Trecho de Livro: Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector — Gama Revista

Trecho de livro

Perto do Coração Selvagem

Livro de estreia de Clarice Lispector ganha nova versão com ensaios críticos e anotações originais da escritora

Leonardo Neiva 20 de Janeiro de 2023

Embora depois tenha sido ofuscado por livros que acabaram se tornando mais populares e discutidos, como “A Hora da Estrela” e “A Paixão Segundo G.H.”, o romance de estreia de Clarice Lispector, “Perto do Coração Selvagem” (Rocco, 2022), causou burburinho logo de cara entre escritores e críticos como Antonio Candido por sua novidade e estranheza. É essa repercussão que o escritor e especialista na obra da autora, Evandro Nascimento, busca evocar em um dos ensaios que integram a nova edição do romance – terceiro volume de edições especiais com os manuscritos e datiloscritos de Clarice Lispector, iniciadas com “A Hora da Estrela” e “Água Viva”.

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Publicado quando Clarice tinha apenas 22 anos, o volume saiu em um ano crucial para ela. Foi também em 1943 que a escritora, nascida na Ucrânia, conseguiu a cidadania brasileira, se casou e se formou em direito. Presença constante em citações repetidas nas redes sociais – sejam reais ou inventadas –, Clarice prova desde o começo os motivos do fascínio duradouro tanto por sua escrita quanto por sua persona.

Tendo como protagonista a jovem Joana, que narra sua trajetória da infância ao início da vida adulta, a obra surpreendeu os leitores por focar questões introspectivas e existenciais e pelo estilo fragmentado – características que se tornariam marca da autora. Frases como “seguir-se é ser livre afinal” e “donde vem essa certeza de estar vivendo?” hoje podem integrar o arsenal de citações online de Clarice, mas “Perto do Coração Selvagem”, em seu original, traz muito mais do que apenas frases de impacto. Lido numa edição que inclui as anotações da escritora à época, a impressão que se tem é de que a leitura nos aproxima também do coração de Clarice, além de sua literatura.


O dia de Joana

A certeza de que dou para o mal, pensava Joana.

O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era no mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconsequências, de egoísmo e vitalidade.

Lembrou-se do marido que possivelmente a desconheceria nessa ideia. Tentou relembrar a figura de Otávio. Mal, porém, sentia que ele saíra de casa, ela se transformava, concentrava-se em si mesma e, como se apenas tivesse sido interrompida por ele, continuava lentamente a viver o fio da infância, esquecia-o e movia-se pelos aposentos profundamente só. Do bairro quieto, das casas afastadas, não lhe chegavam ruídos. E, livre, nem ela mesma sabia o que pensava.

Sim, ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repugnava-lhe deixar um dia esse animal solto. Por medo talvez da falta de estética. Ou receio de alguma revelação… Não, não — repetia-se ela –, é preciso não ter medo de criar. No fundo de tudo possivelmente o animal repugnava-lhe porque ainda havia nela o desejo de agradar e de ser amada por alguém poderoso como a tia morta. Para depois no entanto pisá-la, repudiá-la sem contemplações. Porque a melhor frase, sempre ainda a mais jovem, era: a bondade me dá ânsias de vomitar. A bondade era morna e leve, cheirava a carne crua guardada há muito tempo. Sem apodrecer inteiramente apesar de tudo. Refrescavam-na de quando em quando, botavam um pouco de tempero, o suficiente para conservá-la um pedaço de carne morna e quieta.

A bondade era morna e leve, cheirava a carne crua guardada há muito tempo. Sem apodrecer inteiramente apesar de tudo

Um dia, antes de casar, quando sua tia ainda vivia, vira um homem guloso comendo. Espiara seus olhos arregalados, brilhantes e estúpidos, tentando não perder o menor gosto do alimento. E as mãos, as mãos. Uma delas segurando o garfo espetado num pedaço de carne sangrenta — não morna e quieta, mas vivíssima, irônica, imoral –, a outra crispando-se na toalha, arranhando-a nervosa na ânsia de já comer novo bocado. As pernas sob a mesa marcavam compasso a uma música inaudível, a música do diabo, de pura e incontida violência. A ferocidade, a riqueza de sua cor… Avermelhada nos lábios e na base do nariz, pálida e azulada sob os olhos miúdos. Joana estremecera arrepiada diante de seu pobre café. Mas não saberia depois se fora por repugnância ou por fascínio e voluptuosidade. Por ambos certamente. Sabia que o homem era uma força. Não se sentia capaz de comer como ele, era naturalmente sóbria, mas a demonstração a perturbava. Emocionava-a também ler as histórias terríveis dos dramas onde a maldade era fria e intensa como um banho de gelo. Como se visse alguém beber água e descobrisse que tinha sede, sede profunda e velha. Talvez fosse apenas falta de vida: estava vivendo menos do que podia e imaginava que sua sede pedisse inundações. Talvez apenas alguns goles… Ah, eis uma lição, eis uma lição, diria a tia: nunca ir adiante, nunca roubar antes de saber se o que você quer roubar existe em alguma parte honestamente reservado para você. Ou não? Roubar torna tudo mais valioso. O gosto do mal — mastigar vermelho, engolir fogo adocicado.

