorda que odeia poesia do que é capaz de concordar sobre o que é poesia”, escreve Lerner logo nas primeiras páginas, em que escancara também a própria relação dúbia que mantém com o gênero literário — apesar de não gostar particularmente, construiu sua vida e carreira em torno dele. Para o escritor, a poesia é a única forma literária que não só assume o frequente desprezo de que é alvo como até mesmo o incorpora.

Longe de trazer respostas fáceis para o dilema que é o fazer poético, o autor desfila no livro o humor, ironia e inteligência que o tornaram um dos mais celebrados escritores norte-americanos da atualidade. Assumindo desde o início que o fracasso está no centro de toda poesia — incapaz de traduzir em palavras o sublime que o poeta se dispõe a alcançar —, ele destaca as aspirações transcendentes do gênero e de seus autores como aquilo que o torna a um tempo tão amado e tão odiado. E é através dessa dimensão trágica e inevitalvemente fracassada que Lerner traça sua ode às avessas à poesia, cuja presença segue também inevitável em todos os campos do conhecimento humano até hoje.


“Poesia”: que tipo de arte assume a aversão de seu público e que tipo de artista se alinha a essa
aversão, até mesmo estimulando-a? Uma arte odiada, por fora e por dentro. Que tipo de arte tem como condição de sua possibilidade um perfeito desprezo? Além do mais, nem mesmo lendo desdenhosamente você alcança o genuíno. Para ele, pode apenas arrumar um lugar — e ainda assim não encontra o poema verdadeiro, o artigo genuíno. Quase todos os anos sai um ensaio num periódico mainstream denunciando a poesia ou proclamando sua morte, geralmente para culpar os poetas vivos pela relativa marginalização da arte, e então as defesas se iluminam na blogosfera antes de a cultura, se pudermos dizer que é uma cultura, concentrar-se, se pudermos dizer que isso é concentração, de volta no futuro. Mas por que não perguntamos: que tipo de arte é definida — tem sido definida há milênios — por um tal ritmo de denúncia e defesa? Muito mais gente concorda que odeia poesia do que é capaz de concordar sobre o que é poesia. Eu, também, não gosto dela, mas em grande parte organizei minha vida ao seu redor (embora com muito menos disciplina e perícia do que Marianne Moore), e não sinto isso como uma contradição, porque a poesia e o ódio pela poesia são para mim — e talvez para você — inextricáveis.

Muito mais gente concorda que odeia poesia do que é capaz de concordar sobre o que é poesia. Eu, também, não gosto dela

Caedmon, o primeiro poeta da língua inglesa cujo nome é conhecido por nós, aprendeu, durante um sonho, a arte de cantar. Segundo a Historia ecclesiastica de Beda, ele era um vaqueiro analfabeto que não sabia cantar. Quando, durante uma ou outra alegre festa, ficava decidido que todos deveriam, revezando-se, apresentar uma canção, Caedmon se afastava constrangido, alegando que tinha de cuidar dos animais. Certa noite, alguém tenta lhe passar uma harpa, depois do jantar, mas Caedmon foge para o curral. Lá, no meio dos ungulados, começa a cochilar e é visitado por uma misteriosa figura, provavelmente Deus. “Você deve cantar para mim”, Deus diz. “Não consigo”, diz Caedmon, talvez não com essas palavras. “Por isso é que estou dormindo no curral, em vez de estar bebendo hidromel com meus amigos ao redor da fogueira.” No entanto, Deus (ou um anjo ou um demônio — o texto é vago) insiste em pedir uma canção. “E o que eu deveria cantar?”, pergunta Caedmon, que imagino se achar desesperado, suando frio durante um pesadelo. “Cante o começo das coisas criadas”, o visitante instrui. Então, Caedmon abre a boca e, para seu próprio espanto, deslumbrantes versos em louvor a Deus são emitidos.

Tão logo passa do impulso para o poema real, a canção do infinito é comprometida pela finitude dos termos

Caedmon acorda como poeta e por fim se torna monge. Mas o poema que ele cantou ao acordar, segundo Beda, não era tão bom quanto o que cantara no sonho, “pois as canções, mesmo que nunca sejam muito bem-feitas, não podem ser passadas de uma língua para outra, palavra por palavra, sem que percam algo de sua graça e valor”. Se isso é verdade em relação à tradução no mundo desperto, é duas vezes verdade na tradução de um sonho. O poema real que Caedmon traz de volta para a comunidade humana é necessariamente um mero eco do primeiro.

Allen Grossman, cuja leitura de Caedmon estou pirateando aqui, extrai dessa história (da qual há muitas versões) uma lição severa: a poesia surge do desejo de ir além do finito e histórico — do mundo humano da violência e das diferenças — para alcançar o transcendente ou divino. Você é levado a escrever um poema, sente-se intimado a cantar, por causa desse impulso transcendente. Mas, tão logo passa do impulso para o poema real, a canção do infinito é comprometida pela finitude dos termos. Num sonho, seus versos podem anular o tempo, suas palavras podem se livrar da história do uso que elas têm, você pode representar o que é irrepresentável (por exemplo, a criação da própria representação), mas quando acorda, quando volta para junto de seus amigos ao redor da fogueira, encontra-se de novo no mundo humano, com sua lógica e suas leis inflexíveis.

O poema é sempre o registro de um fracasso

O poeta é, assim, uma figura trágica. O poema é sempre o registro de um fracasso. Há um “conflito insolúvel” entre o desejo que há no poeta de cantar um mundo alternativo e, como Grossman o coloca, a “resistência à criação de alternativas que se faz inerente aos materiais de que qualquer mundo deve ser composto”. Num ensaio sobre Hart Crane, Grossman desenvolve o conceito de “poema virtual” — o que poderíamos chamar de poesia com P maiúsculo, o potencial abstrato do meio, como o poeta o sente quando intimado a cantar — e o contrapõe ao “poema real”, que necessariamente trai esse impulso quando se une ao mundo da representação.

Produto

  • O Ódio pela Poesia
  • Ben Lerner
  • Fósforo
  • 80 páginas

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