Trecho de Livro: Sexo e Desorganização, de Jamieson Webster — Gama Revista

Trecho de livro

Sexo e Desorganização

A psicanalista Jamieson Webster se aprofunda ao longo de 18 ensaios na natureza anárquica do desejo e da sexualidade humana

Leonardo Neiva 14 de Fevereiro de 2025

Existe sexo organizado? A julgar pelos 18 ensaios que compõem o livro “Sexo e Desorganização” (Ubu, 2025), os dois conceitos são praticamente coisas opostas. Na obra, a psicanalista estadunidense Jamieson Webster reflete sobre as infinitudes do desejo, um campo ao mesmo tempo anárquico e contrário a qualquer tentativa de simplificação ou constrangimento. Além de tecer uma reflexão sobre o sexo a partir da psicanálise, a autora também propõe o caminho contrário: pensar a psicanálise usando como lupa a complexidade das nossas relações sexuais com os outros e conosco.

Com base no pensamento de figuras influentes como Lacan, Adorno, o filósofo Paul B. Preciado e, é claro, o incontornável Freud, o livro também aborda casos célebres e outros da própria clínica de Webster como forma de analisar a fluidez do sexo e a desorganização do nosso inconsciente. Sem deixar de lado nem a teoria nem a prática, percorre temas como sonhos e o mundo onírico, a solidão, as fantasias masturbatórias, as relações materna e paterna, as sexualidades feminina e masculina, entre muitos outros.

Como resume a autora logo no prefácio, “psicanalista é quem assume o fardo da desorganização e tenta, a todo custo, não se livrar dela”. “Sexo e Desorganização” trata a sexualidade como uma pulsão que pode ser tanto de vida quanto de morte, mas que, de uma forma ou de outra, move o ser humano e a própria sociedade. Até por isso, Webster também demonstra uma preocupação com o que chama de “deserto sexual” que se encontra lá fora, com o sexo sendo visto frequentemente tanto como uma maldição quanto uma cura e, em ambos os casos, sendo cada vez mais desidratado. “O sexo resiste a qualquer tentativa de organizar seu excesso. O sexo desorganiza”, escreve.


Fantasias de masturbação

Há um mito psicanalítico segundo o qual até você ter desenterrado, desconstruído e analisado a fantasia de masturbação de um paciente, o tratamento dele está incompleto. Na verdade, a ideia é de que essa fantasia é tão profunda que estrutura toda a vida deles — os parceiros e empregos que escolhem, como fracassam ou têm sucesso no amor e no trabalho, e, com toda a certeza, o que lhes dá prazer ou lhes tira o tesão. É quase como se essa cena masturbatória fosse um filme passando em silêncio no pano de fundo da vida, determinando o “manual” dela, enxertando-se no futuro, condensando toda uma história sexual e familiar num roteiro de trinta segundos, três linhas. O que mais explicaria a ubiquidade e especificidade da pornografia? Como, senão assim, entender as tendências à fixação e à repetição em nossas vidas românticas?

“Batem numa criança” é o artigo que Freud escreve sobre o tema das fantasias de masturbação. Publicado em 1919, agora sabemos que o texto era sobre sua filha Anna Freud, cujas fantasias masturbatórias de surras ele tentou disfarçar como se discutisse um caso. Mas só podem ter vindo dela — conforme relatado a seu pai Freud, que a analisou — porque, na época em que escreveu o artigo, ele ainda não havia começado a atender pacientes. São estas as origens incestuosas secretas, com violação de limites, da busca de Freud por fantasias de masturbação para interrogar.

Freud escreveu esse artigo para corrigir o que começava a suspeitar ser uma tendência na psicanálise de pensar tais fantasias como perversões — uma espécie de fracasso no desenvolvimento até ser possível alcançar uma espécie de normalidade sexual. Freud diz, em vez disso, que as fantasias são comuns e que constituem uma espécie de cicatriz ou secundinas, um resíduo, do que inevitavelmente fracassa em nossa tentativa de nos tornarmos seres humanos sexuais adultos. Na verdade, tais fantasias nos mostram os principais componentes de nossas vidas sexuais, como um prisma que absorve luz branca para assim nos revelar todas as gradações de cor que o compõem.