Não acusar-me. Buscar a base do egoísmo: tudo o que não sou não pode me interessar, há impossibilidade de ser além do que se é — no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio, sou mais do que eu quase normalmente –; tenho um corpo e tudo o que eu fizer é continuação de meu começo; se a civilização dos Maias não me interessa é porque nada tenho dentro de mim que se possa unir aos seus baixos-relevos; aceito tudo o que vem de mim porque não tenho conhecimento das causas e é possível que esteja pisando no vital sem saber; é essa a minha maior humildade, adivinhava ela.

O pior é que ela poderia riscar tudo o que pensara. Seus pensamentos eram, depois de erguidos, estátuas no jardim e ela passava pelo jardim olhando e seguindo o seu caminho.

Um dia, antes de casar, quando sua tia ainda vivia, vira um homem guloso comendo. Espiara seus olhos arregalados, brilhantes e estúpidos, tentando não perder o menor gosto do alimento

Estava alegre nesse dia, bonita também. Um pouco de febre também. Por que esse romantismo: um pouco de febre? Mas a verdade é que tenho mesmo: olhos brilhantes, essa força e essa fraqueza, batidas desordenadas do coração. Quando a brisa leve, a brisa de verão, batia no seu corpo todo ele estremecia de frio e calor. E então ela pensava muito rapidamente, sem poder parar de inventar. É porque estou muito nova ainda e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto — refletia. Pensar agora, por exemplo, em regatos louros. Exatamente porque não existem regatos louros, compreende? assim se foge. Sim, mas os dourados de sol, louros de certo modo… Quer dizer que na verdade não imaginei. Sempre a mesma queda: nem o mal nem a imaginação. No primeiro, no centro final, a sensação simples e sem adjetivos, tão cega quanto uma pedra rolando. Na imaginação, que só ela tem a força do mal, apenas a visão engrandecida e transformada: sob ela a verdade impassível. Mente-se e cai-se na verdade. Mesmo na liberdade, quando escolhia alegre novas veredas, reconhecia-as depois. Ser livre era seguir-se afinal, e eis de novo o caminho traçado. Ela só veria o que já possuía dentro de si. Perdido pois o gosto de imaginar. E o dia em que chorei? — havia certo desejo de mentir também — estudava matemática e subitamente senti a impossibilidade tremenda e fria do milagre. Olho por essa janela e a única verdade, a verdade que eu não poderia dizer àquele homem, abordando-o, sem que ele fugisse de mim, a única verdade é que vivo. Sinceramente, eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é demais. Lembro-me de um estudo cromático de Bach e perco a inteligência. Ele é frio e puro como gelo, no entanto pode-se dormir sobre ele. Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na alucinação. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro, nos lábios — na língua principalmente –, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer. O gosto é cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços velhos um pouco azulado, e move-se como gelatina, vagarosamente. Às vezes torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo. Muito bem, agora pensar em céu azul, por exemplo. Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo?

Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo?

Não, não passo bem. Pois ninguém se faz essas perguntas e eu… Mas é que basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da existência. E abaixo de todas as dúvidas — o estudo cromático — sei que tudo é perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em relação a si mesmo. Nada escapa à perfeição das coisas, é essa a história de tudo. Mas isso não explica por que eu me emociono quando Otávio tosse e põe a mão no peito, assim. Ou senão quando fuma, e a cinza cai no seu bigode, sem que ele note. Ah, piedade é o que sinto então. Piedade é a minha forma de
amor. De ódio e de comunicação. É o que me sustenta contra o mundo, assim como alguém vive pelo desejo, outro pelo medo.
Piedade das coisas que acontecem sem que eu saiba. Mas estou cansada, apesar de minha alegria de hoje, alegria que não se sabe de onde vem, como a da manhãzinha de verão. Estou cansada, agora agudamente! Vamos chorar juntos, baixinho. Por ter sofrido e continuar tão docemente. A dor cansada numa lágrima simplificada. Mas agora já é desejo de poesia, isso eu confesso, deus. Durmamos de mãos dadas. O mundo rola e em alguma parte há coisas que não conheço. Durmamos sobre Deus e o mistério, nave quieta e frágil flutuando sobre o mar, eis o sono.

Por que ela estava tão ardente e leve, como o ar que vem do fogão que se destampa?

O dia tinha sido igual aos outros e talvez daí viesse o acúmulo de vida. Acordara cheia da luz do dia, invadida.

Produto

  • Perto do Coração Selvagem
  • Clarice Lispector
  • Rocco
  • 304 páginas

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