Homem com Homem
Antologia organizada pelo escritor Ricardo Domeneck reúne versos de alguns dos principais autores homoeróticos brasileiros do século 21
Com o passar dos séculos, a poesia se mostrou uma das forma ideais para traduzir para a escrita os meandros do amor e as complexidades dos relacionamentos. Grandes poetas como Catulo, Abu Nuwas, Kafávis e Pasolini ajudaram a representar essa tradição, no caso dos encontros homoeróticos. Em mais um capítulo dessa longuíssima história, o escritor e poeta vencedor do Jabuti, Ricardo Domeneck, reúne agora em uma única obra alguns dos principais expoentes da poesia homoerótica brasileira no século 21. “Homem com Homem” (Ercolano, 2025) traz mais de 130 poemas de 21 autores de destaque na literatura nacional ao longo dos últimos anos.
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“Seja lá quais tenham sido os nomes (e xingos concomitantes) que lhe foram carimbados no passar dos séculos e das nações, o certo é que esse amor encontrou sua mais adequada nomenclatura na Poesia”, escreve o autor João Silvério Trevisan no prefácio da obra, em referência a esse amor e desejo quase sempre transgressor. Composto por textos de escritores contemporâneos como Renato Negrão, Ismar Tirelli Neto e Francisco Mallmann, incluindo o próprio organizador, Ricardo Domeneck, o livro homenageia aqueles que ousaram contar em versos o desejo entre homens ao longo da história.
Os textos vêm acompanhados por retratos, polaroides, ilustrações e assemblages dos fotógrafos Paul Mecky (Alemanha), Eugen Bräunig (Alemanha), Lucas Bihler (França), Nino Cais (Brasil) e Marcelo Amorim (Brasil). As imagens, em sua grande maioria nus masculinos, ilustram a beleza e sensualidade desse universo. Além disso, no posfácio, o pesquisador Guilherme de Assis destaca o homoerotismo como uma experiência visceral, encerrando uma obra que celebra a variedade dessas relações com poesia.

Felino (Renato Negrão)
é macho
e é bicha
e gosta de mulher
que é mulher
e é macho
e adora homem
que é homem
e é bicha
e odeia homem
que é macho
e é homem
e não gosta de mulher
que é homem
e é homem
e gosta de menino
que é menine e
é menino
e gosta de adulto
que é menino e
é menino
e gosta de mulher
que é mulher
e é mulher
e gosta de mulher
que é homem
e é mulher
e gosta de homem
que é homem
e é homem
e gosta de travesti
que é homem
e é menina
e gosta de menino
que é menina
e é menina
e gosta de felino
é macho/
e é bicha/
e gosta de mulher

Ação de Graça pelo desconhecido (Ricardo Domeneck)
Obrigado, Santa Rita, padroeira
dos que passam a vida
de quatro, pela graça desse
menino,
mineiro de naturalidade, não
de profissão.
Ele existe, inteiriço, completo,
dorminhoco a meu lado,
enquanto o ônibus sacoleja
pela Serra do Espinhaço,
entre Curvelo e Diamantina.
Fruto do mistério violento
desse liquidificador de sangues,
ele é um triângulo de bermudas.
E aqui, com a cabeça quase a
pender
sobre meu ombro, feito um dono
do mundo, ele cabeceia
no sono o nada.
Quem terão sido os dezesseis
trisavós e trinta e dois
tataravós desse campeão,
desse vencedor contra a sub-
-nutrição de tantas e tamanhas
gerações raquíticas?
Quais finaram de doenças
estrangeiras,
quais comeram terra no banzo,
quais mataram-se
no banalíssimo desespero
cotidiano?
De quais guerras e epidemias
escaparam, ilesos
ou não, para que esse corpo
forte, descendente aperfeiçoado,
cruzasse em relativa paz
esse território pedregoso
do nosso quinhão de mundo?
Santa Rita, ele mais parece
um faraó, um tlatoani, um xá,
e eu gostaria tanto de vê-lo
interpretando Tutancâmon,
Nezahualcóyotl ou Reza Pahlavi
na minha Hollywood pessoal.
Na orelha esquerda, ele
carrega uma cruz, um brinco da
Cruz,
ah! esses nossos modernismos
arcaizantes! Santa Rita, rogai
por estes pés
seminus na tanga das havaianas.
Fico toda adélia nesses prados
ao ver o que se anexa
a seus calcanhares. Dois!
Com cinco dedos cada!
Minha alegria é a perfeição
de suas unhas tão bem fabricadas,
que jamais despedaçaram presa
alguma. Seus dentes saudáveis
que rasgam a carne de outros
e que outros mataram. Eu o amo.
Não, eu não o amo. Quem
ama estranhos totais? Eu amo
estranhos totais.
Eu amo esse estranho total.
Ele não precisa saber. Meu amor
floresce nessa insciência alheia.
Se um amor cai no meio de uma
serra
e ninguém o ouve cair, ainda
assim existe esse amor. O amor
é uma esquisitice
que melhor se cozinha calada,
calado.
Galado está o ovo do amor.
Da orelha do rapaz pende
uma cruz
na qual crucifico-me de bom grado.
Benzadeus,
cabeça encaracolada, agradeça
seus pais, delicioso húmus
futuro.
Vem ver, Adriano. Vem ver,
Constantino.
Essas estátuas biodegradáveis são
meus credos e minhas cruzes,
uia, saudabilíssimo tabu,
eita, saudabilíssimo totem.
Obrigado, Santa Rita, padroeira/
dos que passam a vida/
de quatro

Sempre depois de gozar (Rafael Amorim)
sempre
depois de gozar
penso em morte
já que marte me nota
lá de cima emoldurado
no escuro brilhante
silencioso voyeur
me refaço olhado
perfura meu corpo
sua ponta de lança
meu amor
o que vem depois?
em nossa
cruzada prometo
penetrar o seu império
te juro silêncio beira de cama
beira de estrada mal algum
te alcançará e sempre
depois de gozar serei
seu inimigo sem
olhar para trás
ferido e tombado
à luz do crepúsculo
envolto pelo seu santo
sudário meu sangue
enferrujando a trama
do algodão infectado
por planetas estrelas
deuses da guerra
todos
a caminho
do chão.
sempre/
depois de gozar serei/
seu inimigo sem/
olhar para trás

- Homem com Homem
- org. Ricardo Domeneck
- Ercolano
- 352 páginas
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