A fantasia masturbatória consciente só é relatada por pacientes, diz Freud, com extrema dificuldade. Foi o caso especialmente com várias mulheres que só conseguiam relatar sua fantasia por meio da estranha frase ambígua “batem numa criança”. Freud indaga se essa cena se vincula a alguma memória traumática, talvez de ter apanhado. Há também lembranças infantis de ter visto outras crianças sendo castigadas, mas não parecem especialmente importantes. O mais relevante, decide Freud, é a cena como sinal de rivalidade entre filhos e a busca por amor e reconhecimento da figura parental de autoridade; ou, conforme Freud formula: Ele bate nele, ele me ama. O ato de bater também representa a ação de masturbação em si — bater uma.

Até você ter desenterrado, desconstruído e analisado a fantasia de masturbação de um paciente, o tratamento dele está incompleto

Freud diz que a camada mais inconsciente da fantasia, a qual segundo ele nunca é realmente lembrada e precisa ser construída pelo analista, é a seguinte: “Meu pai está batendo em mim”. Então, na fantasia de masturbação, pelo menos como Freud a descreveu há mais de cem anos atrás, existem três camadas: 1) memória: Meu pai está batendo em uma criança (que eu odeio — ele ama somente a mim); 2) fantasia inconsciente: Meu pai está batendo em mim; e 3) fantasia masturbatória consciente: Batem numa criança (que é revelado como: Muitas crianças (em geral meninos) estão apanhando de um representante da classe dos pais, usando uma variedade de instrumentos).

É interessante notar que o analista, ao construir a segunda camada para o paciente, devolve-lhe um “eu” mais ativo, porque nas outras cenas a pessoa geralmente é voyeur, observando as coisas como plateia. Importante perceber que, na camada consciente da fantasia de masturbação, que muitas vezes acontece em uma espécie de devaneio ou filme mental, vemos que muitas mudanças são realizadas e elementos são elaborados, o que é bastante revelador. Por exemplo:

— O sexo da mulher que fantasia é trocado para o de um menino pequeno ou da “criança” ambígua, apontando para uma espécie de apagamento do feminino.
— Mais do que isso, como presença, ela não passa de um observador, de um olhar.
— O pai é representado como qualquer pessoa que simbolize autoridade ou a lei.
O sexo — ou o que é sexualmente excitante — é transformado em dor, castigo, sadomasoquismo e as vicissitudes da culpa com frequência associadas a essas coisas.

Agora podemos interpretar essas transformações como se fossem um sonho. Vemos em muitas fantasias de masturbação a tentativa de responder três perguntas impossíveis associadas à sexualidade, que compreendem três coisas que a criança não consegue entender em sua pesquisa sexual: 1) o orifício vaginal; 2) o papel inseminador do sêmen; 3) o que é o coito.

Essas três perguntas apontam para algo que sempre estará em falta em nosso conhecimento, algo ao qual a religião, a política, a ciência e a moralidade tentam dar uma resposta. Podemos descobrir o que herdamos da cultura e que pertence aos contornos do sexo, depositado em nossas fantasias mais íntimas. Não apenas isso nos conta o que pensamos ou ouvimos dizer sobre sexo, mas de forma mais universal nos dá um raio-X de onde estamos como sociedade com relação a esses mistérios fundamentais.

Permita-me demonstrar como essas perguntas funcionam quando aplicadas à fantasia inconsciente clássica de surra de Freud.

Tais fantasias nos mostram os principais componentes de nossas vidas sexuais

A fantasia: Estou apanhando de meu pai.
O orifício vaginal: Onde estão a mãe e seu desejo? Resposta: Não há mulher nessa fantasia.
O papel inseminador do sêmen: O que é o pai, o símbolo da autoridade e da lei, nessa fantasia? Resposta: O pai é um sádico nessa fantasia.
Coito: O que são relações sexuais, compromisso, amor nessa fantasia? Resposta: O sexo e o amor são dor e castigo nessa fantasia.

Como vemos, a pessoa pode se valer dessas três perguntas — o que são o orifício vaginal, o papel inseminador do sêmen e o coito — e adaptá-las para analisar qualquer fantasia. Agora aplicarei essa matriz a uma série de fantasias de masturbação anônimas.

Fantasia n. 1

Sujeito: Mulher lésbica, 30 anos.

Ainda costumo me masturbar principalmente usando meu cérebro em vez de pornografia. A não ser que esteja usando o Magic Wand, só que nesse caso eu simplesmente gozo sem nem sequer ter a chance de pensar, de tão rápido que é. Mas, sim, quando uso minha mão, invento uns filminhos em minha cabeça. Um a que assisti algumas vezes é comigo e minha namorada fazendo sexo para uma sala cheia de mulheres mais velhas, que nos assistem. Em geral é uma sala clássica de universidade. Tipo essas da Ivy League. As mulheres que nos assistem estão totalmente vestidas. Também são meio severas. Tipo, não estão se tocando. São mais como observadoras clínicas. E estão ao redor de nós. Estamos no meio da sala. Na fantasia, o sexo entre minha namorada e eu em geral é bem básico em termos do que fazemos — uma usando a mão para mexer na outra. Mas também é bastante terno, com muitos beijos e gemidos. Então não é bem a gente trepando e as mulheres nos observando; é a gente fazendo amor.

A fantasia: Estou sendo ensinada por minha mãe.
O orifício vaginal: O que são as mulheres e seus desejos? (Incluindo-se aí o desejo da mãe.) Resposta: Não existe mulher sexual. Existem professoras senhoriais e severas ou menininhas brincando de ternura.
O papel inseminador do sêmen: Quem é o pai nessa fantasia? Resposta: O pai é uma professora universitária mais velha com um olhar clínico.
Coito: O que são as relações sexuais, o compromisso e o amor nessa fantasia? Resposta: Observação (e, por inferência, julgar e dar notas); não trepar, mas fazer amor, o que significa beijos, toques, gemidos. Uma demonstração de ternura para mulheres que não a podem compreender. Quem está ensinando a quem?

Não é bem a gente trepando e as mulheres nos observando; é a gente fazendo amor

Fantasia n. 2

Sujeito: Homem heterossexual, 34 anos.

Nunca contei isso a ninguém antes e duvido que algum dia vá pedir a uma moça que experimente isso comigo, mas uma de minhas fantasias de masturbação mais frequentes envolve peidos. Tem alguns elementos específicos, porém. Primeiro, penso em uma garota — em geral apenas alguma menina que conheço, tipo uma amiga qualquer ou uma colega de trabalho, mas nunca a pessoa que estou namorando no momento — usando meia-calça preta com furos. Ela fica de quatro em minha frente botando a bunda lá no alto, então encontro um furo atrás de sua meia-calça e rasgo mais, até todo o seu traseiro estar ao léu. Aí me afasto um pouquinho e, basicamente, ela começa a peidar. Geralmente imagino peidos enormes, bem altos. E imagino que ela dê gargalhadas ao fazer isso, tipo, é muito divertido para ela. Além disso, os peidos não fedem. O aspecto olfativo dos peidos não está incluído nessa minha fantasia. Não acho que eu iria gostar dessa parte. Simplesmente me concentro na imagem da moça com a bunda para cima peidando. É triste, mas nunca vou explorar esse meu lado com curiosidade por peidos.

A fantasia: Estou peidando para minha mãe.
O orifício vaginal: O que é a vagina nessa fantasia? Resposta: A vagina é um ânus peidando sem cheiro nessa fantasia.
O papel inseminador do sêmen: O que é a autoridade nessa fantasia? Resposta: A autoridade é o instrumento de expor a humilhação — mas também aquele que dá a licença para desfrutar da expulsão anal — nessa fantasia.
Coito: O que são as relações sexuais, o compromisso e o amor nessa fantasia? Resposta: O sexo é organizado ao redor de “rasgar” ou “deixar cair”: rasgar a meia-calça, peidar, partir para cima, a todo vapor, com ruído. É um usufruto quase solitário para aquele que pode dar um passo atrás e observar.

Produto

  • Sexo e Desorganização
  • Jamieson Webster
  • Ubu
  • 240 páginas

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